(ilustração: Mariza Dias Costa)
extraído do livro "A Segunda Mais Antiga Profissão do Mundo" (Ed. Três Estrelas)
publicado originalmente na Ilustrada em 04-05-1979
No avião para Londres, achei que as aeromoças (agora chamadas feministicamente de assessoras de voo, sendo que "assessor" em inglês não tem feminino), apesar do título feminista, estavam galinhando comigo. Em seguida, que meus dentes tinham caído, ou o cabelo.
Depois que a calça rasgara no, digo, na minha "Maggie Trudeau".
Depois, notei um rapaz ao meu lado, na janela. Parecia uma senhora de cinquenta anos, pele cansada, minha filha. Cabelos escorrendo pelo ombro. Calças de veludo verde, camisa de delinquente estilizada, gravata de Fu Manchu, roupa cortada mui estranhamente. Tirou as botas de caubói e ficou descalço. Uma caixa de bolinhas na mão, rotativa. Cara familiar. Não olhava ninguém, o que é marca de celebridade, não agradeceu as três taças de champagne, eu agradeci as minhas duas.
Era, descobri, Mick Jagger. Todas as moças em chamas, ele nunca me olhou ou me falou. É um bom companheiro de assento. Não pede licença. Ou melhor, pede, mas não incomoda. Pula por cima da gente, como um chimpanzé craque.
Pensando em você, que não vive a "emoção" do correspondente estrangeiro (que troco por uma choça em Petrópolis, pelo mesmo salário), meu caro leitor (todos os sexos), comecei a anotar mentalmente a "vida" de Mick.
Papamos a mesma salada. Ai, ai, ai. Tracei um consommé, ele não. Mas, Mick, sopa se toma à noite. Pediu uma lasanha. Eu, um bife malpassado. Era, infelizmente, carne inglesa, não americana (nos eua se pode e deve comer carne malpassada. Na maioria dos outros países, ao ponto, se bem que, na França, ao ponto é malpassado).
Menino pobre nunca se cansa de massas italianas. Comecei a fantasiar a gloriosa ascensão de Mick da sarjeta, muito contrarrevolucionária, porque enquanto existirem Cinderelas, fantasiaremos que somos a dita. E, no entanto, Mick, ao contrário dos Beatles, assustou a burguesia (ver, entre muitos exemplos, "Citadel", que alguns acham baseada na batalha de Khe Sahn). Havia algo nele de genuinamente subversivo. Isso no tempo em que rock era importante para os garotos, que ainda não se haviam rendido aos confortos da música disco. Hoje rock morreu, disco infesta.
O certo é que Mick não dorme como você e eu. Ele tomou uma bola e começou a ler uma revista. Aí, no meio, segurando a revista, terminávamos de jantar, fechou os olhos e nessa posição permaneceu horas. Ao acordar, sacou nova bola, sacudiu a cabeça depois de tomá-la e era "um novo homem". Mick não é o único que vive assim, com uppers and downers, de pílula em pílula...
Londres continua minha cidade quase favorita, apesar de eu vir aqui ver a fauna que mais abomino, os políticos. Agora, os preços são suficientes para que os eleitores enxotem os trabalhistas do poder. Não interessa que os conservadores sejam piores. São. O fato é que os trabalhistas não devem ser recompensados com reeleição pelas desgraças que baixaram sobre sua formosa ilha.
Há um mito de que Mick não lê nada. Papo. Flagrei-o lendo o colunista político do Village Voice, Alex Cockburn, a seção de artes e, vexame para o ídolo supremo do inconformismo, "palpites para o consumidor".
Onde está o famoso entourage que percorria o mundo num jato, carregando moças para todas as ocasiões e drogas, sendo recebidos todos em cada porto por massas histéricas? Estará Mick reduzido à vulgaridade de um jato comercial? Ou quer impressionar o imposto de renda inglês (83% são cobrados de gente na faixa de Mick) ou a Justiça, contra sua ex-mulher Bianca Macías, vulgo Jagger, que para se divorciar oficialmente dele quer 10 milhões de dólares à vista e 9 mil dólares por semana, valorizando assim seus "7 centímetros" e vagabundagem como se fossem um diamante raro?
Em Londres, Mick e eu fomos recebidos por uma massa incalculável no aeroporto de Heathrow. Não eram nossos fãs, não. É o resultado da era do charter, do pacote que permite a todo mundo viajar, ou seja, a que os pobres nos inflijam sua incômoda e desagradável presença (há sempre comida pelo chão e crianças berrando). Me senti o "filho de Pinochet" lutando quase uma hora para arranjar carro e chofer que me levassem a Londres.
Às vezes me pergunto se não me tornei um extremista político por motivos estéticos, porque me ofendia a pobreza coletiva. Hoje, que voltei ao natural, não acreditando em mais nada, resta o desgosto. Sou um infeliz.
Paulo Francis (Rio de Janeiro, 02-10-1930)
foi um intelectual completo e um grande polemista.
Começou sua carreira como crítico de teatro
e pouco a pouco foi-se transformando
no articulista mais eclético e mais influente
de toda a história da Imprensa Brasileira.
Trabalhou na Tribuna de Imprensa, no Correio da Manhã,
no Jornal do Brasil, na Folha, no Globo, no Estadão
e também nas revistas Senhor, Status e Bravo!
Francis morreu na cidade de Nova York
em 04-02-1997, há exatos 20 anos
Começou sua carreira como crítico de teatro
e pouco a pouco foi-se transformando
no articulista mais eclético e mais influente
de toda a história da Imprensa Brasileira.
Trabalhou na Tribuna de Imprensa, no Correio da Manhã,
no Jornal do Brasil, na Folha, no Globo, no Estadão
e também nas revistas Senhor, Status e Bravo!
Francis morreu na cidade de Nova York
em 04-02-1997, há exatos 20 anos
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