CINEMA SOCIAL SIM, GRAÇAS A DEUS!
por Sérgio Prior para Sétima Arte
Quem é ingênuo de imaginar que a terra da Rainha Elizabeth é um paraíso vai mudar radicalmente de opinião após assistir ao filme vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes, em maio de 2016?
O diretor inglês Ken Loach, que tem como temática recorrente as preocupações de ordem social e humana, faz da odisséia de Daniel Blake (Dave Johns), que após sofrer um infarto do miocárdio tenta recorrer ao auxílio-doença e esbarra numa infindável rede burocrática que o acaba por jogar o protagonista numa condição de miséria, tendo que se desfazer de quase tudo que tinha amealhado ao longo da vida.
Loach fala em nome de todos aqueles que não vivem no topo da pirâmide econômica de suas sociedades (e quem já passou por situação semelhante em nosso país entende com facilidade as mazelas com que quais Daniel Blake tem de lidar).
O filme não é panfletário.
Não se trata de propaganda política "comunista".
É uma defesa do homem comum, digno, trabalhador, que apesar de viver num estado de carência econômica, consegue compartilhar o muito do poder solidário que possui com todos à sua volta, particularmente com Katie (Hayley Squires), desempregada, que vivia em situação de penúria com seus dois filhos.
Daniel Blake, um carpinteiro, que tenta voltar a trabalhar e não consegue, que recorre ao auxílio-doença e não consegue, não perde sua humanidade em momento algum de sua cruzada contra a "burrocracia" terceirizada de um país que sempre se orgulhou do tratamento que dá aos seus cidadãos.
Prepare-se para uma dose de Realismo Ingles, não muito distante de seu primo italiano mais conhecido e festejado.
O desfecho é de levar qualquer ser minimamente sensível às lágrimas.
Emoção à flor da pele.
Cinema social sim, graças a Deus!
UM FILME CONTUNDENTE E PERTINENTE
por Carlos Cirne para Colunas & Notas
Com uma bagagem de 15 prêmios internacionais – incluindo a Palma de Ouro em Cannes, 2016 – e outras tantas indicações, chega ao Brasil “Eu, Daniel Blake”, novo filme do octogenário Ken Loach, em excelente forma. Isso é facilmente verificado em seu currículo, que inclui dois prêmios Bafta, oito no Festival de Berlim, nove em Veneza e dezesseis em Cannes, em várias categorias, para falar apenas dos principais, durante toda sua carreira.
Daniel Blake (o estreante Dave Johns) é um carpinteiro viúvo que, aos 59 anos, sofre um ataque cardíaco e é afastado do trabalho pelos médicos para recuperação. Neste ponto começa o Calvário de Blake, para conseguir receber a pensão do Governo, enquanto não pode retornar às suas funções. Acontece que, para obter a pensão, Blake deve passar por uma perícia que acaba considerando-o apto para o trabalho, o que o transforma num desempregado às vistas da burocracia oficial. Ele deve então solicitar um Auxílio Desemprego, o que não pode fazer sem estar procurando emprego, o que não pode fazer porque os médicos não o liberam... Um círculo vicioso sem fim.
Com um agravante: as providências devem ser tomadas digitalmente, on-line, e Daniel é um completo analfabeto digital. Em meio a tudo isso – a desumanidade do serviço público, a incongruência das leis e o dinheiro acabando -, ele acaba conhecendo Katie (Hayley Squires), uma mãe solteira de dois filhos – a pré-adolescente Daisy (Briana Shann) e o irrequieto Dylan (Dylan McKiernan) -, que acaba de se mudar para Newcastle, vinda de Londres, onde não conseguia mais arcar com suas despesas. E as coisas na nova cidade não serão muito diferentes.
Com doses perfeitas de humor, carinho e desespero, o lindo roteiro de Paul Laverty, autor, entre outros, de dois recentes filmes de Loach – “A Parte dos Anjos” (2012) e “Jimmy’s Hall” (2104) -, foca na bela relação que se estabelece entre Daniel e Katie, assim como num perceptível sentimento de solidariedade demonstrado por praticamente todos que cruzam o caminho destes dois desafortunados. Com exceção, é claro, dos automatizados funcionários públicos (quase todos) que, seja pessoalmente seja por telefone, repetem incessantemente as instruções de seus manuais, sem a menor margem de manobra no trato com pessoas reais e seus problemas reais. Não há instruções neste sentido.
O destaque do filme fica por conta do elenco, coeso e empático, do protagonista estreante a seu interesse romântico Katie, passando pela funcionária pública, Ann (Kate Rutter), e o vizinho contrabandista “do bem”, China (Kema Sikazwe). E repare também na desenvoltura das crianças, Briana e Dylan. Impressionante.
Contundente e muito pertinente, principalmente num país onde se discute reformas no sistema previdenciário como o nosso, “Eu, Daniel Blake” é programa obrigatório. E, além de tudo, é cinema de entretenimento de excelente qualidade. Não perca!
EU, DANIEL BLAKE
(I Daniel Blake, 2016, 100 minutos)
Roteiro e Direção
Ken Loach
Elenco
Dave Johns
Hayley Squires
Briana Shann
Dylan McKiernan
Kate Rutter
Kema Sikazwe
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