Saturday, February 25, 2017

O CRÍTICO DE CINEMA CARLOS CIRNE INDICA 4 EXCELENTES ANTÍDOTOS PARA O CARNAVAL


Não se deixe enganar pelo título do filme, que pode sugerir um romance sem precedentes. “Moonlight - Sob a Luz do Luar” é barra pesada, em sua quase totalidade. E o resultado nas telas reflete a origem difícil do filme.

Baseado numa peça teatral não produzida de Tarell Alvin McCraney, chamada "In Moonlight Black Boys Look Blue" (“Garotos Negros Parecem Azuis ao Luar”, em tradução livre), o filme curiosamente meio que reproduz as origens tanto do autor quanto do diretor (Barry Jenkins), ambos com infâncias conturbadas em função de suas mães, dependentes químicas reincidentes. Ou seja, cada um deles tem um pouco de Chiron (o personagem principal) dentro deles mesmos.

Chiron, também chamado de Little e Black durante sua vida (e interpretado por três atores durante o filme - Alex R. Hibbert, Ashton Sanders e Trevante Rhodes), não conhece muita coisa que não seja rejeição em sua puberdade. De conformação frágil, tímido, sofre o constante bullying de meninos maiores na escola, exceto de seu único amigo, Kevin (também vivido por três atores diferentes - Jaden Piner, Jharrel Jerome e André Holland). Mais ou menos normal para garotos de origem humilde, que vivem em ambientes de risco. Com o agravante de que a única figura paterna que acaba conhecendo é o traficante “gente-boa” do pedaço, Juan (Mahershala Ali, indicado ao Oscar de Ator Coadjuvante pelo papel), que meio que acolhe Chiron, junto com sua namorada, a simpática Teresa (a cantora Janelle Monáe, em jornada dupla em “Estrelas Além do Tempo”).

Juan acaba acolhendo Chiron porque sua mãe, a sofrida Paula (Naomie Harris, irreconhecível) não consegue sequer cuidar de si mesma, que dirá de um filho. Seus contatos com Chiron são pungentes, quando não dramáticos. Neste ponto cabe um elogio à estupenda performance de Naomie Harris, como a mãe viciada de Chiron. Com apenas três dias (!) para desenvolver sua personagem – questões de visto (a atriz é inglesa) e agenda apertada pela promoção do filme “007 Contra Spectre” (onde ela é Moneypenny) -, a atriz é a única que percorre as três fases que o filme compreende, envelhecendo cerca de 20 anos neste processo. E o faz com absoluto controle. Brilhante.

Esta infância difícil só torna ainda mais complicada a formação do Chiron que, passando por uma adolescência mais conturbada ainda - com as previsíveis crises de identidade e gênero, não muito raras no período -, chegando à idade adulta basicamente como uma cópia de seu passado, controlando a distribuição de drogas em sua região, atribuição “herdada” de seu pai de criação, Juan. E é justamente neste ponto que ele retoma contato com Kevin, a quem não via desde a adolescência, quando foram muito próximos.

A catarse no reencontro dos amigos é também o ponto de equilíbrio que o espectador aguarda, desde o princípio do filme, com as constantes desventuras que Chiron enfrenta. Repare que as três fases da vida de Chiron apresentadas no filme, têm fotografias e enquadramentos específicos, marcando claramente o final de uma e o início de outra. Belo trabalho do diretor de fotografia – James Laxton, com vários trabalhos documentais e em televisão -, reproduzido à perfeição no cartaz do filme (que funde a figura nossodos três atores), um dos mais lindos dos últimos anos. Repare. E não perca o filme.



MOONLIGHT - SOB A LUZ DO LUAR
(Moonlight – 2016 – 111 minutos)

Direção
Barry Jenkins

Elenco
Mahershala Ali
Alex R. Hibbert
Ashton Sanders
Trevante Rhodes
Janelle Monáe
Naomie Harris
Jaden Piner
Jharrel Jerome
André Holland



Dependendo de sua idade, você certamente se lembrará dos apuros vividos por Patrícia Ayres em busca do “Velho Gui” (Dionísio Azevedo), na clássica novela da TV Excelsior de São Paulo, em 1968, “A Pequena Órfã”, de Teixeira Filho, e dirigida pelo próprio Dionísio Azevedo. Quem diria que, 50 anos depois, a solução seria apresentada pelo Google Earth?

Pois é justamente o que se vê em “Lion - Uma Jornada Para Casa” (Lion, 2016), que concorre a seis Oscars este ano, incluindo Melhor Filme. O filme conta a história (verdadeira) do pequeno Saroo, de cinco anos de idade, que acidentalmente se separa de seu irmão mais velho, Guddu (Abhishek Bharate), e acaba indo parar a mais de 1.600 quilômetros de casa, percorrendo a Índia de uma ponta à outra, de Ganesh Talai a Calcutá. Com um agravante: sem falar a língua local, o Bengali, apenas sua língua natal, o Híndi.


Sobrevivendo nas ruas da grande cidade, Saroo (o fantástico garoto Sunny Pawar) acaba indo parar num orfanato, e sendo adotado por um simpático casal australiano, que vive na Tasmânia, John e Sue Brierley (David Wenham e Nicole Kidman). Sua vida, assim como de seu outro irmão adotivo, Mantosh (Keshav Jadhav), se desenvolve cercada de amor e apoio. Mas agora, aos 25 anos de idade, Saroo (Dev Patel, quando adulto) decide buscar suas origens, sua mãe e irmãos. Passa então a utilizar o Google Earth para calcular seu provável ponto de partida, associado a imagens da infância, que lhe voltam à lembrança.


O grande trunfo do filme, fora o claro apelo emotivo da busca de seu passado pelo protagonista, está na escalação de Sunny Pawar (escolhido entre mais de 4000 candidatos) e Dev Patel para viverem Saroo em duas fases da vida. A simbiose entre os dois atores é impressionante, ficando muito difícil saber quem está reproduzindo a postura de quem. O pequeno Sunny é o responsável por alguns dos momentos mais ternos e sinceros do filme, em pequenos olhares, expressões e gestos. Irresistível. Já Patel demonstra segurança e sutileza na expressão do garoto que reencontra a família depois de tanto tempo. Emociona na medida. Nicole Kidman, como Sue, a mãe adotiva de Saroo, encontra o tom correto em sua interpretação, sem exageros, mas com a firmeza necessária ao lidar com os dois filhos, tão diferentes entre si.


Bom trabalho do diretor estreante em longas Garth Davis (da série “Top of the Lake”, 2013), num pequeno filme independente que cumpre importante função, ao chamar a atenção para as mais de 80.000 crianças que desaparecem todo ano na Índia, assim como para as mais de 11 milhões de crianças vivendo nas ruas do país. Emocionante e pertinente. Confira.




LION - UMA JORNADA PARA CASA
(Lion - 2016 - 118 minutos)

Direção
Garth Davis

Elenco
Dev Patel
Sunny Pawar
Nicole Kidman
David Wenham
Rooney Mara
Abhishek Bharate
Priyanka Bose
Keshav Jadhav



O que pode ser mais doloroso do que perder um ente querido repentinamente? E quando isto se dá defronte a todo o mundo, em transmissão direta pela televisão? E se este ente é o Presidente dos EUA e você é a Primeira-Dama do país? Jacqueline Kennedy pode responder a isso.

No novo filme de Pablo Larraín (diretor do recente “Neruda”, 2016), “Jackie”, acompanha-se a personagem título em duas linhas de tempo paralelas. Nas horas e dias que sucederam ao trágico assassinato de seu marido, o presidente mais carismático que a América já conheceu - John Fitzgerald Kennedy (Caspar Phillipson, assustadoramente parecido com Kennedy); e durante uma entrevista que ela resolve conceder tempos depois, para falar justamente sobre o assunto. Mas em seus termos, claro.


Tem-se também uma visão “por trás das câmeras” de um alentado programa de televisão que Jackie (Natalie Portman, soberba como sempre, indicada ao Oscar de Melhor Atriz 2017) concordou em fazer, numa tour pela Casa Branca, logo após a revitalização que os Kennedy promoveram na edificação, de modo a restaurar seu histórico esplendor. A obra recuperou pátinas e mobiliário originais, mas foi fortemente criticada então, taxada como um “desperdício do dinheiro público” (eles têm tanto a aprender com políticos brasileiros...).


O filme de Larraín conta com alguns pontos chaves que valem a produção: primeiro, é claro, Natalie Portman, impecável, num controlado tom de voz que emula perfeitamente o acentuado sotaque de Jackie Kennedy. Raramente ela eleva o tom da conversa, e quando o faz descortina a fera que se encerra dentro da figura tão frágil. Outro ponto alto do filme é a figura de Billy Crudup, que faz o jornalista que colhe o depoimento de Jackie e sua casa de campo. De atitude respeitosa (mas não subserviente), é o contraponto perfeito à altivez da ex-Primeira-Dama – que, aliás, tinha origem muito mais aristocrática do que o próprio Presidente.


Atente ainda para as corretíssimas interpretações de Greta Gerwig (como a assistente/amiga de Jackie, Nancy Tuckerman), e do sempre subaproveitado Peter Sarsgaard, aqui ótimo como Bobby Kennedy. E também a última aparição em filme de um já debilitado John Hurt, como um padre confessor de Jackie. Mas o ponto alto do filme realmente são seu Design de Produção – de Jean Rabasse -, que recria ambientes com elegância e precisão; e os preciosos Figurinos de Madeline Fontaine – devidamente reconhecidos com uma indicação ao Oscar. E, por falar em Oscar, o filme recebeu ainda mais uma intrigante indicação, para sua Trilha Sonora Original, da autoria de Mica Levi. Intrigante, porque a trilha sonora do filme é uma das mais irritantes dos últimos anos, sublinhando todas as cenas de maneira onipresente e redundante. Chega a incomodar. Curiosamente, estas três indicações recebidas no Oscar – Atriz, Figurinos e Trilha Sonora – são as mesmas recebidas no Bafta, o Oscar inglês.


Pablo Larraín consegue aqui um resultado muito diferente de seu filme anterior, “Neruda”, ao não deslocar o foco de interesse do personagem principal a um coadjuvante, como aconteceu naquele filme. Ganhou o cinema, e o público. Assista.




JACKIE
(Jackie - 2016 - 100 minutos)

Direção
Pablo Larraín

Elenco
Natalie Portman
Peter Sarsgaard
Greta Gerwig
Billy Crudup
John Hurt
Richard E. Grant



Em toda a história norte-americana, talvez um dos períodos mais sombrios e violentos tenham sido os anos 1960, quando aconteceram os grandes embates das lutas pelos Direitos Civis e pela integração racial de escolas e ambientes públicos, incluídos sanitários, bebedouros e transportes. Aos negros, quando disponíveis, eram dispensados lugares e equipamentos de segunda categoria, em condições sub-humanas.

E o documentário “Eu Não Sou Seu Negro” (I Am Not Your Negro, 2016), do diretor haitiano Raoul Peck (de Abril Sangrento, 2005), trata justamente deste período, partindo de material precioso, porém escasso. O roteiro é baseado em textos preparados pelo escritor James Baldwin (1924 - 1987), de 1979 a 1987 (ano de sua morte), para o que seria seu próximo projeto editorial, o livro "Remember This House". No livro, Baldwin iria tratar da vida e da obra de três de seus amigos pessoais que foram figuras fundamentais em toda a luta pelos Direitos Civis, e pereceram justamente por sua militância. Foram eles Medgar Evers (1925 - 1963), Malcolm X (1925 - 1965) e Martin Luther King Jr (1929 - 1968), três ativistas de linhas de pensamento diversas, mas de objetivos convergentes, todos brutalmente assassinados ainda jovens (com 37, 39 e 39 anos de idade, respectivamente), e todos por ativistas radicais cegados por suas doutrinas.


O que é mais impressionante no documentário é o fato de que apenas 30 páginas de material escrito (o legado original inacabado de Baldwin), cenas filmadas de arquivo do autor e de seus objetos de estudo, e abundante material cinematográfico do período – com ênfase em filmes protagonizados por Sidney Poitier e Harry Belafonte, dois dos maiores atores negros do cinema americano – foram capazes de forjar um contundente retrato do período, além de traçar preocupantes paralelos com a atual situação social norte-americana, que deve certamente se agravar frente à política – interna e externa – da nova cúpula governamental do país.


Com narração surpreendentemente contida de Samuel L. Jackson, dando voz a James Baldwin, “Eu Não Sou Seu Negro” traz à tona, com clareza e simplicidade, o complexo caldeirão étnico que compõe a sociedade norte-americana, onde a “supremacia branca” já perde espaço há décadas para a soma das chamadas “minorias”, negros e latinos incluídos. Pertinente e imperdível!





EU NÃO SOU SEU NEGRO
(I Am Not Your Negro – 2016 – 95 minutos)

Direção
Raoul Peck

Roteiro
James Baldwin

Narração
Samuel L. Jackson

Todos os filmes
mencionados acima
estão em cartaz no
Cinespaço Miramar Shopping



Carlos Cirne é Crítico de Cinema
e há 15 anos produz diariamente
com o crítico teatral Marcelo Pestana
a newsletter COLUNAS E NOTAS,
de onde os textos acima foram colhidos








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