“Jovens, envelheçam”
(Nelson Rodrigues)
Quando alguém se apresentar a você como júnior, não vacile. Mande para chamar o pai. Imediatamente. É melhor e mais produtivo. Porque o júnior não decide nada. No máximo, faz pose. De herdeiro. Só.
A única exceção que conheço é Florestan Fernandes Júnior, o filho do Mestre*. Excelente jornalista, Júnior é também uma pessoa da melhor qualidade. Solitário, meu amigo confirma a regra.
Profissionalmente o problema é o mesmo. Com funcionário júnior, todo cuidado é pouco. Porque o júnior está envolvido até o pescoço naquele faz de conta profissional tão comum às empresas. Recebe uma miséria, está sempre abarrotado de tarefas e, pior, não é responsável por nada do que faz. Resumindo: dinamite pura. Uma criança com uma navalha.
Vou dar um exemplo. Embasado. Houve época em que eu também era júnior. Faz tempo. Na Almap, começo dos anos 70. Após três meses de estágio na Criação, fui contratado. Redator júnior. Na Carteira de Trabalho.
Claro que me empolguei. Muito. Mas, graças aos conselhos de dois redatores já rodados na vida, o fracasso não me subiu à cabeça. A dica foi providencial. Para minimizar as chances de fazer bobagem com algum trabalho, eu deveria desenvolver o job e, ato contínuo, mostrar as idéias a um profissional sênior. Mais nada.
Assim, tudo correu bem para o meu lado. Até que inventaram uma diretora de arte para trabalhar comigo. Totalmente júnior. Explico.
Como agência também vive de charme e perfumaria, a direção de criação decidiu contratar a artista plástica que tinha bolado a abertura de uma novela de sucesso da Rede Globo. Coube a mim fazer dupla com ela. Que friagem!
No primeiro dia de trabalho, saquei que não iria funcionar. A moça não passava de uma mistura bem dosada de soberba, arrogância e prepotência. Zero teor de humildade na fórmula. E para piorar, não precisava de salário para viver. Era de família rica. Desde os tempos de Moisés.
Se sentindo a rainha da cocada, ela chegou vestida para uma festa na ONU. Num contraste gritante comigo, de camiseta branca, calça jeans e tênis, surrados. A bela e a fera.
Em menos de meia hora, tomou conta da sala. Agradeci a Deus por ter me sobrado um metro quadrado de espaço. Mas fiquei quieto. A dona tinha as costas quentes na agência. E, a julgar pelo nariz, também em Tel Aviv.
Nisso, entrou alguém do Tráfego para nos passar um PIT (Pedido de Trabalho). A perua deu um pulo da cadeira e pegou o envelope como se fosse a própria Lista de Schindler. Mau sinal.
No envelope, o pedido de criação de um broadside, peça final de uma imensa campanha, desenvolvida por outra dupla. Como estavam finalizando os layouts e textos, os dois não tinham tempo de criá-lo.
Olhei para a Dona Encrenca. Muda. Saquei logo que aquela mulher não tinha a menor idéia do que fosse um broadside. Pedi para ver o PIT. Tentando disfarçar a pouca prática dela, expliquei o que era a peça.
Depois de ler o briefing, sugeri que fossemos falar com os dois criativos (a dupla de feras, Alcides Fidalgo e João Galhardo) para saber dos detalhes da campanha. Coisas básicas como linha gráfica, tema, títulos, filmes, etc. Ela não aceitou a proposta. Cheia de si, gritou:
"Eu não preciso de nenhuma referência para criar
o melhor broadside que a Almap já viu!!!"
Sua alma, sua palma. Tirei uma cópia do pedido e fui cuidar do “meu” job. Cachorro mordido por cobra foge de lingüiça.
Dei uma olhada na campanha. Ótima, por sinal. Depois, voltei à minha quase ex-sala para trabalhar. No fim da tarde, os títulos estavam prontos. Perguntei à minha parceira sobre a parte dela. Mal educada, a figura respondeu que em dois dias o rough estaria pronto. E me olhou feio.
“Fodeu!”, pensei. O prazo de entrega era no dia seguinte, à tarde. Expliquei o problema à pretensiosa. Resposta:
"O cliente que espere o meu broadside!"
Fui outra vez à sala da dupla e mostrei o que tinha feito. Eles gostaram. E para não perder tempo, o diretor de arte fez um rough na hora, juntou aos meus títulos e mandou para o estúdio. Perfeito. Salvei o meu escalpo. Por um triz.
Dia seguinte, na hora marcada, a campanha ficou pronta. E, depois do almoço, foi apresentada ao cliente. Tudo aprovado.
Enquanto isso, a perua entrava no estúdio para finalmente entregar o rough do broadside dela. Um filhote de coruja seria considerado lindo perto daquilo. Ao saber que a campanha já havia sido apresentada ao cliente, e aprovada, a mulher pirou.
Eu estava no corredor, conversando, quando aquela locomotiva de saias fez a curva apitando e veio em minha direção. Soltando fumaça pelas ventas, a diretora de arte, mais júnior do que nunca, gritava a plenos pulmões:
"Mau caráter! Mau caráter!
Redatorzinho mau caráter!"
Protegido pela solidária barreira humana à minha frente, respondi
com a maior honestidade do mundo:
"Sai dessa, maluca! Eu ainda não tive tempo de virar mau caráter... Mal cheguei a redator..."
Carlão Bittencourt
é redator publicitário
e cronista.
É autor de
"Pela Sete - Breves Histórias do Pano Verde"
(2003, Editora Codex),
um mergulho no universo
dos salões de bilhar de São Paulo
e escreve todas as quartas
Bitenca, lembro bem dessa figura. Uma bela manhã ela se trancou na sala do Noé é não deixava ninguém entrar, nem o Alex entrou. O Noé só queria pegar a carteira pra poder almoçar. Durou pouco a figura, ainda bem.
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