O atraso em plena manhã de sábado refletia a cara de poucos amigos. Meu único pensamento consistia em se queixar do táxi que não aparecia. Do outro lado da rua, Cadu gritava até quase se engasgar:
— Jornalista! Professor!
Ele havia me visto e provavelmente puxaria conversa. Desconhece meu nome, fato irrelevante diante da chance de mais um diálogo filosófico. Ou melhor, um monólogo repleto de questionamentos.
— Professor, por que a política não dá futuro?
Entrando no táxi, ouvi novamente frases que provocariam reflexão pelo resto do dia: — Professor, peça para os alunos argumentarem. Peça para que eles expliquem os porquês.
Cadu não fez faculdade. Alguns vizinhos garantem que ele foi oficial da Marinha. Hoje, não exerce profissão alguma atualmente. Vive de pensão do INSS por invalidez.
Ele é o que a sociedade de hoje considera doente mental. Para a vizinhança, mais um maluco beleza, daqueles que provocam risadas, mais um chato a ser evitado. O que diz em alto volume, no meio da avenida ou para qualquer um nas calçadas da Ponta da Praia, costuma ser ignorado.
Todas as culturas apresentam concepções próprias do que é ser normal. São olhares por vezes baseados em perspectivas científicas, por vezes fundamentados em superstições e distorções pseudo-racionais. Os sujeitos que escapam ao padrão tendem a ser ridicularizados, quando não isolados do convívio social.
Os chamados loucos aparecem ao longo da história como seres pouco confiáveis, embora há de se lembrar que muitos deles foram considerados gênios após a morte ou depois de fases de perseguição. Outros eram classificados como mentalmente perturbados em função da capacidade de contestação e de reflexão crítica sobre o mundo ao redor.
Sempre despenteado, vestindo bermuda por cima de uma calça, exibindo dentes amarelados por décadas de fumo e barba por fazer, o filósofo assusta as pessoas nas imediações do canal 6. Os comerciantes mais antigos o valorizam pela solidariedade gratuita. Quando uma das lojas foi assaltada numa madrugada, Cadu foi o único que permaneceu ao lado da proprietária até que a polícia chegasse ao local.
É uma pena que muitos o vejam somente como um ser folclórico, daqueles malucos que todo bairro têm. Recentemente, uma moradora do bairro – depois de me ver ao lado dele – falou como se Cadu fosse um animal de um circo de horrores: — Até que ele é inteligente. Às vezes, canta em inglês e eu presto atenção.
Mal sabia ela que Cadu havia, dois minutos antes, falado sobre Freud, Sartre e Marx, conectando-os à política brasileira como poucos acadêmicos talvez fossem capazes. Refletiu sobre o jornalismo e expeliu a melhor definição que já conheci: — É a literatura do fato!
Na semana passada, o filósofo carregava um nota de R$ 50 para tomar um táxi. Um motorista novato ofereceu uma troca por duas notas de R$ 10. Cadu apenas respondeu:
— Posso ser louco, mas não sou bobo!
Olhando para Cadu, pensei:
— A falta de inteligência sempre encontra abrigo entre os intolerantes.
Marcus Vinícius Batista
é o cronista santista número um, ponto.
É autor de "Quando Os Mudos Conversam"
Realejo Livros)
coletânea de crônicas escritas
entre 2007 e 2015
e mantém uma coluna semanal
no Boqueirão News
que é aguardada com avidez
por sua legião de leitores.
Atendendo a um pedido
de LEVA UM CASAQUINHO,
ele se dispôs a resgatar
algumas de suas crônicas favoritas
escritas nos últimos anos
para republicação no BAÚ DO MARCÃO.
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