Saturday, February 25, 2017

NO CENTENÁRIO DE ANTHONY BURGESS, RESGATAMOS UMA ENTREVISTA DOS ANOS 70



O fabuloso escritor inglês Anthony Burgess completa 100 anos de nascimento neste sábado, 25 de Fevereiro de 2017.

Quando concedeu esta entrevista a John Cullinam, da The Paris Review, entre 1971 e 1972, Burgess estava no auge de sua popularidade por conta do sucesso internacional de "A Laranja Mecânica", filme de Stanley Kubrick baseado em seu romance de mesmo nome. 

Nas palavras de Cullinam: "durante a visita de dois dias ao Centro de Estudos do Século XX da Universidade de Wisconsin, a agenda de Burgess estava sobrecarregada: mal havia intervalos entre as visitas a classes, conferências sobre ]oyce e entrevistas. Apesar de parecer cansado com tal rotina, Burgess não optou por restringir o fluxo de suas respostas; e os trechos falados, quando combinados com a correspondência anterior, parecem tão lapidados quanto um texto."

Ao morrer em 1993, Burgess deixou uma obra extensa e muito variada, onde estudos sobre música erudita, catolicismo e culturas milenares convivem pacificamente com William Shakespeare e o melhor da literatura de ruptura produzida no mundo inteiro desde "Tristam Shandy" de Laurence Sterne.

Senhoras e Senhores: Anthony Burgess.



- O senhor está de alguma forma aborrecido com as acusações de que é prolífico demais ou de que seus romances são muito alusivos?

Tornou-se pecado ser prolífico somente desde que o grupo de Bloomsbury - principalmente Forster - transformou em uma questão de boas maneiras produzir, por assim dizer, sovinamente. Tenho ficado menos aborrecido pelo fato de zombarem de minha alegada superprodução do que pela insinuação de que escrever muito significa escrever mal. Sempre escrevi com grande cuidado, e até com certa lentidão. Simplesmente dedico mais horas por dia a essa tarefa do que alguns escritores parecem ser capazes de dedicar. Quanto às alusões - significando, suponho, alusões literárias -, isso está, com certeza, dentro da tradição. Todo livro tem por trás de si todos os outros livros que já foram escritos. O autor está a par deles; o leitor devia estar a par, também.

- A que hora do dia costuma trabalhar?

Não acho que isso tenha muita importância; trabalho pela manhã, mas acho a tarde um bom momento para se trabalhar. A maioria das pessoas dorme a esta hora. Sempre achei a tarde um bom período, principalmente se não se almoçou demais. É um período calmo. É a hora em que o corpo não está muito atento, nem muito receptivo - o corpo está quieto, sonolento; mas a mente pode estar bastante aguçada. Acho, também, que o inconsciente tem o hábito de se impor à tarde. De manhã é a vez do consciente, mas a tarde é um período em que deveríamos lidar muito mais com o interior da consciência.

- Isso é muito interessante.

Por outro lado, Thomas Mann escrevia todos os dias, religiosamente, das nove à uma, como se batesse cartão. Sim. Pode-se trabalhar das nove à uma, creio que é o ideal; mas acho que a tarde deve ser usada. A tarde sempre foi um bom período para mim. Penso que começou na Malásia, quando eu estava escrevendo. Trabalhava a manhã toda. A maioria de nós dormia à tarde; era muito calmo. Até os servos dormiam, até os cachorros dormiam. Podia-se ficar tranqüilamente trabalhando sob o sol, até escurecer, e a gente estava pronta para os acontecimentos da noite. Faço a maior parte de meu trabalho à tarde.

- O senhor imagina um leitor ideal para seus livros?

O leitor ideal de meus romances é um católico relapso e músico fracassado, míope, daltônico, auditivamente tendencioso, que tenha lido os mesmos livros que eu. Deve, também, ter mais ou menos a minha idade.

- Na verdade, um leitor muito especial. Então o senhor escreve para um público limitado e muito instruído?

Onde teria Shakespeare chegado, se tivesse pensado apenas em um público especializado? O que fez foi tentar agradar a todos os níveis, com alguma coisa para os mais refinados intelectuais (que haviam lido Montaigne) e muito mais para os que apreciavam apenas sexo e sangue. Gosto de inventar um enredo que tenha um apelo moderadamente amplo. Mas, veja The waste land, de Eliot, muito erudito, que, talvez por seus elementos mais populares e seu apelo retórico básico, encantou os que a princípio não o entenderam, mas esforçaram-se e acabaram por entendê-lo: o poema, fim de linha das viagens polimáticas de Eliot, tornou-se ponto de partida para a erudição de outras pessoas. Penso que todo autor deseja formar seu público. Mas à sua própria imagem, e seu público inicial é o espelho.

- Importa-se com o que os críticos pensam?

Fico zangado com a estupidez de críticos que, obstinadamente, recusam-se a perceber do que meus livros tratam realmente. Noto malevolência, principalmente na Inglaterra. Crítica desfavorável, feita por alguém que admiro, magoa terrivelmente.

- O senhor mudaria o sentido de um livro - ou de qualquer projeto literário - por causa dos comentários de um crítico?

Não creio - salvo a exclusão de todo o capítulo final de A clockwork orange - que já me tenham pedido para modificar o que escrevi. Sinto que o autor tem de conhecer melhor o que está escrevendo - do ponto de vista de estrutura, intenção, e tudo o mais. O crítico tem a função de explicar elementos profundos de que o autor poderia não ter consciência. Quanto a dizer onde - tecnicamente, em questões de gosto, e assim por diante - um escritor está errado, raramente o crítico diz algo que o autor ainda não saiba.



- O senhor mencionou a possibilidade de trabalhar com Stanley Kubrick na versão cinematográfica da vida de Napoleão. Consegue mesmo assim manter a independência, ao planejar o romance que está escrevendo atualmente sobre Napoleão?

Agora o projeto sobre Napoleão, que começou com Kubrick, ultrapassou Kubrick. Descobri que eu estava interessado no assunto de uma maneira que não sugeria uma adaptação cinematográfica e estou trabalhando em uma coisa que Kubrick não poderia usar. E pena o dinheiro etc., mas, por outro lado, fico feliz por me sentir livre, sem ninguém me vigiando.

-Trabalhar como crítico profissional ajudou-o ou prejudicou-o ao escrever os romances?

Não prejudicou, em absoluto. Não me impediu de escrever romances. Facilitou. Forçou-me a entrar em áreas onde não teria entrado voluntariamente. Pagou as contas, o que raramente os romances fazem.

- Fazer resenhas levou-o, involuntariamente, a novos assuntos ou livros, que então tornaram-se importantes para o senhor?

É bom para um escritor fazer resenhas de livros que não se espera que conheça ou o agradem. Escrever críticas para revistas como Country life (que cheira mais a cavalos do que a encadernações de couro) significa produzir uma bela e heterogênea fornada que freqüentemente revela algum valor para a obra de um autor criativo. Por exemplo, tive que escrever a resenha de livros sobre administração de estrebarias, bordados, motores de carro - material muito útil, sólido, perfeito para romances. Fazer a crítica de uma pequena conferência de Lévi-Strauss sobre antropologia (sobre a qual ninguém mais queria escrever) foi o começo do processo que me levou a escrever o romance MF.

- O senhor salientou a importância da pontualidade para um bom resenhista. Acha que um escritor criativo também precisa se ater a um rigoroso programa de trabalho?

O exercício da pontualidade em entregar trabalhos é um aspecto da boa educação. Não gosto de me atrasar para compromissos; não gosto de implorar indulgência de editores na questão de prazos de entrega não cumpridos. Boas maneiras jornalísticas tendem a levar a uma espécie de autodisciplina no trabalho criativo. E importante que se prepare um romance com certa rapidez. Gastar muito tempo com ele, ou deixar grandes intervalos entre uma sessão de escrita e outra, faz com que se perca a unidade do trabalho. Esse é um dos problemas com Ulysses. O fim é diferente do começo. A técnica muda no meio do caminho. Joyce gastou muito tempo no livro.

- Está sugerindo que o monólogo de Molly Bloom é um fim inadequado porque é tecnicamente diferente dos primeiros três capítulos dedicados a Stephen Dedalus?

Não me refiro ao fim propriamente dito de Ulysses. Digo que a partir do episódio do Ciclope, Joyce decide encompridar os capítulos para fazer o tempo de leitura corresponder ao tempo da atuação. Nesse sentido, o livro não é uma unidade tanto quanto as pessoas gostam de pensar. Compare o episódio de Eólio com o dos Bois do Sol e entenderá o que quero dizer.

- Considerando o tempo que Proust gastou em seu romance e que Mann devotou a José e seus irmãos, seriam sete anos realmente tanto tempo para uma obra tão importante quanto Ulysses?

Que dizer, então, dos dezessete anos que Joyce desperdiçou com Finnegans wake? - Talvez o tempo gasto para escrever um livro não seja, realmente, da conta do leitor (Madame Bovary, um livro comparativamente curto, com certeza levou mais tempo para ser escrito do que a trilogia de José). A questão toda é se o escritor consegue ou não ser a mesma pessoa durante um longo período de tempo, com as mesmas metas e a mesma postura em relação à técnica. Sendo inovador, Ulysses tinha que continuar sendo cada vez mais inovador à medida que era escrito, e isso confere a ele uma espécie de desunião. Embora tivesse levado muito mais tempo, Finnegans wake, teve sua técnica básica estabelecida muito antes.



- Seu novo livro, Joysprick, vai ser publicado em breve, suponho. Qual a diferença de ênfase entre ele e Re: Joyce?

Refere-se um pouco ao mesmo assunto, mas não muito. É uma tentativa de examinar a natureza da linguagem de Joyce, não de um ponto de vista estritamente lingüístico, mas de um ponto de vista que pode ser situado exatamente no meio do caminho entre a crítica literária e a lingüística. Não emprega muitos termos técnicos. Faz uma análise fonética da linguagem de Joyce; hoje em dia não há muitos lingüistas que possam fazer isso. A fonética está um tanto fora de moda. Mas examina os dialetos de Ulysses, a importância de se estabelecer uma pronúncia em Finnegans wake, uma análise da forma como Joyce constrói a frase. Não é um livro profundo; destina-se a ser um guia à linguagem de Joyce para principiantes. O verdadeiro trabalho de investigar o método lingüístico de Joyce deve ser deixado a alguém mais erudito do que eu.

- O senhor diz que está adotando o que chama de abordagem fonética antiquada da linguagem de Joyce e, contudo, em MF, utiliza-se do estruturalismo de Lévi-Strauss. Está, de alguma forma, interessado em considerar Joyce do ponto de vista da lingüística estrutural?

Acho que essa não é minha especialidade; acho que isso deve ser deixado a um estudioso. Acho que alguém tem de estar em uma universidade, não estar ocupado como eu na produção de livros, aulas e conferências e em levar uma vida artística bastante variada; esse é um trabalho para um especialista pacato. Não me considero qualificado para tanto. Estou interessado nos sons que Joyce está ouvindo ao escrever a fala de Molly Bloom, Leopold Bloom e dos personagens menores. É um assunto de grande importância literária, em minha opinião, porque o monólogo final de Molly Bloom tende a um determinado modo de falar que não está em conformidade com sua formação declarada. Há em Joyce, neste ponto, algo pouco plausível no fato de Molly Bloom ser filha de um major, educada na guarnição de Gibraltar, e ir a Dublin falando e pensando como qualquer mulher de pescador de Dublin. Isso parece ser totalmente inconsistente, e a questão nem mesmo foi levantada antes. Conheço Gibraltar melhor do que Joyce, e melhor do que a maioria dos especialistas em Joyce. Estou tentando examinar esta questão.

- Se o monólogo de Molly é por demais elegante, não é próprio de Joyce fazer o poético surgir do vulgar?

Não é o suficiente. Refiro-me ao fato de que usa locuções irlandesas como "Pshaw" (arre!). Ela não deveria usar tal termo, não deveria.

- Existe uma questão geográfica.

Existe um modelo envolvido. Existe uma questão social. Em uma praça-forte muito pequena como Gibraltar, com esse homem, major Tweedy, cuja mulher anterior é espanhola, sua filha meio-espanhola falaria como língua materna ou espanhol (não com a gramática de costume) ou inglês - mas certamente, no primeiro caso, de uma maneira andaluza e, no segundo, com uma dicção pseudo-aristocrática. Ela não poderia voltar a Dublin e de repente começar a falar como uma vendedora de peixe.

- Assim, a linguagem de Molly é provavelmente, em termos de educação social, mais próxima da de Nora Barnacle.

Na verdade, é; essa imagem final é uma imagem de Nora Barnacle e não, de modo algum, de Molly. E, como sabemos por meio da correspondência de Nora, Joyce deve ter estudado as cartas e aprendido com elas como estabelecer esse modelo afetuoso de linguagem feminina. Nora escrevia as cartas completamente sem pontuação e, às vezes, é difícil distinguir entre um trecho de uma das cartas de Nora e um trecho do monólogo final de Molly.

- Estou aguardando ansiosamente esse livro. Já pensou em escrever um romance longo, extenso?

Tenho em mente dois romances longos - um sobre uma família teatral desde a Idade Média até hoje, o outro sobre um grande compositor britânico. Os projetos são tão grandes que tenho medo de começar a trabalhar neles.

- Conseguiria começar com alguns trechos em forma de contos?

Não consigo escrever contos, pelo menos não com facilidade, e prefiro manter meu romance no escuro até que esteja pronto para a luz. Uma vez cometi o erro de publicar um capítulo de um romance na Transatlantic Review e a visão do fragmento impresso fez com que eu me voltasse contra o projeto. Esse é meu único romance inacabado.

- O senhor tem esperança de escrever sobre o encontro de Teseu com o Minotauro, ou o cenário de Rawcliffe em Enderby concluiu esse projeto?

Quanto à idéia do Minotauro, pensei em publicar um volume com todos os poemas de Enderby e eles incluiriam The pet beast (que, aliás, foi o título da tradução italiana de Enderby: La dolce bestia). Posso perceber o sentido de fingir que outra pessoa escreveu o livro para a gente, principalmente um livro de poesia. Livra-nos de responsabilidade - "Olhe, sei que isto está ruim, mas não fui eu quem escreveu, um de meus personagens o fez". Dom Quixote, Lolita, Ada:- é uma antiga e ainda ativa tradição.



- O senhor escreve primeiro as grandes cenas, como fazia Joyce Cary?

Começo no início, continuo até o fim, então paro.

- Faz o projeto completo de cada livro antes de começar?

A princípio planejo um pouco - lista de nomes, sinopse rudimentar dos capítulos etc. Mas não ouso planejar demais; tantas coisas são produzidas pelo simples ato de escrever.

- O senhor escreve não-ficção de forma diferente?

O processo é o mesmo.

- O produto acabado é muito influenciado pelo fato de escrever o primeiro rascunho à máquina?

Não faço rascunhos. Escrevo a página número um muitas, muitas vezes, e passo para a página número dois. Empilho folha após folha, cada uma em seu estado definitivo e, finalmente, tenho um romance que - em minha opinião - não precisa de revisão.

- Então não faz nenhuma revisão?

A revisão, como expliquei, é feita a cada página, não a cada capítulo ou com o livro todo. Revisar todo um livro me deixaria entediado.

- Por que o senhor resolveu continuar Inside Mr. Enderby, a primeira metade de Enderby, depois de vários anos?

Planejei a obra como o extenso livro publicado nos Estados Unidos, mas - como eu estava chegando ao fim do único ano de vida que os médicos me haviam dado - não consegui fazer mais do que a primeira metade em 1950-60. A relutância dos editores em publicar Inside Mr. Enderby (como a. primeira parte se chamava na Inglaterra) fez-me adiar a segunda parte. Mas eu já tinha tudo na cabeça, desde o começo.



- Depois que os médicos diagnosticaram um tumor cerebral após o colapso que sofreu em sala de aula, em Brunei, por que o senhor escolheu escrever durante aquele "ano terminal", em vez de, digamos, viajar?

Ficou reduzido à condição de semi-invalidez? Eu não era semi-inválido. Estava ativo e em boas condições físicas (o que me fazia duvidar da veracidade do diagnóstico). Mas para viajar pelo mundo é preciso dinheiro, e isso eu não tinha. Somente na ficção as pessoas no "último ano de vida" têm alguma coisa escondida. O fato é que minha mulher e eu precisávamos comer etc., e o único trabalho que eu podia fazer (quem me daria um emprego?) era escrever. Escrevia muito porque me pagavam pouco. Não tinha um grande desejo de deixar um nome na literatura.

- Seu estilo de algum modo mudou durante aquele ano, por se sentir condenado?

Acho que não. Já tinha idade bastante para ter estabelecido algum tipo de estilo narrativo; mas o problema de trabalhar o estilo surgiu mais tarde, é claro. Os romances escritos no chamado ano quase-terminal - ano pseudoterminal - não foram escritos, sabe, com pressa excessiva; era apenas uma questão de trabalhar com afinco todo dia - e o dia todo - inclusive à noite. Fui bastante cuidadoso com as obras, e o que as pessoas procuram no que parece uma quantidade excessiva de produção é alguma evidência de falta de cuidado. Pode ser que haja um pouco disso; mas não é devido à rapidez ou aparente rapidez, mas sim por minhas imperfeições. Não creio que seja possível dizer que um determinado trabalho foi obviamente escrito durante o ano terminal. Não creio que haja alguma diferença qualitativa entre os diversos romances; e, certamente, eu não estava consciente de nenhuma influência no estilo, na forma de escrever, causada por essa revelação.

- Vários romances seus contêm poesia escrita por diversos personagens. O senhor pensou seriamente em escrever poesia de novo?

Vi a produção de minha versão de Cyrano de Bergerac. É rimada e funcionou bem, como eu esperava. Mas não planejo volumes de poesia poesia é algo muito pessoal, expõe muito. Planejo outras traduções para o teatro - Peer Gynt, Tchaika, de Tchekhov - e estou trabalhando em um musical de Ulysses. Estou muito mais inclinado a voltar para a música. Fui convidado a escrever um concerto para clarineta e a música que fiz para Cyrano foi bem recebida.

- Usa algumas vezes formas musicais ao planejar seus romances?

Ah, sim, aprende-se bastante com formas musicais. Estou planejando um romance no estilo de uma sinfonia clássica - minueto e tudo. As motivações serão puramente formais, de modo que uma parte de desenvolvimento em que são representadas fantasias sexuais poderá seguir-se a uma exposição realista, sem explicação nem estratagema intermediário, voltando a ela (agora como recapitulação) com a mesma ausência de justificativa psicológica ou artifício formal.

- Os compositores lidam bastante com transições. Não é esse exato exemplo de composição literária por analogia musical um modelo de "artifício formal", entendido melhor pelo leitor que seja ao menos músico amador?

Creio que a música ensina a profissionais de outras artes estratagemas formais úteis; mas o leitor não precisa conhecer sua procedência. Eis um exemplo: um compositor modula de uma clave a outra com o uso do acorde "ambíguo", o sexto aumentado (ambíguo porque é também o sétimo dominante). Em um romance, pode-se mudar de uma cena para outra usando uma frase ou uma afirmação comum a ambas - isso é muito freqüente. Se a frase ou afirmação significa coisas diferentes nos diferentes contextos, fica mais musical ainda.

- Observa-se que a forma de A vision of battlements é destinada a se parecer com a da passacale de Ennis; pode-se, porém, estabelecer mais do que uma tênue analogia entre a literatura e a música em geral?

Concordo que as analogias músico-literárias podem ser tênues, no mais amplo sentido formal possível - formas como sonata, ópera e assim por diante -; mal começamos a explorar as possibilidades. O romance que estou escrevendo sobre Napoleão imita formalmente a Heróica - suscetível, viva, rapidamente transicional no primeiro movimento (até a coroação de Napoleão); lenta, muito calma, com uma cadência que sugere uma marcha fúnebre para o segundo. Isso não é pura fantasia: é uma tentativa de unificar uma grande quantidade de material histórico no espaço relativamente curto de cerca de cento e cinqüenta mil palavras. Quanto ao leitor ter de conhecer música, isso realmente não é muito importante. Em um romance escrevi: "A orquestra atacou um ruidoso acorde de doze notas, todas diferentes". Os músicos ouvem a dissonância, os que não são músicos não ouvem, mas não há nada aí que os impeça de continuar a ler. Não entendo de termos de beisebol, mas' mesmo assim aprecio The natural, de Malamud. Não jogo bridge, mas acho empolgante o jogo de bridge em Moonraker, de Fleming - o que importa são as emoções transmitidas, não o que os jogadores fazem com as mãos.



- Que me diz da técnica cinematográfica como influência em seus escritos?

Tenho sido muito mais influenciado pelo teatro do que pelo cinema. Escrevo cenas longas demais para serem representadas sem interrupção no cinema. Mas gosto de imaginar uma cena antes de escrevê-la, vendo tudo acontecer, ouvindo um pouco do diálogo. Já escrevi tanto para a televisão como para o cinema, mas não com muito sucesso. Era literário demais ou algo assim. Os produtores de filmes históricos me chamam para revisar os diálogos, mas eles acabam saindo na forma original.

- O que aconteceu com as versões cinematográficas propostas para Enderby e Nothing like the sun?

A filmagem de Enderby falhou porque o produtor caiu morto no festival de cinema de Cannes. O projeto Shakespeare surgiu quando a Warner Brothers estava quase sendo vendida, e todos os empreendimentos existentes foram cancelados quando a nova gestão começou. Ainda pode, entreanto ser realizado. O pessoal de cinema é muito conservador no que se refere a diálogos. Acreditam sinceramente que o entendimento imediato do significado lexical é mais importante do que o impacto do ritmo e do som carregado de encenação. É considerado mais inteligente fingir que as pessoas do passado teriam falado como nós, se tivessem tido a sorte de saber como fazê-lo, encantados com a oportunidade de visualizar a si mesmos e a seu tempo de nosso ângulo The lions in winter é considerado uma triunfante solução do problema do diálogo medieval, mas, claro, é apenas vulgar.

- Seu romance em andamento apresenta algum problema lingüístico especial que possa criar obstáculos a Stanley Kubrick também?

O romance de Napoleão é difícil do ponto de vista do diálogo, mas meu instinto me diz para usar ritmos e vocabulário não muito diferentes dos nossos. Afinal de contas, o Don Juan, de Byron, quase que poderia ter sido escrito hoje. Imagino os soldados falando como os soldados de hoje falam. De qualquer forma, estão falando francês. Quanto ao filme de Napoleão, Kubrick deve seguir seu próprio caminho - que certamente será pedregoso.

- O senhor espera escrever outros romances históricos?

Estou trabalhando em um romance destinado a expressar a Inglaterra da época de Eduardo III, usando os estratagemas de Dos Passos. Creio que há um grande campo no romance histórico, desde que não seja feito por Mary Renault ou Georgette Heyer. O século XIV de meu romance será evocado principalmente em termos de odores e sentimentos viscerais, e terá laivos de um nojo geral em vez de nostalgia romântica.

- Que técnica de Dos Passos vai usar?

O romance que tenho em mente, para o qual escrevi um plano de noventa páginas, é sobre o Príncipe Negro. Achei que seria divertido surrupiar com espalhafato os estratagemas da câmara-olho do cinejornal de Dos Passos, apenas para ver como poderiam funcionar, principalmente com a peste negra, Crécy e a campanha espanhola. O resultado poderia ser o século XII acontecer em outra galáxia, onde a linguagem e a literatura tivessem de alguma forma chegado ao século XX A técnica poderia fazer os personagens históricos parecerem remotos e um tanto cômicos - e é isso o que desejo.

- São tão ruins assim os contos dos mitos gregos reescritos por Mary Renault?

Oh, não são ruins, longe disso. Excelente leitura para quem gosta desse tipo de coisa. Simplesmente não me atraem, só isso. Sem dúvida é culpa minha.

- O senhor espera escrever outro romance sobre o futuro, como A clockwork orange ou The wanting seed?

Não tenho planos para um romance sobre o futuro, exceto uma história louca em que a Inglaterra se transforma em um simples parque de di-ersões administrado pelos Estados Unidos.

- Como se a Inglaterra se tornasse uma gigantesca butique para turistas - ou o qüinquagésimo primeiro estado?

Costumava pensar que a Inglaterra podia se tornar apenas um lugar bom de visitar - como aquela ilha em Mary Rose, de J. M. Barrie -, mas agora vejo que tantas das coisas dignas de serem vistas - coisas antigas - estão desaparecendo, de modo que a Inglaterra pode se tornar uma gigantesca Los Angeles, só auto-estradas, onde movimentar-se passa a ser mais importante do que realmente ir a algum lugar. A Inglaterra está entrando na Europa, e não - como eu supunha e até desejava - na América, e creio que agora terá. os defeitos da Europa, sem as virtudes. O sistema decimal é uma monstruosidade e logo haverá litros de cerveja como em 1984 e não haverá vinho barato nem fumo caporal. De qualquer forma, assimilação, já que a Inglaterra tem que assimilar ou ser assimilada. Napoleão venceu.



- O senhor mencionou que A clockwork orange tem um capítulo final na edição britânica que não consta das edições americanas. Isso o incomoda?

Sim, detesto ter duas versões diferentes do mesmo livro. A edição norte-americana tem um capítulo a menos e, por isso, o plano aritmológico fica atrapalhado. Além disso, a opinião implícita de que a violência juvenil é uma fase para se atravessar e depois superar está ausente da edição norte-americana; e isso reduz o livro a uma simples parábola, quando a intenção era que fosse um romance.

- O que acontece nesse vigésimo primeiro capítulo?

No capítulo 21, Alex torna-se adulto e percebe que a ultraviolência é um pouco enfadonha, e está na hora de arrumar uma esposa e uma coisinha delicada e adorável que o chame de papai. Essa era para ser uma conclusão de uma pessoa amadurecida, mas nos Estados Unidos ninguém gostou da idéia.

- Stanley Kubrick considerou a possibilidade de filmar a versão de Heinemann?

Quando estava na metade das filmagens, Kubrick descobriu a existência deste último capítulo, mas era muito tarde para pensar em alterar a idéia. De qualquer modo, sendo ele também norte-americano, achou esse final muito água-com-açúcar. Já não sei o que pensar. Afinal de contas, faz doze anos que escrevi isso.

- O senhor já tentou fazer com que o romance completo fosse publicado aqui?

Sim - bem, estava muito indeciso sobre o livro em si, Quando o escrevi, meu agente não queria submete-la a um editor, o que é um tanto insólito; e os editores que existem na Inglaterra ficaram indecisos a respeite do livro. Assim, quando o editor norte-americano fez objeção ao último capítulo, não me achei em posição muito segura. Estava um pouco hesitante para julgar o livro; estava próximo demais dele. Pensei: bem, talvez estejam certos. Porque os autores (principalmente depois da conclusão de um livro) tendem mesmo a ser muito inseguros quanto ao valor da obra; e talvez eu tenha cedido por fraqueza, mas minha preocupação era, em parte, de ordem financeira. Queria que o livro fosse publicado nos Estados Unidos e queria ganhar algum dinheiro com isso. Portanto, disse "sim". Se hoje diria sim, não sei; mas tantos críticos me persuadiram que o livro é melhor em sua forma norte-americana, que digo: "Está bem, eles é que sabem".

- Seria possível a uma editora americana publicar uma limitada edição de capa dura do livro que inclua o capítulo excluído como uma espécie de apêndice?

Creio que sim. A melhor maneira seria publicar uma edição comentada do livro, com o último capítulo - idéia que vem sendo recusada por meus editores, por alguma razão que desconheço. Eu estaria muito interessado nos comentários do estudante americano comum sobre as diferenças entre as duas versões. Porque agora não consigo julgar claramente se eu estava certo ou errado. Qual é a sua opinião, como se sente a respeito?

- Acho o último capítulo problemático, visto que, como cria um contexto completamente diferente para a obra, parece anticlimático, depois da hábil ressurreição do velho Alex no vigésimo capítulo.

Sei.

- Mesmo assim, deveria permanecer, porque o que o senhor quer dizer fica alterado pelo corte.

Bem, o pior exemplo que conheço de versão injustificada está em Parede's end, de Ford Madox Ford, onde, na edição britânica, publicada pela Bodley Head, Graham Greene chamou a si a responsabilidade de apresentar Parede's end como trilogia, dizendo não considerar o último romance, The last post, decisivo para o enredo, e que talvez Ford tivesse concordado com ele; portanto, tomou a liberdade de livrar-se do último livro. Penso que Greene está errado; penso que seja o que for que Ford tenha dito, a obra é uma tetralogia e fica seriamente mutilada com li perda do último livro, Não se pode confiar num autor para julgar esse tipo de coisa. Freqüentemente, os autores tentam ser indiferentes a suas obras. Com certeza ficam tão enjoados de seus livros que não querem emitir nenhum julgamento seno a respeito deles. O problema vem à baila quando se lê A handful of dust, de Evelyn Waugh, porque o terrível final (onde Tony Last passa o tempo todo lendo Dickens para um mestiço na selva) apareceu antes em um conto; e conhecendo o conto, a gente adota uma estranha atitude para com o livro. O que nos faz sentir que aqui esta mistura é deliberada, onde essa figura gigante que aparece no fim não brota automaticamente do livro, mas é apenas tirada arbitrariamente de outra obra. Talvez não se devesse saber demais sobre essas coisas. É claro que não se consegue evitar. As duas versões de Way of all flesh de Samuel Butler - isso levanta o problema. Que versão deveríamos preferir, qual é a versão correta? É melhor conhecer apenas uma, ignorar completamente o que estava acontecendo por trás da versão que conhecemos.

- Não é esse um argumento contra a publicação de A clockwork orange completo, já que a versão com vinte capítulos está gravada na mente de todo mundo?

Não sei; ambas são relevantes. Parece-me que, em certo sentido, elas exprimem a diferença entre o modo britânico e o americano de encarar a vida. Pode ser que haja algo de muito profundo para se dizer sobre essa diferença nessas duas versões do romance. Não sei; não sou capaz de julgar.

- Em A clockwork orange e em Enderby, principalmente, há um persistente tom de chacota para com a cultura da juventude e sua música. Existe alguma coisa de bom nela?

Desprezo tudo que é obviamente efêmero, e no entanto é tratado como se possuísse alguma espécie de valor supremo. Os Beatles, por exemplo. A maior parte da cultura da juventude, principalmente a música, é baseada no pouco conhecimento da tradição e, com frequência, eleva a ignorância à condição de virtude. Pense nos musicalmente ignorantes que se estabelecem como "arranjadores". E a juventude é tão conformista, tão pouco preocupada com valores dissidentes, tão orgulhosa de ser em vez de fazer, tão segura de que ela e somente ela sabe.



- O senhor costumava tocar em uma orquestra de jazz. Existe alguma esperança de que o interesse que os jovens têm pelo rock possa levá- los até o jazz - ou mesmo até a música clássica?

Ainda toco jazz, principalmente em um órgão elétrico de quatro oitavas, e prefiro isso a ouvi-lo. Não acho que jazz sirva para ouvir, mas sim para tocar. Gostaria de escrever um romance sobre um pianista de jazz, ou melhor, sobre um pianista de bar - o que já fui, como, antes de mim, também o foi meu pai. Não creio que o rock leve a uma apreciação do jazz. Os garotos são deprimentemente estáticos em seus gostos. Querem palavras, e o jazz passa muito bem sem as palavras.

- Em dois de seus romances, os forjadores de palavras Shakespeare e Enderby são inspirados pela Musa. Mas o senhor disse também que gosta de considerar seus livros "obras de artesanato para venda"

Em Nothing like the sun, a Musa não era uma verdadeira musa - era apenas a sífilis. Em Enderby, a garota é realmente sexo. que, como a sífilis, tem algo a ver com o processo criativo. Quero dizer, não se pede ser um gênio e sexualmente impotente. Ainda penso que a inspiração surge do ato de produzir um artefato, uma obra engenhosa.

- As obras de arte seriam produzidas por forte libido?

Sim, acho que arte é libido sublimada. Não se pode ser um padre eunuco e não se pode ser um artista eunuco. Fiquei interessado em sífilis quando trabalhei algum tempo num hospital para doentes mentais repleto de casos de paralisia geral. Descobri que havia uma correlação entre o espiroqueta e o talento dos loucos. O tubérculo também produz uma tendência lírica. Keats tinha ambos.

- Seu interesse pelo Doutor Fausto de Mann influenciou a utilização da sífilis e de outras doenças em sua obra?

Fui bastante influenciado pela tese do Doutor Fausto de Mann, mas não desejaria ter sífilis para ser Wagner, Shakespeare ou Henrique VIII. Alguns preços são altos demais para se pagar. Oh, você vai querer exemplos desses talentos de doentes com paralisia geral. Havia um homem que se transformou em uma espécie de Scriabin, outro que sabia dizer o dia da semana de qualquer data da história, outro que escrevia poemas como Christopher Smart. Muitos pacientes eram oradores ou mentirosos empolados. Era o mesmo que estar preso dentro da história da arte européia. Da política também.

- O senhor já utilizou em seus romances algum dos casos de paralisia geral que encontrou?

Cheguei a ter a intenção de escrever um longo romance - uma espécie de Montanha mágica - sobre a vida em um hospital para doentes mentais; e talvez ainda me dedique a esse trabalho. Claro, o problema é que assumiria uma espécie de significação política. As pessoas poderiam pensar em obras como Cancer ward; poderiam pensar que se apresentava uma nítida separação entre os pacientes e os funcionários do hospital. A gente estaria lidando com uma espécie de alegoria política; é tão fácil fazer isso. Todavia, o que me interessa sobre um hospital de doenças mentais que se especializa em paralisia é a relação entre a doença e o talento. Algumas das extraordinárias habilidades que esses pacientes demonstram - essas espantosas habilidades loucas - são provenientes do espiroqueta. Tratei do assunto em uns dois romances (ou pelo menos em um), mas para fazer isso em escala maior seria preciso um tipo de fundamento lógico que ainda não elaborei. Não creio que deveria ser feito apenas como romance documentário, uma apresentação naturalista de como é a vida em tais hospitais; mas tenho a impressão de que está ligado a símbolos de alguma espécie - ligado a um significado interior mais profundo. Claro, nunca se sabe o que será esse significado, mas A montanha mágica tem seus significados mais profundos sob a aparência naturalista. Não gostaria de imitar isso. Temo que a gente tenha de esperar - às vezes por muito tempo - que a experiência sofrida se apresente de forma exeqüível, em uma forma que possa ser moldada em algo semelhante a uma obra de arte.



- O senhor vê alguma contradição ao escolher um artífice como Joyce para ser um de seus modelos literários e ao mesmo tempo classificar a si mesmo como um "escritor assalariado"?

Contradição por quê? Na verdade, nunca considerei Joyce um modelo literário. Joyce não pode ser imitado, e não há nenhuma imitação de Joyce em minha obra. Tudo que se pode aprender com Joyce é o emprego correto da linguagem. "Escritor assalariado" refere-se ao dr. Johnson tanto quanto aos nossos deploráveis colunistas, e Johnson empregava a linguagem com exatidão.

- O senhor certamente estudou Joyce a fundo. Conhecer o que ele fez abre mais portas do que fecha?

Joyce somente abriu as portas para seu próprio mundo restrito; seus experimentos serviam só para si. Mas todos os romances são experimentais e Finnegans wake não é um experimento mais espetacular do que, digamos, Prancing nigger ou His monkey wife. Acredite se quiser, MF é um experimento completamente original.

- O esforço de Joyce em dedicar praticamente todo um romance ao inconsciente não é mais do que um experimento puramente lingüístico?

Sim, é claro. O mundo consciente só é restrito porque está entorpecido, preso a uma única tendência de impulsos, tem poucos personagens.

- Os escritores contemporâneos podem empregar algumas das técnicas de Joyce sem serem meros imitadores?

Não se pode empregar as técnicas de Joyce sem ser Joyce. Técnica e material são uma coisa só. Não se pode compor como Beethoven sem compor Beethoven, a menos que você seja Beethoven.

- Nabokov de alguma forma influenciou sua obra? O senhor teceu altos elogios a Lolita.

Ter lido Lolita foi traduzido por mim pelo prazer em listar coisas em The right to an answer. Não tenho sido muito influenciado por Nabokov nem pretendo ser. Já escrevia da maneira como escrevo antes de saber que ele existia. Mas fazia quase uma década que um escritor não me impressionava tanto.

- Contudo o senhor foi chamado de "Nabokov inglês", provavelmente por causa do tom cosmopolita e da destreza verbal em seus escritos.

Nenhuma influência. Ele é russo, eu sou inglês. Temos alguns dons naturais em comum. Porém ele é muito artificial.

- De que maneira?

Nabokov é um dândi inato, em escala internacional. Ainda sou um garoto provinciano receoso de estar vestido com elegância exagerada. Todo escrito é artificial e os artefatos de Nabokov são planejados na parte récit. O diálogo é sempre natural e magistral (quando ele quer que seja). Pale fire só é chamado de romance porque: não existe outro termo para ele. Um magistral artefato literário que é poema, comentário, livro de referência, alegoria, estrutura pura. Mas noto que a maioria das pessoas volta a ler o poema, não o que rodeia o poema. Naturalmente, é um excelente poema. Creio que Nabokov se dá mal é, às vezes, por parecer antiquado - uma questão de ritmo, como se para ele Huysmans fosse um escritor moderno e conceituado, cuja tradição merecesse ser imitada. Às vezes John Updike parece antiquado dessa mesma forma - vocabulário e metáforas magníficos, mas falta de força no ritmo.

- Nabokov ocupa a mesma posição de Joyce?

Ele não ficará na história como um dos maiores nomes. Não chega aos pés de Joyce.



- Têm aparecido, ultimamente, alguns novos escritores que o senhor considere destinados a serem grandes?

Não consigo me lembrar de nenhum na Inglaterra. O problema com os escritores norte-americanos é que morrem antes de se tornarem grandes - Nathanael West, Scott Fitzgerald etc. Mailer vai se tornar um grande autobiógrafo. Ellison será grande, mas apenas se escrever mais. Há homines unius libri, como Heller, em demasia.

- Os escritores americanos pelo menos tendem a se apagar cedo. Acha que é necessário mais do que um livro para um escritor ser considerado "grande"?

Um homem pode escrever um grande livro, mas isso não faz dele um grande escritor - apenas o escritor de um grande livro. Way of all flesh, de Samuel Butler, é um grande romance, mas ninguém considera Butler um grande romancista. Penso que, para ser um grande romancista, o escritor tem que expandir-se amplamente e também mergulhar fundo.

- Fitzgerald escreveu um grande romance?

Não considero os livros de Fitzgerald grandes - estilo romântico pouco original, sem aquela visão inocente encontrada em Hemingway. Considero Hemingway um grande romancista, mas ele nunca escreveu um grande romance (um grande conto, sim). Acho que os Estados Unidos gostam que seus artistas morram jovens, em reparação aos pecados de uma nação materialista. Os ingleses deixam essa história de morrer jovem para os celtas como Dylan Thomas e Behan. Mas não entendo o bloqueio literário americano - como em Ellison ou Salinger -, a menos que isso signifique que a pessoa bloqueada não está economicamente forçada a escrever (como acontece, em geral, com o escritor inglês, por falta de algum campus universitário e de subvenções) e, por conseguinte, pode dar-se ao luxo de temer o ataque dos críticos a uma nova obra, não tão boa quanto a última (ou a primeira). Os escritores americanos bebem muito quando estão "bloqueados", e a embriaguez - sendo uma espécie de substituta da arte - piora o bloqueio. Achei melhor beber pouco, principalmente depois que minha primeira mulher, que bebia menos do que eu, morreu de cirrose. Mas fumo muito e, provavelmente, isso é pior do que cinco martinis por dia.

- O senhor tem elogiado Defoe como romancista e jornalista praticante, e também admira Sterne como escritor. Que atração especial esses escritores do século XVIII têm para o senhor?

Admiro Defoe porque ele trabalhava com afinco. Admiro Sterne porque ele fez tudo que os franceses estão tentando fazer agora de forma tão desajeitada. A prosa do século XVIII tem enorme vitalidade e alcance. Fielding não, no entanto. Sentimental, muito dado a artimanhas. Sterne e Swift (que segundo Joyce deveriam ter trocado os nomes) eram homens com quem se pode aprender muito, tecnicamente.

- Falando dos franceses - os jocosos romances de idéias que o senhor escreve tendem a estar na tradição literária francesa, mais, talvez, do que em qualquer outra. Isso impediu-os de se tornarem mais conhecidos na Europa e nos Estados Unidos?

Os romances que escrevo são, realmente, católico-medievais em seu modo de pensar, e hoje em dia as pessoas não querem isso. Deus me livre de que pareçam "franceses". Se não são lidos, é porque o vocabulário é amplo demais, e as pessoas não gostam de usar dicionário quando estão lendo simples romances. Seja como for, não dou a mínima importância.


- Essa ênfase católica explica, em parte, as freqüentes comparações entre seus romances e os de Evelyn Waugh, e no entanto o senhor disse não achar atraente a idéia aristocrática que Waugh tem do catolicismo. O que gosta na obra dele?

Waugh é engraçado, Waugh é distinto, Waugh é moderado. Nele, o que significa menos para mim é seu catolicismo, que desprezo, como todos os católicos de origem desprezam os convertidos. Na verdade, esse seu catolicismo prejudica Sword of honour.

- Essa acusação - juntamente com a de sentimentalismo tem sido feita com freqüência contra Brideshead revisited, mas Sword of honour é amiúde considerado o melhor romance em inglês sobre a Segunda Grande Guerra. De que forma o catolicismo de Waugh (ou de Guy Crouchback) o enfraquece?

O catolicismo de Crouchback enfraquece Sword of honour no sentido de que torna o livro intransigente - quero dizer, temos a visão moral de Crouchback sobre a guerra, e isso não é o bastante: precisamos de alguma coisa que está sob a religião. Em nossa época é uma fraqueza fazer da teologia católica a base de um romance, já que isso significa que tudo está completo e acabado, e o autor não tem de repensar as coisas. A fraqueza de Heart of the matter, de Greene, deriva da fascinação do autor pela teologia: os sofrimentos do herói são sofrimentos teológicos, sem valor fora do campo restrito do catolicismo. Quando ensinava sobre Waugh e Greene para estudantes muçulmanos na Malásia, eles costumavam rir. Perguntam-se por que aquele homem não podia ter duas esposas, se desejava a ambas. O que haveria de errado em comer o pedacinho de pão que o padre dá a você, se você andou dormindo com uma mulher que não é sua esposa etc.? Mas nunca riam dos heróis trágicos gregos elisabetanos.



- A diferença entre catolicismo de origem e de conversão influencia a obra de um autor de forma tão essencial que o senhor tende a preferir um romancista como François Mauriac a Graham Greene?

Os ingleses convertidos ao catolicismo inclinam-se a ficar deslumbrados com os encantos da religião, e mesmo a procurar nela mais encantos do que realmente existem - como Waugh, sonhando com uma antiga aristocracia católica inglesa, ou Greene, fascinado pelo pecado de forma bastante fria. Desejaria simpatizar mais com Mauriac como escritor. O fato é que prefiro os católicos convertidos porque, por acaso, são melhores romancistas. Quando leio Greene tento esquecer que ele é católico. Creio que agora ele também está tentando esquecer. The comedians foi uma espécie de virada filosófica. Travels with my aunt descarta deliciosamente qualquer tipo de moralidade, exceto uma espécie muito agradável de moralidade às avessas.

- Em um ensaio sobre Waugh, o senhor mencionou "o puritano que se esconde em todo católico inglês". Vê esse resíduo de puritanismo escondido de alguma forma em sua própria obra?

Claro que ele faz parte de mim. Nós ingleses levamos nosso catolicismo a sério, o que não acontece com os italianos e franceses; isso faz com que sejamos zelosos e atormentados pelo pecado. Absorvemos realmente o inferno - talvez uma noção bem nórdica -, e pensamos nele quando cometemos adultério. Sou tão puritano que não consigo descrever um beijo sem corar.

- Em sua opinião, existem limites que um autor deve observar na linguagem usada para apresentar um assunto controverso?

Minha aversão a descrever detalhes amorosos em minha obra deve-se provavelmente ao fato de eu dar tanto valor ao amor físico que não desejo admitir estranhos nele. Pois, afinal de contas, quando descrevemos a cópula, estamos descrevendo nossas próprias experiências. Gosto de privacidade. Penso que outros escritores devem fazer o que podem e, se conseguem preencher - como fez uma de minhas alunas americanas - dez páginas sobre o ato de felação sem se sentir embaraçados, desejo-lhes boa sorte. Mas creio que se possa obter um prazer artístico maior com a engenhosa delimitação de um tabu do que com o que é chamado de total permissividade. Quando escrevi o primeiro romance sobre Enderby, tive de fazer o herói dizer "Dane-se", já que "Foda-se" não era aceitável. Com o segundo livro, o clima havia mudado e Enderby tinha liberdade de dizer "Foda-se". Eu não quis. Era fácil demais. Ele continuou a dizer "Dane-se", enquanto os outros respondiam com "Foda-se". Um meio-termo. Entretanto, a literatura floresce com os tabus, assim como toda arte floresce com as dificuldades técnicas.

- Há vários anos, o senhor escreveu: "Creio que o Deus errado está governando temporariamente o mundo e que o Deus verdadeiro foi derrotado", e acrescentou que a vocação do romancista o predispõe a essa visão maniqueísta. Ainda acredita nisso?

Ainda conservo essa crença.

- Por que pensa que o romancista está predisposto a considerar o mundo em termos de "antagonismo essencial"? Ao contrário dos maniqueístas, o senhor parece manter a crença cristã no pecado original.

Romances tratam de conflitos. O mundo do romancista é um mundo de antagonismos essenciais de índole, aspiração, e outras coisas mais. Sou maniqueísta apenas no sentido mais amplo, de acreditar que a dualidade é a realidade suprema; a restrição do pecado original não é realmente uma contradição, embora acabe atraindo a gente para deprimentes heresias francesas, como o próprio jansenismo de Graham Greene e também a seita dos albigenses (religião de Joana D'Arc) , o catarismo etc. Como romancista, ou ao menos como ser humano, tenho direito a uma teologia eclética.

- Ao planejar seus romances, já pensou em separá-los, como faz Simenon, em obras "comerciais" e "não-comerciais" ou, como Greene, em "romances" e "entretenimentos"?

Todos os meus romances pertencem a uma única categoria foram planejados, por assim dizer, para serem entretenimento sério, sem objetivo moral, sem pomposidade. Quero agradar.

- O senhor não está separando a moralidade da estética? Essa visão é certamente coerente com sua rejeição, em Shakespeare, da teoria anglosaxônia de que um grande artista deve ter uma grande sensibilidade moral.

Não separo a moral e a estética. Apenas acredito que a grandeza literária de um homem não é nenhum indicador de sua ética pessoal. Sinceramente, não penso que a tarefa da literatura seja nos ensinar a nos comportarmos, mas penso que ela possa ajudar a esclarecer toda a questão da escolha moral, mostrando qual é a natureza dos problemas da vida. Está em busca da verdade, que é diferente da bondade.

- O senhor disse que o romance recebe da religião um conjunto implícito de valores, mas que outras artes tais como a música e a arquitetura, são ao contrário da ficção, "neutras". Isso as faz mais ou menos atraentes?

Gosto de escrever música, precisamente porque fica-se afastado de considerações "humanas" como crença e conduta. Pura forma, nada mais. Porém, daí, inclino-me a desprezar a música, exatamente porque ela é tão insensata. Estive escrevendo um quarteto para cordas baseado em um tema musi:al que Shakespeare nos dá, em notação sol-fá, em Love's labour lost - o tema é do-ré-sol-lá-mi-fá - saiu puro, alegre. Ficava completamente embevecido por ele, em aviões, em quartos de hotel, em qualquer lugar onde eu não tivesse outra coisa a fazer e não estivesse tocando nenhuma maldita música de fundo. (Será que os fornecedores de música de fundo nunca pensam nas pessoas que têm realmente de escrever música?) Bem sinto-me um pouco enver• gonhado porque a música não envolve nada além de problemas puramente formais. Por isso, oscilo entre o anseio pela forma pura e a compreensão de que a literatura é provavelmente valiosa porque diz coisas.

- Qual o papel da neutralidade política em tudo isso? Em seus romances, os neutros, tal como Theodorescu, em Tremor of intent, são geralmente vilões.

Se a arte deve ser neutra - se puder - a vida deve ser comprometida - se puder. Não existe nenhuma ligação entre a neutralidade política e religiosa e aquela abençoada neutralidade conquistada, digamos, da música. A arte é, por assim dizer, a igreja triunfante, mas o resto da vida é a igreja militante. Creio que o bem e o mal existem, embora não tenham nada a ver com a arte, e que o mal deve ser rechaçado. Não existe incorência em se sustentar uma estética tão diferente de tal ética.

- Vários de seus romances recentes têm exóticos cenários estrangeiros, embora o senhor tenha comentado, há alguns anos, que o artista deve esgotar os recursos do "aqui e agora" como verdadeira prova de sua arte. Mudou de idéia?

Sim, mudei de idéia. Descubro agora que, por temperamento, só fico comovido ou emocionado em lugares que não a Inglaterra. Isso significa que todos os meus cenários devem ser "exóticos".



- Por que considera a Inglaterra um assunto tão enfadonho?

Enfadonho para mim, pelo menos. Gosto de sociedades onde há a dinâmica do conflito. Em outras palavras, penso que os romances deveriam ser sobre uma sociedade como um todo - por inferência, pelo menos - e não apenas sobre um pequeno grupo dentro dela. A ficção inglesa tende a ser sobre esses grupos - casos de amor em Hampstead, a aristocracia boêmia de Powel1, os homens de poder de Snow. Dickens nos proporcionou tudo isso, como Balzac. Muita ficção moderna americana nos proporciona tudo isso, também. Seria possível reconstruir totalmente os Estados Unidos de hoje a partir de uma pequena fantasia louca como The breast de Phil Roth. Mas pode ser que eu tenha um caso pessoal a respeito da Inglaterra - uma sensação de exclusão ou algo parecido. Pode mesmo ser uma questão tão simples quanto gostar de climas rigorosos, brigas em bares, praias exóticas, sopa de peixe, bastante alho. Acho mais fácil imaginar uma versão surrealista de Nova Jersey do que da velha Inglaterra, embora possa imaginar algum gênio americano fazendo da herança do sr. Heath todo um mundo estranho. Provavelmente (assim como Thomas Pynchon nunca foi a Valletta nem Kafka aos Estados Unidos) é melhor imaginar seu próprio país estrangeiro. Escrevi um relato muito bom sobre Paris antes de ir lá pela primeira vez. Melhor do que a coisa verdadeira.

- Isso foi em The worm and the ring?

Sim. Paris era uma cidade que eu sempre tentava evitar. Mas ultimamente tenho estado cada vez mais nela e acho que o relato de Paris que escrevi (embora cheire a mapas e guias turísticos) não é diferente da realidade. Isso também é verdade sobre a Gibraltar de Joyce em Ulysses; não se precisa visitar um país para escrever sobre ele.

- E contudo o senhor faz uma boa descrição de Leningrado em Honey for the bears.

Oh, eu conhecia Leningrado. Sim, é verdade. Mas não muito bem, pois se a gente fica conhecendo muito bem uma cidade, então a nitidez da impressão se borra, e não há mais interesse em escrever sobre ela. Seja como for, o ponto interessante é que primeiro se conhece uma cidade através de seus cheiros; isso é verdade principalmente na Europa. Leningrado tem um cheiro peculiar e, com o tempo, a gente se acostuma com esses cheiros e se esquece do que eles são; e não se consegue escrever sobre ele em termos altamente sensoriais, se se conhece muito bem o lugar. Se a gente fica em uma cidade, em alguma parte, cerca de um mês, já não guarda uma impressão sensorial. Em Paris, por exemplo, quando a gente chega, sente o cheiro de Gauloise, mas pode deixar de senti-lo. Acostuma-se a ele.

- O senhor disse que Leningrado se parece com Manchester. Como elas se assemelham?

Penso que foi apenas a impressão da arquitetura, a arquitetura um tanto arruinada de Leningrado, a impressão de grande número de operários, vestindo um tanto surradas. E suponho que, de certa forma, foi o cheiro de Manchester - sempre associei Manchester ao cheiro de curtumes, cheiro bastante penetrante, como sabe. Senti esse mesmo cheiro em Leningrado. É uma coisa pequena, mas essas coisinhas têm o curioso hábito de se tornarem importantes. A gente tenta guardar um lugar na memória. Não sei qual é o cheiro de Milwaukee, não creio que as cidades americanas tenham cheiro. Provavelmente é por isso que são pouco lembradas. O olfato é o mais evasivo dos sentidos. Para o romancista é, de algum modo, o mais importante.

- O senhor também disse que o romancista sério deve estar preparado para demorar-se em um lugar e, assim, conhecê-lo, realmente. Espera fazer isso agora, com a Itália?

Mais uma vez, mudei de opinião. Acho que vou querer inventar lugares mais do que copiá-los e, por favor, não atribua isso à influência de Ada. Os quatro próximos romances terão, respectivamente, o cenário da Inglaterra medieval, da Nova Jersey moderna, da Itália nos últimos cinqüenta anos e da Inglaterra de Jane Austen.

- Suas viagens dão-lhe uma percepção especial da variedade de tipos humanos, tais como o do prof. Godbole de Forster?

As pessoas são, fundamentalmente, todas iguais, e já vivi entre raças diferentes tempo suficiente para ser dogmático a respeito. Em A passage to Índia, Godbole é um místico excêntrico, do tipo que qualquer cultura pode produzir



- A esta altura, considera-se um cidadão inglês expatriado ou exilado?

Esse é um jogo de palavras irrelevante. Exilei-me voluntariamente, mas não para sempre. Apesar disso, não consigo pensar em nenhuma boa razão para voltar à Inglaterra, exceto em férias. Mas, como disse Simone Weil, a gente é fiel à cozinha em que foi criado e, provavelmente, isso é patriotismo. _Às vezes passo mal, mental e fisicamente, de tanta vontade de comer a comida de Lancashire - hot pot, lobscowse etc. - e tenho de comer essas coisas. Sou leal a Lancashire, acho, mas não o bastante para desejar voltar a viver lá

- Que são hot pot e lobscowse?

Hot pot ou Lancashire hot pot é feito desta maneira. Em uma vasilha de barro, alterne uma camada de costeletas de carneiro sem gordura, uma de cebo1as em fatias, uma de batatas também em fatias. Continue alternando as camadas até encher a vasilha. Acrescente caldo temperado. Em cima, ponha cogumelos ou mais fatias de batatas, para dourar. Se quiser, acrescente também ostras ou rins. Asse em forno brando, por bastante tempo. Coma com um repolho em conserva. Lobscowse é um prato dos marinheiros de Liverpool (os naturais de Liverpool são chamados scousers ou scowsers) e é muito simples. Corte batatas e cebolas e cozinhe em uma panela com água e temperos. Quando estiverem quase cozidas, jogue fora o excesso de líquido e acrescente uma lata de ou duas de carne cortada em cubos. Aqueça devagar. Coma com picles. Adoro cozinhar esses pratos e todos gostam quando experimentam. São simples e genuínos. Lancashire tem urna grande cozinha, inclusive ótimas casas de comida pronta - o que significa que se podem comprar acepipes nessas lojas. Tradicionalmente, as mulheres de Lancashire trabalham nas tecelagens e só cozinham nos fins de semana. Daí as coisas que se pode comprar nas casas de comida pronta - peixe com batatas fritas, pudins de Bury, bolinhos de Eccles, dobradinha, pé de boi, tortas de carne (quentes, com um buraco para se despejar molho) e outras mais. Peixe com batatas fritas é um prato já aceito internacionalmente, acho. Torta de carne e batata talvez seja o mais gostoso dos pratos de Lancashire - um hot pot mais seco, com fina casca crocante.

- Estou tentado a visitar Manchester. Lawrence Durrell, outro escritor inglês expatriado, disse que, já que os Estados Unidos e a Rússia vão determinar nosso futuro, quando a gente está em um desses países é obrigada a parar de viajar e começar a pensar. É diferente, diz ele, quando se vai à Itália - puro prazer. O senhor concorda?

Até agora, Durrell nunca disse nada com que eu pudesse concordar. Ele me faz lembrar daquela apresentadora de TV dos Estados Unidos, Virginia Graham. Simplesmente, não sei que diabos ele quer dizer com isso. Nos Estados Unidos e na Rússia, encontro pessoas, como e embebedo-me exatamente da mesma forma que faço na Itália. Não vejo nenhum sinal de importância puramente metafísica. Isso cabe aos governos, e governos são algo que tento ignorar. Todos os governos são nocivos, inclusive o da Itália.

- Isso soa vagamente anárquico ou, pelo menos, antiamericano. Quando estudante, o senhor teve uma fase marxista, como Victor Crabbe em The long day wanes?

Nunca fui marxista, embora sempre estivesse, mesmo quando estudante, pronto a fazer o jogo do marxismo - analisar Shakespeare em termos marxistas, e assim por diante. Sempre gostei muito do materialismo dialético. Mas desde o início foi um amor estruturalista. É ridículo levar o socialismo a sério, em oposição a um mínimo de socialização (o que os Estados Unidos estão precisando desesperadamente).

-"Um mínimo de socialização" não exige um aumento no tamanho e no poder do governo central? Somente o governo federal norte-americano pode financiar o equivalente aos planos de saúde inglês ou escandinavo; aqui há uma necessidade aguda de tratamento médico mais barato.

Abomino o Estado, mas reconheço que a medicina socializada é prioridade em qualquer país civilizado atualmente. Na Inglaterra, livrou-me da insolvência durante a doença terminal de minha mulher (embora, talvez, uma apólice de seguro privado tivesse podido resolver o problema; entretanto, não se tem opção fora do sistema governamental). A medicina socializada - que, de qualquer forma, na Inglaterra foi uma idéia liberal - não precisa significar o socialismo perfeito, com tudo nacionalizado. Se os Estados Unidos a adotarem, serão somente os médicos e dentistas que tentarão fazer com que funcione, mas, como na Inglaterra, não há razão pela qual uma clínica particular não possa coexistir com uma da saúde pública. Na Inglaterra, a gente vai ao dentista e ele pergunta: "Particular ou pela saúde pública?" Mal se nota a diferença de tratamento, mas os materiais do Estado (para obturações, óculos etc.) são inferiores aos que se obtém como paciente particular.

- Então essas opiniões o fazem conservador quanto à política? Disse que votaria com relutância a favor do Partido Conservador na Inglaterra.

Penso que sou jacobita, o que significa que sou tradicionalmente católico, apóio a monarquia Stuart e quero vê-la restaurada, e desconfio de mudanças impostas, mesmo quando pareçam ser para melhor. Acredito sinceramente que os Estados Unidos deveriam tomar-se monarquistas (Stuart, de preferência), porque com uma monarquia limitada não se tem presidente e o presidente é um elemento corruptível a mais no governo. Detesto todas as repúblicas. Suponho que meu conservadorismo seja realmente uma espécie de anarquismo, já que o ideal de um monarca imperial jacobita católico não é praticável.

- Muitos norte-americanos acreditam que a presidência evoluiu para uma forma de monarquia, com resultados infelizes. Considera a anarquia uma alternativa política viável?

A presidência dos Estados Unidos é uma monarquia Tudor com telefone. A alternativa é a volta à monarquia limitada da Comunidade Britânica - um monarca constitucional está, pelo menos, fora da política e não pode se sujar nem se corromper - ou a transformação em estados não federados, com uma folgada estrutura cooperativa para grandes projetos de desenvolvimento. A anarquia é coisa própria do homem, e acho que é muito tarde para considerá-la um sistema ou não-sistema viável em um país tão grande quanto os Estados Unidos. Era aceitável para Blake ou para Thoreau, os quais muito admiro, mas nunca mais ela será tão vigorosa. Tudo que podemos fazer é atormentar sempre o governo, desobedecer tudo que ousarmos (afinal de contas, precisamos ganhar a vida), perguntar por que, manter o hábito da suspeita.

- Insistiu com outros artistas para que buscassem profundidade "descobrindo o que é mítico". Está mais interessado em criar novos mitos ou em reexaminar antigos, como fez com a Eneida em A vision of battlements?

Atualmente estou interessado no que o estruturalismo possa nos ensinar sobre o mito. Não me considero capaz de inventar meus próprios mitos e ainda creio haver muita reanimação possível no que diz respeito a mitos como o de Jasão e o Velocino de Ouro (sobre o qual, aliás, planejo escrever um romance). Os mitos existentes trazem consigo vantajosa intensidade, uma profundeza de significado que poupa ao romancista muito trabalho inventivo.

- Como a procura do Velocino de Ouro por Jasão se aplica à nossa época?

Se um dia eu o escrever, meu romance sobre Jasão usará a história dos Argonautas como estrutura para aventuras picarescas. Nenhum significado mais profundo.

- Já pensou em basear um romance em mitos associados a religiões orientais, como Mann fez em As cabeças trocadas?

É estranho; tenho planejado fazer um musical desse livro muito encantador, mas apenas um jogo, apesar das reivindicações de profundidade psicológica que às vezes atribuem a ele. Passei seis anos no Oriente, mas não sou muito atraído pelos mitos orientais, exceto aquele do interminá vel espetáculo de sombras javanês que, afinal de contas, é como Finnegans wake. Mas pensei em um romance baseado em Hikayat, de Munshi Abdullah. Essa ânsia àlemã pelo Oriente - Hesse, bem como Mann - é muito interessante. Talvez não o vissem de forma tão romântica, se fossem funcionários coloniais. Quem sabe, é isso que realmente gostariam de ser.

- O estruturalismo representa um grande papel em MF. Como romancista de idéias, qual a importância que lhe dá?

O estruturalismo é a confirmação científica de uma certa convicção teológica - que a vida é binária, que isto é um dueto, e assim por diante. O que quero dizer é que a noção de oposição essencial - não Deus/Demônio, mas simplesmente x/y - é fundamental, e isso é uma espécie de visão puramente estruturalista. Acabamos achando a forma mais importante do que o conteúdo, que a linguagem e a arte são processos fáticos, que os grandes elementos imponderáveis são mera bazófia. Marshall McLuhan vem claudicando por esse caminho, independentemente de Lévi-Strauss. Como é maravilhoso que a bifurcação essencial que é o homem esteja expressa em calças que levam o nome de Lévi-Strauss.

- Ao mesmo tempo em que estabeleceu uma firme ligação entre a linguagem e o mito, o senhor também mencionou, a respeito do futuro do romance, que ''somente através da exploração da linguagem pode a personalidade ser induzida a admitir mais alguns de seus segredos". Poderia estender-se sobre isso?

Pela extensão do vocabulário, pela cuidadosa distorção da sintaxe, pela exploração de vários mecanismos prosódicos tradicionalmente monopolizados pela poesia, determinadas áreas indefinidas ou complexas da mente certamente podem ser apresentadas com mais competência do que no estilo de, digamos, Irving Stone ou Wallace.

- O senhor já foi tentado a esbanjar prosa complexa em um único protagonista, como Haubert fez em Un coeur simple?

Tente, e faça com que a linguagem adapte-se mais ao conceito que você tem do assunto do que ao próprio assunto. "Eis aqui este estúpido sujeito que escreveu uma obra altamente elaborada sobre uma criada chamada Félicité." Mas Flaubert estava interessado, com certeza, na nobreza desse coração, e com ele esbanjou a riqueza de sua prosa. O estilo é menos uma preocupação do que um problema perene. Quero dizer, encontrar o estilo certo para o assunto. Isso deve significar que o assunto vem primeiro e o estilo depois.

- Referiu-se a si mesmo como um "romancista sério que está tentando ampliar a extensão dos temas disponíveis à ficção". Como vem tentando fazer isso?

Escrevi sobre o moribundo império britânico, lavatórios, estruturalismo etc., mas não penso realmente que esses fossem o tipo de tema que tinha em mente quando fiz essa afirmação. Referia-me à modificação da sensibilidade do romance britânico, o que posso ter conseguido um pouco, muito pouco. Os novos âmbitos são mais técnicos do que temáticos.

- Em The novel now, o senhor disse que o romance é a única forma literária importante que nos resta. Por que pensa que isso seja verdade?

Sim, o romance é a única grande forma literária que nos resta. É capaz de conter as outras formas literárias menores, da peça teatral ao poema lírico. Os poetas estão prosperando bastante, principalmente nos Estados Unidos, mas não conseguem alcançar a habilidade arquitetônica que outrora estava por trás do poema épico (do qual o romance é agora o substituto). A breve estridente explosão - na música e também na poesia - não basta. Hoje em dia, o romance tem o monopólio da forma.

- Admitindo-se essa limitada primazia do romance, é perturbador o fato de que suas vendas estejam em geral diminuindo, e que a atenção do público esteja mais voltada para a não-ficção. Sente-se tentado a voltar-se mais para a biografia, por exemplo, no futuro?

Continuarei a fazer romances, sonhando com alguma pequena recompensa extra. A biografia é trabalho muito duro, sem espaço para inventiva. Mas se eu fosse jovem, não sonharia em tentar tornar-me um romancista profissional. Algum dia, porém, talvez logo, estará de volta o antigo truismo - de que ler sobre personagens imaginários e suas aventuras é o maior prazer do mundo. Ou o segundo maior.

- Qual é o primeiro?

Depende do gosto de cada um.

- Por que lamenta ter-se tornado romancista profissional?

Penso que o excessivo esforço mental, a preocupação, a insegurança, não valem muito a pena, a angústia da criação e o senso de responsabilidade para com nossa musa - todas essas coisas acabam se tornando mais do que podemos suportar.

- É mais difícil alguém se sustentar escrevendo ficção de primeira qualidade, hoje em dia?

Não sei. Sei que quanto mais velho fico, mais quero aproveitar a vida e menos oportunidade tenho. Não creio que desejasse ficar preso a uma forma de arte; ao estabelecer a própria identidade através de uma forma de arte, a gente fica sendo uma espécie de Frankenstein criando um monstro, por assim dizer. Gostaria de poder viver mais tranqüilamente; gostaria de não ter o senso de responsabilidade para com as artes. Mais do que qualquer outra coisa, gostaria de não ter a perspectiva de ter de escrever certos romances que devem ser escritos porque ninguém mais os escreverá. Gostaria de ser mais livre, gosto de liberdade. Acho que teria sido muito mais feliz como funcionário nas colônias, de vez em quando escrevendo um romance nas horas de folga. Então, teria sido mais feliz do que como uma espécie de literato profissional, ganhando a vida com palavras.



- As versões cinematográficas ajudam ou atrapalham os romances?

Os filmes ajudam os romances em que se baseiam, pelo que fico ao mesmo tempo grato e ressentido. A edição de bolso de Clockwork orange vendeu mais de, um milhão de cópias nos Estados Unidos, graças ao caro Stanley. Mas não gosto de ser visto apenas como um mero criador de filmes. Desejo ser bem-sucedido por meio da literatura pura. Impossível, é claro.

- Referiu-se a A vision of battlements, seu primeiro romance, "como todas as minhas histórias posteriores, um lento e cruel desnudamento da ilusão"; contudo o senhor é, com freqüência, considerado um escritor cômico. É a comédia assim tão cruel por natureza, ou o senhor se considera antes um satirista?

A comédia preocupa-se com a verdade, tanto quanto a tragédia; e, como Platão reconheceu, as duas têm algo fundamental em comum. Ambas são processos de desnudamento; ambas arrancam as máscaras exteriores e mostram o homem como um pobre animal dividido. A sátira é um tipo específico de comédia, limitando-se a determinadas áreas do comportamento, não à condição humana em geral. Não creio que eu seja satirista.

- Também escreve humor negro - ou todas essas classificações são muito restritas?

Penso que sou um escritor cômico, malgré moi. Meu Napoleão está se revelando cômico e eu, certamente, não pretendia isso. Não creio saber o que seja humor negro. Satirista? A sátira é um difícil meio de comunicação, efêmero, a menos que haja uma tremenda vitalidade na própria forma - como Absalão e Aquitofel, Tale of a tub, Animal farm. Quero dizer, a obra tem de perdurar como história ou poesia mesmo quando o propósito da sátira estiver esquecido. Atualmente a sátira é um elemento em algumas outras formas, não unia forma em si. Gosto de ser considerado simplesmente romancista.

- Há mais ou menos dez anos o senhor escreveu que se considerava pessimista, mas acreditava que "o mundo tem muito consolo a oferecer: amor, comida, música, a imensa variedade de raças e línguas, literatura, o prazer da criação artística". Organizaria a mesma lista de graças salvadoras, hoje?

Sim, sem nenhuma modificação.

- Georges Simenon, outro escritor profissional, disse que "escrever não é profissão e sim vocação para a infelicidade. Não acho que o artista possa um dia ser feliz". Acha que isso seja verdade?

Sim, Simenon tem razão. Outro dia, meu filho de oito anos perguntou: "Papai, por que não escreve por brincadeira?". Até ele adivinhou que o método que exerço é propenso à irritabilidade e ao desespero. Acho que, não fosse meu casamento, eu era mais feliz quando estava lecionando, e não tinha muito em que pensar durante as férias. A ansiedade envolvida é intolerável. E - aqui discordo de Simenon - as recompensas financeiras simplesmente não compensam o dispêndio de energia, o prejuízo à saúde causado por estimulantes e narcóticos, o medo de que a obra não seja bastante boa. Penso que, se tivesse dinheiro suficiente, desistiria de escrever amanhã.


(tradução de Bárbara Theoto Lambert)




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