Wednesday, February 1, 2017

QUINTA, 19hs, "CERIMÔNIA DE CASAMENTO" ABRE CICLO ROBERT ALTMAN NO MISS, NOVÍSSIMA MORADA DO CINECLUBE PAGU


por José Carlos Avellar
(publicado originalmente em 15/04/2013
no Blog do Instituto Moreira Salles)


Uma intromissão subversiva na tradição criada em Hollywood, os filmes de Robert Altman são uma espécie de casamento entre a tradição do cinema norte-americano e uma recusa dessa tradição, entre uma ordem e uma desordem narrativa, entre concentração e dispersão, improvisação e planejamento.


Ao lado da noiva, mas incapaz de manter o foco na cerimônia, o noivo parece ter um pé no altar e outro na porta da igreja, com vontade de estar ao mesmo tempo nos dois lugares.




Estamos em Hollywood e simultaneamente fora de lá: a câmera não vê a cena daquele ângulo central, privilegiado, nem consegue impedir que um gesto secundário salte ao primeiro plano e desvie a atenção.


No cinema de Altman, nem a ação se volta especialmente para a câmera, nem a câmera parece voltada especialmente para a ação central.


Perde-se em anotações que parecem irrelevantes, desvia o olhar para um gesto e logo o abandona no ar em busca de outro.


E, principalmente: começa a ouvir algo e em seguida estica o ouvido para todo e qualquer ruído, todo e qualquer pedaço de conversa.


Atropela as falas, corta o sentido dos diálogos – ou sugere um outro possível significado para o discurso por meio de um sem número de palavras cruzadas.




Como este gesto narrativo é uma presença constante nos filmes do diretor, que se impõe como organizador do processo narrativo, talvez seja possível dizer que a verdadeira questão do cinema de Robert Altman esteja neste convite a apreender a imagem como uma forma aberta, sem paredes, e não apenas sem a quarta parede do teatro.


Aberta para todos os lados, a imagem exige um olhar pronto a ver simultaneamente o que parece ser o centro da cena, o que está fora do centro e aquilo que nem mesmo está materialmente visível na cena mas faz parte dela: fora de quadro, mas sua própria essência.




Talvez se trate de uma tentativa de compor uma dramaturgia cinematográfica a partir da informação simultânea que o espectador recebe da parte imagem visual, a do cinema, a da pintura, a do desenho, a da fotografia.


Talvez se trate de uma questão à qual a produção cinematográfica dedicou especial atenção entre o final da década de 1960 e o começo da década de 1970.


Dois exemplos para recuperar a memória: uma comédia feita quase somente de imagens sem palavras, Tempo de diversão (Playtime, 1967), de Jacques Tati, onde três, quatro ou mais ações ocorrem simultaneamente dentro de cada plano, e uma comédia feita quase apenas de diálogos, que se superpõem na faixa sonora como os gestos se superpõem em Tati, o filme que chamou a atenção de todos para o cinema de Altman: MASH (1970).




Tudo se move, e ao mesmo tempo.


É como se o cinema – não os filmes, os modos de produção ou qualquer particularidade do meio artístico, técnico e econômico da atividade cinematográfica, mas o cinema enquanto um instrumento sensível para melhor compreensão do mundo em que vivemos, fosse o verdadeiro tema dos filmes de Robert Altman.


Se assim for, talvez o plano de abertura de O jogador (The player, 1992) ocupe uma posição de destaque entre seus quase 90 filmes e possa ser visto como uma espécie de retomada, síntese, reorganização, refilmagem da construção dramática de Cerimônia de um casamento (A Wedding, 1978).




Desse modo, para melhor se divertir com Cerimônia de casamento, convém talvez pegar na memória a abertura de O jogador como algo entre trailer e posfácio a esse filme, nascido segundo Altman da vontade de “usar duas câmeras e disparar 500 mil pés de filme em torno de 48 personagens numa festa de casamento”.




Imaginemos, a caminho da cerimônia de casamento de Muffin Brenner e Dino Corelli, um passeio longo, com pouco mais de oito minutos, como o da câmera de O jogador em torno de personagens que cruzam o pátio de entrada de um estúdio de cinema.


O passeio começa num quadro (uma cena de filmagem do tempo do cinema mudo) na antessala do diretor do estúdio (na verdade começa na advertência: “silêncio no estúdio!” e na claquete que anuncia “sequência 1, tomada 10”).


A recepcionista entra em cena para atender o telefone (depois que uma voz fora de quadro ordena: “ação!”) e é logo advertida para jamais dizer que Joel Levison ainda não chegou (“ele está sempre aqui; diga que está em reunião, mas ele está sempre aqui”) enquanto a imagem, após recuar do quadro para ver a recepcionista e a secretária, sai para a rua que liga os vários escritórios do estúdio (a recepcionista deve sair correndo, ordena a secretária, para pegar os jornais e a correspondência antes da chegada do chefe).


Já no espaço aberto, a imagem sobe, acompanha a secretária, muda de direção ao descobrir um carro que chega veloz e vem com ele até um outro escritório, o do produtor Griffin Mill, que a duras penas consegue se livrar de um roteirista ansioso, tentando antecipar uma reunião marcada para a semana seguinte.




O passeio não se interrompe aí.


Entre muitos outros incidentes e observações dispersas, a câmera passa por japoneses em visita ao estúdio, por uma jovem de vermelho parecida com Rebecca de Mornay, pelo comentário de dois produtores sobre a venda do estúdio, pelo atropelamento de um ciclista, por uma conversa sobre a oposição entre filmes de planos longos e aqueles outros feitos como clipes musicais (corta! corta! corta!), por um visitante parecido com Scorsese, por um roteirista com um projeto inspirado numa mistura de Uma linda mulher e Os deuses devem estar loucos.


Assim, enquanto parece falar de tudo ao mesmo tempo e de nada em particular, como um bate-papo disperso e sem rumo certo, o filme coloca o espectador dentro da história que vai contar adiante, pouco antes de efetivamente começar a contá-la.




Lembremos a cena como um posfácio a Cerimônia de casamento, entre outros motivos porque o ritual do casamento entre a herdeira dos Brenner e o herdeiro dos Corelli é uma história contada nesse mesmo tom de múltipla cerimônia (a do narrador, a dos noivos, a dos convidados e a dos intérpretes, sem esquecer a do espectador no cinema) e com um especial sabor de um post-scriptum:


Todas as muitas coisas que ocorrem parecem um fim de festa, o resultado de coisas vividas antes –- umas tantas histórias entre o noivo e a irmã da noiva, entre o irmão da noiva e os comprimidos para epilepsia, entre os parentes do noivo e a máfia.


Um pandemônio: antes de começar, a festa já acabou.



José Carlos Avelar foi cineasta, e também curador e crítico de cinema,
Coordenou a área de cinema no IMS de 2008 até março de 2016, quando faleceu.


CERIMÔNIA DE CASAMENTO
(A Wedding, 1978)

Roteiro, Produção e Direção
Robert Altman

Direção de Fotografia
Charles Rosher



Elenco
Desi Arnaz Jr.
Caroll Burnett
Lilian Gish
Geraldine Chaplin
Mia Farrow
Viveca Lindfords
Dina Merrill
John Cromwell
Lauren Hutton
Paul Dooley
Vittorio Gassman
John Considine
Luigi Proietti
Amy Stryker
Dennis Christopher
Gerald Busby
Peggy Ann Garner
Mark R. Deming
Lesley Rogers
Tim Thomerson
Marta Heflin
Mary Seibel
Margaret Ladd
Nina Van Pallandt
Belita Moreno
Virginia Vestoff
Pat McCormick
Ruth Nelson
Cory Ann Ryerson
Cedric Scott
Craig Richard Nelson
Jeff Perry
Howard Duff
Beverly Ross
Allan F. Nicholls
Dennis Franz
Pam Dawber
Gavan O'Herlihy
Robert Fortier
Bert Remsen
















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