Sunday, February 5, 2017

A POÉTICA CONTUNDENTE DE HILDA HILST ABRE A SEMANA COM UM GOSTINHO DE FÉU



ÁRIA AMARÍSSIMA DE UM INSTANTE


Ária Amaríssima de um instante

SOBRE mim o sudário das coisas. Brandura extensa
Camada-transparência sobre as gentes. Vê só:
Eu não te olho com o teu olho que sabe
Que quase tudo em ti é transitório. Meu olho-liquidez
Descobre uma tarde esvaída, tarde-madrugada
Tempo alongado onde te fizeste em viuvez.
Não perdeste a mulher ou o homem que amavas. Amamos tanto
E a perda é cotidiana e infinita. Não é isso
AGORA
Quando te olho e sei de um Tempo-Tarde-Madrugada alongada.
Olhaste à tua frente, ou do lado ou acima de ti
Ou não olhaste, ou de repente alguém entrou na tua sala
E disse claramente: devo dizer que sim àqueles da Extens Union?
Que sim? A quem? E sou eu mesmo, este que está aqui?
Distância, sigilosa incongruência, eu mesmo?
A boca do outro continua: prazo perda dez por cento solução final…
Solução final final… Te dobras inteiro com muita sobriedade
O documento na última gaveta, bem à esquerda… Meu Pai,
Entre o papel e eu, entre esta mesa e eu
E essa boca inteira debulhada, entre eu mesmo e aquele
Que repete Union Union, que filamento? Âncora,
Tempo coagulado, um dia fui descanso e pastoreio. Um dia
Tudo era eu, bulbo que seduzia, goela clarividente
Uivo gordo viscoso, uivei entre as parreiras, uivei
Porque sabia deste AGORA,
Que a cadela do Tempo me roia, ia roer, rosnava me roendo
Cadela-tempo, tu e eu… que contorno de nada, que coisa ida
Nossa dúplice aventura, que… que sim, que sim… Olha:
Diga que sim a esses da Extens Union.



(texto extraído do encarte à edição
de “Cadernos da Literatura Brasileira”,
editado pelo Instituto Moreira Salles
São Paulo, número 8, Outubro de 1999)




Hilda Hilst nasceu em 21 de Abril de 1930
na cidade de Jaú, São Paulo.
Foi uma grande poeta e ficcionista,
além de cronista e dramaturga,
e é considerada pela crítica especializada
como uma das maiores escritoras
em língua portuguesa do século XX.
Publicou em vida 24 volumes de poemas,
12 de ficção e 8 peças de teatro.
Morreu na cidade de Campinas,
no dia 4 de Fevereiro de 2004.




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