O JOGADOR: AGULHA NO PALHEIRO
por José Carlos Avellar para EscreVerCinema
Como uma intromissão subversiva na tradição criada pelo filmes norte-americanos produzidos em torno de Hollywood, enquanto conta histórias movimentadas e muito diferentes entre si, o cinema de Robert Altman propõe ao espectador uma imagem excêntrica. Filmando em Hollywood, mas bem ao contrário do que se faz em Hollywood, ele não compõe imagens em que a câmera vê a cena diante dela de um ângulo central, sem perder nenhum detalhe e sem deixar que um gesto secundário desvie a atenção do olhar do que na verdade importa. O espaço dramático não é o de Hollywood, a cena mais dinâmica que a do teatro mas ainda assim devedora do teatro, espaço desenhado como um palco em que os personagens agem voltados para o direto representante da platéia ali ao lado, a câmera. No cinema de Altman nem a cena se volta especialmente para a câmera, nem a câmera parece voltada especialmente para a cena. Dispersa, ela se perde em anotações na aparência irrelevantes, desvia o olhar para um gesto que logo abandona no ar em busca de outro e, principalmente, estica o ouvido para um pedaço de conversa sobre uma questão qualquer que na aparência é mais ruído que fala, que, assim parece, nada tem a ver com o que se discute ali.
Como este gesto narrativo é uma presença constante nos filmes do diretor, como ele se impõe como organizador do processo narrativo independente das histórias contadas, talvez seja possível dizer que a verdadeira questão do cinema de Robert Altman está aqui, neste convite a que o espectador apreenda a imagem como uma forma aberta (sem paredes, e não apenas sem a quarta parede do teatro), e que por isso mesmo, porque aberta para todos os lados, exige um olhar pronto a ver tanto o que parece ser o centro da cena como o que parece estar fora do centro, deslocado como se apenas atrapalhasse a visão da cena.
É como se o cinema – não os filmes, os modos de produção ou uma qualquer particularidade do meio artístico, técnico e econômico da atividade cinematográfica, mas o cinema enquanto um instrumento sensível para melhor compreensão do mundo em que vivemos – é como se o cinema, a imagem essencialmente em movimento, fosse o verdadeiro tema dos filmes de Robert Altman. Se assim é, talvez O jogador (The player, 1992) ocupe uma posição de destaque entre os quase 90 filmes feitos para cinema e televisão, porque se passa em torno de um estúdio de cinema, e porque na cena de abertura, de modo simultâneo, enquanto distribuiu pela imagem os primeiros sinais do conflito que explode adiante, fala mesmo é de cinema.
Já em sua mesa de trabalho Griffin recebe gente que vem contar idéias para um filme: uma segunda parte de A primeira noite de um homem (The graduate, de Mike Nichols, 1967) Ben, Elaine e a senhora Robinson 25 anos mais tarde, Julia Roberts no papel da filha de Dustin Hoffman e Katherin Ross. A aventura de uma estrela da televisão na África: ela encontra uma tribu de anões que passam a adorá-la, uma mistura de Entre dois amores (Out of Africa de Sidney Pollack, 1985) e Garota bonita (Pretty woman, de Garry Marshal, 1990) com muito de Os deuses estão loucos (The Gods Must be Crazy, de Jamie Uys, 1980) e Dollly Parton ou Goldie Hawn no lugar da garrafa de Coca-cola. Um grupo de sobreviventes humanos num planeta distante, com dois sóis. Uma comédia cínica e política, levemente política e ao mesmo tempo com suspense, com Bruce Willis, história de um senador que viaja pelo país empobrecido gastando dinheiro a rodo até o dia em que, depois de um acidente, se transforma num vidente capaz de ler a mente das pessoas, uma mistura de Ghost (de Jerry Zucker, 1990) com Sob o domínio do mal (The Manchurian Candidate, de John Frankenheimer, 1962) e no final assassinam alguém porque é sempre assim nos filmes políticos.
A oposição entre os filmes de planos longos e aqueles outros feitos como clipes musicais, corta! corta! corta! é especialmente divertida porque se dá numa cena em que os diálogos, as falas dos personagens, bem ao contrário da imagem, se faz por meio de uma série de corta! corta! corta! A conversa nem bem começou e muda de rumo ou é atropelada por uma outra fala que não tem nada a ver com o que se discute ou que tenta adivinhar e abreviar a fala do outro, como por exemplo as intervenções de Griffin em busca de uma palavra que defina logo a história que eles querem filmar. Neste longo plano de abertura a imagem é contínua, mas os diálogos são absolutamente descontínuos e fragmentados – inverte-se a ordem do audiovisual que (bem coerentemente com a construção da palavra, primeiro áudio depois visual) mantém a unidade do som sublinhada pela descontinuidade da imagem.
Tudo está aqui, na cena de abertura. É verdade, as muitas voltas que a história dá não podem ser ante-vistas aqui, mas todos os elementos que a compõem já se encontram apontados aqui com clareza – talvez com clareza semelhante à que esconde uma agulha num palheiro, mas estão lá. Se o que se apresenta com clareza não parece tão claro assim, isto se deve ao fato de que o protagonista, Griffin Mill, como também toda a gente do estúdio, não conseguem ver a situação em que se encontram com clareza. Ou seja, o que espectador vê claramente é que se encontra diante de personagens perdidos numa comédia política com suspense e uma boa dose se não de cinismo com certeza de ironia, perdidos como quem procura uma agulha no palheiro.
Todo o filme está no longo plano de abertura – parte, todo, e um todo à parte. E mais que isto, talvez seja possível dizer que todo o cinema de Robert Altman se encontra resumido neste jeito elegante, divertido, irreverente, de dizer, nos muitos pequenos e incompletos flagrantes, incidentes e frases soltas que mostra simultaneamente, uma coisa só: o cinema é um palheiro de agulhas
José Carlos Avelar foi cineasta, e também curador e crítico de cinema,
Coordenou a área de cinema no IMS de 2008 até março de 2016, quando faleceu.
O JOGADOR
(The Player, 1992, 124 minutos)
Direção
Robert Altman
Roteiro
Michael Tolkin
Elenco
Tim Robbins
Greta Scacchi
Fred Ward
Whoopi Goldberg
Peter Gallagher
Brion James
Cynthia Stevenson
Vincent D'Onofrio
Dean Stockwell
Richard E. Grant
Sydney Pollack
Lyle Lovett
Dina Merrill
Gina Gershon
Jeremy Piven
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