Wednesday, February 1, 2017

NOVA DETROIT (uma crônica de Marcelo Rayel Correggiari)

ilustração: Márcia Figo

“(...) Com o seu humor habitual e inimitável, Woody Allen aponta as modas e manias dos “indivíduos por decreto” ao folhear os anúncios de imaginários cursos de verão do tipo que os norte-americanos adorariam frequentar. O curso de teoria econômica inclui o item “Inflação e depressão – como se vestir bem para cada ocasião”; o curso de ética envolve “O imperativo categórico – e seis maneiras de fazê-lo funcionar a seu favor”, enquanto o prospecto de astronomia informa que “o Sol, que é feito de gás, pode explodir a qualquer momento, mandando nosso planeta inteiro pelos ares; os estudantes são instruídos sobre o que o cidadão médio pode fazer em tal caso.”

Em suma: o outro lado da individualização parece ser a corrosão e a lenta desintegração da cidadania. Joël Roman, co-editor de ‘Ésprit’, assinala em seu livro recente (‘La démocratie des individus’, 1998) que “a vigilância é degradada à guarda dos bens, enquanto o interesse geral não é mais que um sindicato de egoísmos, que envolve emoções coletivas e o medo do vizinho”.(...)

A individualização chegou para ficar; toda elaboração sobre os meios de enfrentar seu impacto sobre o modo como levamos nossas vidas deve partir do reconhecimento desse fato. A individualização traz para um número sempre crescente de pessoas uma liberdade sem precedentes de experimentar – mas (‘timeo danaos et dona ferentes...’) traz junto a tarefa também sem precedentes de enfrentar as consequências.(...)

Como observou Leo Strauss, o outro lado da liberdade ilimitada é a insignificância da escolha,(...)”

[BAUMAN, Zygmunt, 1925-2017. “Emancipação” in: “Modernidade Líquida”, tradução, Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 44-47]


Permitam-nos, queridos(as) freguêses(as), nessa data querida, apresentarmos um primor de lugar: Nova Detroit. Inspirada na combalida e arruinada irmã estadunidense do Michigan, possui melhores números em certos aspectos de uma suposta vida civil se comparados aos índices produzidos pela ‘madrinha-mãe’, mas unidas por uma vocação perto da ilógica para a tragédia de uma repetição evitável.

Nova Detroit, como qualquer outra cidade de uma colônia, ergueu-se como pôde dentro de um itinerário pontilhado de sobressaltos. Nem tudo foram flores: já no século XVIII, vários registros sobre as pestes que assolavam seu porto eram publicados no diário oficial da Rainha da Inglaterra.

Desde então, um porto a ser evitado.

Boa parte da ilha era um enorme lagamar cujo lado positivo (se é que seria possível ver um lado positivo nisso) era o controle demográfico. Mortes e mais mortes, os indesejáveis literalmente desaparecendo.

Pestes, invasões, abolições, um time de futebol mundialmente conhecido, a mais britânica das ilhas aos mares do sul (pensamos que bem mais do que as Falklands!), e cá chegamos nos tempos ‘mudernos’ onde uma cidade do mundo sofre frequentemente com aquilo que o mundo padece.

Como toda cidade portuária, uma terra de passagem. Incapaz de produzir uma população arraigada ao lugar, Nova Detroit mostrou-se nos últimos 20 anos sua excelência no que poderíamos chamar de ‘eugênia financeira’, enrubescendo Nova York na mais fina arte da gentrificação.

Já com os enjeitados devidamente empurrados para as cidades vizinhas, os que formam uma segunda, terceira geração de neodetroitienses vivem na ilha por obra e graça de herança por morte dos imóveis herdados. A sobrevivência, são outros 500, numa localidade cujos preços, praticados na moeda mais cara do mundo, a libra esterlina (£), fariam qualquer inglês pegar em armas e promover um sangrento levante popular.


Em suas praias, de areia escurecida principalmente do meio até à água, sua população produz a fotossíntese ao desfilar seus embustes e psicopatias no mais fino decoro do lazer civilizado. ‘Experts’ dos ‘social clubs’ onde certo pedigree se faz condição ‘sine qua non’ para a saudável e satisfatória admissão, os(as) cidadãos(ãs) de Nova Detroit possuem uma voltagem singular em suas interações sociais de causar espantos tanto nos bretões continentais quanto nos insulares, igualmente.

Essa voltagem, somada à condição de cidade ‘trade’ e ‘de passagem’, produz no(a) contribuinte local uma levíssima sensação de habitarem o éden, ou algum principado renomado ao redor do globo. A indulgência na autoclassificação como ‘aristus’ é pastagem profícua na operação de ‘auto-coroamentos’, carro-chefe de delimitações de territórios que, assim como no mundo animal, operam na base de odores e urina.

Em termos de comportamento padrão-comum, se essa não é a mais britânica das paragens dos mares-do-sul, por favor, avisem essa perdida Mercearia.

Mas nada haveria de ser tão, assim, dessa forma o tempo inteiro. Não há muito, Nova Detroit era uma cidade 220V, de um povo sanguíneo e que vivia nas ruas. Ainda que pesadamente fechada no gangsterismo dos ‘social clubs’, havia efervescência em seu grande último suspiro, nos anos 1980.

Numa rotina de ‘cidade 24 horas’, que nunca dormia, seus inúmeros bares (quase todos desaparecidos), restaurantes, lanchonetes, boates, motéis, teatros, cinemas, clubes e fliperamas eram guarida para uma fauna variadíssima que ia de Dudu do Gonzaga a Mário Covas. Sofrida pela repressão de golpes de estado, sendo a última a reconquistar sua autonomia política ao final do Terrível Espetáculo da Vida Nacional, não se dava por vencida e era capaz de recepcionar certa escola de samba local que partiu para a avenida com cerca de 4 mil participantes.

Todos na rua: a cultura da cidade. Sem hora de voltar para casa.

Como na irmã estadunidense, os ‘novos tempos’ não lhe foram benéficos. Um possível potencial para cosmopolidade foi solapada por uma mudança de rumos que não permitiu um ‘mindset’ arejado e atento. O porto, principal atividade local, voltou as costas para o restante da ilha, restringindo à sua população melhores oportunidades de bons vencimentos em grande amonta.


Valores médios de salário muito baixos tornaram o ambiente tremendamente inóspito para grande número de moradores que guiaram Nova Detroit até os dias de hoje. Ilha apertada, desmoronamento do parque industrial na cidade vizinha de Cubatão e o custo de vida nas alturas elevaram a acidez do espaço de sobrevivência para quem fez de Nova Detroit a maravilha que a todos encanta.

O fato é que, na realidade, os ganhos para faixas extensas da população são baixos e esmagados por preços que não são pagos nem por turistas no Soho em alta temporada. Salários de Libéria para ares de Belgravia.

A mão-de-obra, residente nas cidades vizinhas, comparece para as tarefas diárias e se retira ao final do expediente. Uma eventual permanência é uma ousadia financeira onde os próprios ganhos restringem tal sonho.

Esse descompasso resulta numa espécie de política do ‘farinha pouca, meu pirão primeiro’, transformando o que era uma equação de primeiro grau num ‘deus-nos-acuda’: nada muito alentador para um ‘mindset’ que poderia ser humano, empático, onde todos estariam ombro-a-ombro na árdua jornada da vida.

Uma cidade que precisa, para ontem, desenvolver novas formas de gerar riqueza diante do esgotamento dos modelos atuais. Como na maioria das cidades do país, a circulação monetária não é resultante de algum talento, vocação ou recurso que Nova Detroit possua, mas o simples repasse de folhas de pagamentos dos inúmeros funcionários municipais, estaduais e federais, além de pensões e aposentadorias.

Isso somado ao cenário altamente ácido é substrato potente para uma ‘mentalidade de amanuense’ que atinge todo pens amento nela inserida. Um ‘quê’ de quase indigência cujo principal índice seria o interesse geral não ser nada além do que um sindicato de egoísmos.

Estar presa numa única fonte de renda é o anúncio de um futuro não muito brilhante como o encontrado na ‘cidade-irmã’. Em Detroit, foi a indústria automobilística.


Entre farmácias e ‘pet-shops’, algum lustro aqui e acolá, Nova Detroit é um lugar manso onde pode se provar que é possível uma revolução sem sangue e ódio: algo perto de fuzis ‘prêt-à-porter’ da Riachuelo com munições adquiridas numa loja de esmaltes para unhas. Destinada ao sono e ao conforto do munícipe, as derradeiras hostes de quem deveria se insurgir dentro da ‘idílica ilha do clube de hedonismo’ amanuenses são, preocupados num fazer questionável, quase vazio, mas sempre de costas para a massa da população.

O talento de Nova Detroit: os iconoclastas agem exatamente como os sacerdotes determinam, transformando-os numa espécie de ‘despachantes policiais da revolução do novo’.

É possível perceber que Nova Detroit é o lugar!

Mas... nem tudo são espinhos. Na hora dos parabéns, tudo é equalizado pela praia com um belíssimo banho-de-mar “super... hiper... revitalizador” para começarmos bem o ano que se inicia.

Anyway... many happy returns!


Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO






No comments:

Post a Comment