(publicado originalmente em 11 de Novembro de 2006
no Caderno 2 do Estadão)
Como dar conta de tantos livros? Eis um drama universal, que vários livros já inspirou. O último da espécie que li intitulava-se Los Demasiados Libros, do poeta e ensaísta mexicano Gabriel Zaid, aqui traduzido pela Summus, informação que só estou lhe passando, "paresseux lecteur", por tratar-se de leitura rápida (tem em torno de 150 páginas), ademais prazerosa e inspiradora. Zaid possui uma biblioteca de mais de 10 mil livros. Não é um colecionador, um bibliômano; apenas adora ler; e é claro que: 1) não leu todos eles; 2) nem sequer folheou a maioria; 3) vários só leu até a metade, se tanto. Como todo mundo, aliás. Complexo? Zero.
Acumular milhares de livros não lidos sem perder a pose nem o desejo de comprar outros mais é um dos apanágios do verdadeiro homem ilustrado, defende-se Zaid de eventuais patrulheiros culturais. Até porque livros descartáveis ou apenas de consulta é o que não falta.
Mesmo quem lê muito rápido, sem prejuízo do gozo e da assimilação, sofre um bocado com o acúmulo de livros ao seu redor. Acompanhar o ritmo do mercado editorial é um anseio impossível, uma frustração permanente, que, como a morte, deve ser encarada como uma fatalidade ecumênica. Não sei se os que lêem menos, sobretudo por falta de tempo, sofrem mais que os bibliófagos, mas é entre eles que se encontra o maior número de preocupados com a pecha de inculto e alienado.
Para estes já existe um remédio. Paradoxalmente, sob a forma de livro. E, ainda que o autor rejeite o rótulo, um livro de auto-ajuda, quiçá de alta ajuda. Publicado na França, Comment Parler des Livres que l'on n'a pas Lus? (Editions Minuit) já foi traduzido para o inglês, também virou best-seller na Alemanha, e tem tudo para virar franquia retórica nas tertúlias do mundo inteiro, pois o sonho de poder falar sobre livros que não lemos talvez seja mais intenso e disseminado que a quimera de ter lido todos os livros importantes publicados até hoje.
Seu autor, Pierre Bayard, 52 anos, mestre em literatura e psicanalista, já aprontou várias petulâncias. Há sete anos, publicou Comment Améliorer les Oeuvres Ratées, em que sugere mudanças em obras menores de Marcel Proust, Marguerite Duras e outros medalhões. Em 2002, lançou Enquête Sur Hamlet: Dialogue des Sourds, no qual tenta provar que Claudius não matou seu irmão, o rei da Dinamarca e pai de Hamlet.
Comment Parler des Livres que l'on n'a pas Lus? é seu 12º livro. Embora possa parecer um açougueiro promovendo as virtudes do vegetarianismo, de insincero Bayard não pode ser acusado. Já no prefácio admite ler pouco, por falta de tempo e interesse, e confessa ter dado aulas e palestras sobre obras em que nunca pôs os olhos.
De messiânico, sei não. Afinal, ele se diz investido da missão de salvar a humanidade das profundas neuroses semeadas pelo fetiche livresco, vale dizer do sentimento de culpa e humilhação que costuma afligir os que não gramaram do princípio ao fim os sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust. Aos quais poderíamos acrescentar os 17 tomos da Comédia Humana, de Balzac; as quase mil páginas de Ulisses, de James Joyce; as 800 páginas de A Montanha Mágica, de Thomas Mann; as quase 400 páginas de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa; as 1.190 páginas de Guerra e Paz, de Tolstoi (na tradução da Aguilar) ― para ficarmos só em alguns dos mais célebres catataus da literatura ocidental.
Partindo de uma constatação razoavelmente lógica ― se lemos um livro de ponta a ponta, muitos outros terão de ser desprezados ou, na melhor das hipóteses, lidos pela metade ou apenas folheados ― Bayard propõe algo mais que uma atualização pós-moderna do Método de Leitura Dinâmica de Evelyn Wood, que tantos seguidores amealhou nos anos 60, entre os quais o presidente John Kennedy e milhares de brasileiros. É uma nova e estrambótica maneira de se lidar com um livro, um vade-mécum que mais parece uma paródia de Jacques Derrida e da Modesta Proposta de Jonathan Swift, aquele panfleto satírico (safra 1729) em que o autor de As Viagens de Gulliver recomendava que os irlandeses à beira de miséria faturassem algum transformando seus rebentos em alimento para os ricos. Ou uma paráfrase daquela competição inventada pelos Monty Python, cujos participantes tinham 15 minutos para resumir os sete volumes da Recherche proustiana.
A leitura tradicional, letra por letra, palavra por palavra, está superada, pontifica Bayard, que nunca terminou Ulisses nem O Homem Sem Qualidades (de Robert Musil), só conhece A Eneida (de Virgílio) e Oliver Twist (de Charles Dickens) através de ensaios, não se lembra de mais nada de A Interpretação dos Sonhos (de Freud) e O Lobo da Estepe (de Hermann Hesse), e não faz a mais remota idéia do conteúdo da Retórica de Aristóteles.
Embora mencione Oscar Wilde, seu raciocínio não se apóia literalmente na conhecida boutade wildiana: "Nunca li um livro antes de criticá-lo para não me deixar influenciar pela sua leitura." O quesito influência não o aflige, mas as raízes de seu raciocínio estão, sem dúvida, no Wilde do monológico ensaio "O Crítico Como Artista", no qual o provocante irlandês, após salientar ser inútil beber o tonel inteiro para conhecer a origem e a qualidade de um vinho, argumenta: "Pode-se dizer facilmente em meia hora se um livro é bom ou não vale nada. Bastam, de fato, dez minutos, se se possui o instinto da forma."
Também são referências respeitáveis o sábio Montaigne, que lia à beça mas esquecia de tudo ("nulle retention", queixou-se num de seus ensaios), e Paul Valéry, que encontrava maneiras de elogiar autores cujos livros sequer abrira ou lera por alto, como Proust, e esculachar outros, como Anatole France. A propósito, se esquecemos do que trata um livro que efetivamente lemos, podemos considerá-lo lido? Aqui e ali Bayard menciona personagens de Graham Greene, Umberto Eco e David Lodge que questionam a necessidade da leitura tal como vem sendo há séculos praticada.
Que utilidade tem saber que Leopold Bloom come um sanduíche de gorgonzola no almoço?, questiona Bayard. Mais vale saber que Ulisses é um romance experimental de Joyce, inspirado na Odisséia de Homero, que faz uso do "fluxo de consciência" para descrever um dia (16 de junho de 1904) na vida de alguns poucos dublinenses, já não fará feio numa roda de amigos cultivés. E o prazer da leitura? Uma coisa é saber que Dostoiévski introduziu a psicologia no romance ou que Capitu tinha olhos de cigana oblíqua e dissimulada, outra é experimentar, com o máximo de concentração, a febril deambulação de Raskolnikov por São Petersburgo e a crescente paranóia de Bentinho de que foi corneado pela mulher.
A seus alunos e também aos filhos, Bayard ensinou pessoalmente a sua "prática indisciplinada da leitura": primeiro, examinar a capa e a lombada do livro; depois, ler a primeira frase, passar os olhos nas passagens cruciais, e monitorar tudo o que a seu respeito é dito e publicado. Dito por quem o tenha lido de cabo a rabo, presumo; do contrário, como iremos localizar as tais "passagens cruciais"? Livros que se tornam fenômenos por razões extra-literárias, divulgados e discutidos ad nauseam pela mídia, são autênticos pitéus coloquiais. Mas quantos de vocês aí leram até o fim Os Versos Satânicos e O Nome da Rosa? Descomplexidamente confesso: nem abri o primeiro e não consegui ir além da trigésima sexta página do segundo.
A proposta de Bayard soa leviana, para não dizer funesta (e rimar com modesta). Imagino o horror causado em culturalistas & bibliômanos como Harold Bloom, E.D. Hirsch, Alberto Manguel, Sven Birkerts, e nos apóstolos do "close reading"; e o prazer dado a Franco Moretti, excelente ensaísta e professor da Universidade de Stanford, na Califórnia, que até na Alemanha causou sensação com uma conferência sobre "como falar em literatura sem nunca ter lido um romance." Mas é inegável que Comment Parler des Livres que l'on n'a pas Lus? diverte e funciona como quebra-galho social, cheio de dicas para fazer farol e evitar gafes com autores e leitores tradicionais. Ou mesmo escrever resenhas: "Ponha o livro à sua frente, feche os olhos e tente perceber o que nele possa interessá-lo. Aí, então, comece a escrever sobre si mesmo."
Na presença de um autor, o mais aconselhável é elogiar sua obra sem entrar em detalhes. Detalhes, diante dos elogios, são irrelevantes. E, quanto mais vaidoso o autor, muitíssimo mais relevantes os elogios. Deixar o subconsciente expressar sua relação pessoal com a obra, nem que seja para discorrer apenas sobre a expressividade da capa e a elegância da tipologia, é outro conselho que Bayard oferece à sua clientela. Falar de si mesmo, usando o livro como pretexto, sem aprofundar-se no conteúdo, costuma funcionar, principalmente quando o tergiversador força a imaginação e acaba inventando o seu próprio livro.
"Não quero justificar a não leitura, apenas ensinar as pessoas a viver sem pânico com os livros, ajudá-las a encontrar seus próprios caminhos através da cultura, inclusive aquelas alheias ao universo da palavra escrita, que, de tão apegadas à cultura das imagens, têm dificuldade de voltar à leitura. Quero evitar que a cultura cause novos traumas, que a leitura continue sendo vista como um aterrorizante espectro do conhecimento. Quero libertar os alunos da produção de relatórios exaustivos sobre tudo o que leram, obrigados pelo professor. Isso não é leitura, é burocracia."
Bayard quer muita coisa. Eu também. Ler seu livro, por exemplo. Ou vocês acham que eu cometeria a descortesia de o ler antes de escrever as linhas acima?
Sérgio Augusto (Rio de Janeiro, 1942)
é um jornalista e escritor brasileiro.
Começou sua carreira como crítico de cinema
na Tribuna da Imprensa, em 1960.
Trabalhou também no Correio da Manhã,
no Jornal do Brasil, na Folha,
e nas revistas O Cruzeiro,
Fatos & Fotos, Veja, IstoÉ e Bravo!,
além dos semanários O Pasquim, Opinião e Bundas.
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