- E aí, cara, pensei que você não vinha mais! E agora chega com essa cara de quem comeu e não gostou, é ressaca de carnaval?
– Eu não estou de ressaca. Aliás, pensando bem, estou. Não tenho mais preparo físico para aguentar um carnaval.
– Onde é que foi que você brincou?
– Eu não brinquei, há muito tempo que não brinco carnaval. Já fui até muito chegado, mas hoje em dia não quero nem saber. Não, eu estou de ressaca é de não dormir direito, com esses blocos parecendo que estavam todos debaixo da janela do meu quarto, levei dois dias praticamente sem pregar olho. Isso é um absurdo, essa esculhambação na rua, deviam proibir esse negócio.
– Ué, eu não entendo você. Alguns dias antes do carnaval, aqui mesmo, você disse que era a favor do carnaval de antigamente, o carnaval de rua, o espontâneo, o dos blocos, não sei mais o quê.
– É, dou a mão à palmatória. Não sou mais. Quer dizer, continuo a achar que o carnaval de antigamente era melhor, mas isso era antigamente, não dá para o antigamente ser hoje, eu tenho é que me recolher na terceira idade e ficar na minha, não me adapto mais, estranho tudo. Você viu aquelas mulheres nuas com o corpo pintado, viu a musculatura? Eu vou lhe dizer a verdade, mesmo quando eu tinha 30 anos, não sei se eu encarava uma mulher daquelas. Se uma mulher daquelas aplicar uma chave de perna num infeliz qualquer, ele pode encomendar a alma ao diabo, porque nem um pé-de-cabra solta ele. Eu pensava que as pernas do Adriano eram parrudas, mas perto dessas mulheres ele é franzininho.
– É, antigamente elas tinham curvas mais suaves, tinham cintura…
– E não ficavam peladas o tempo todo! Eu não sou contra mulher ficar pelada, mas o tempo todo é um exagero. Podia haver fantasias até mais sensuais, que não mostrassem logo tudo, não é preciso apelar. No meu tempo, por exemplo, as moças se fantasiavam muito de havaiana, com saiote esfiapado e as pernas aparecendo.
– E por baixo um short comprido, um corpete fechado e um calçolão blindado. Deixa de ser saudosista, cara, tem que colocar as coisas dentro do tempo, da atualidade. A fantasia de havaiana que você falou pode continuar a existir, só que dentro da realidade atual. Aliás, você me deu uma ideia, eu vou falar com o Maurição, o Maurição você sabe como é, é o maior produtor de festas de embalo do Rio de Janeiro, de repente rola até uma grana nisso, o Maurição sabe tudo. Isso que você falou me deu a ideia, uma festa com as mulheres todas fantasiadas de havaiana. Ou seja, sem nada em cima, mas de sandália havaiana, sacou? Se a ideia for bem trabalhada, dá para descolar um belo patrocínio com uma dessas fábricas de sandália. E conseguir mulher que pinte lá disposta a aparecer só de sandália vai ser a maior moleza, acho que dá até para cobrar taxa de inscrição. Bota um jornal ou revista nisso, bota umas duas celebridades, o suprimento de mulher pelada é automático. Eu tenho tino para empreendimentos, fico sempre observando as oportunidades que surgem. Aliás, que bela ideia, cara! O Festival Carioca do Nu Artístico! Carioca não, nacional! Internacional! Bota um nome em inglês, o Nude-in-Rio, pega logo! Tem que pensar grande, cara, pode ter certeza de que, se um cara com capital para investir pegar essa ideia, vai encher o rabo de dinheiro! Eu já estou aqui sacando as ramificações, cara, tem uma carroça cheia de grana esperando quem tiver essa iniciativa.
– Você já está de porre a esta hora?
– Não, você é que está querendo viver num mundo que não existe mais. Eu não, eu vivo no Brasil novo, no Brasil onde todo mundo prospera e quem tiver visão fica rico, todo dia estão surgindo novos milionários e são as ideias que fazem esses milionários. Muitas ideias que no princípio pareciam loucas terminaram em grande sucesso. A mulher pelada nacional é um dos nossos recursos naturais, tanto quanto a paisagem da Baía de Guanabara. Nós temos é que afastar os preconceitos e dar o destino mais lucrativo possível a nossos recursos, isso é que é desenvolvimento sustentável, a mulher pelada é um recurso altamente renovável. Você está por fora, está fixado no tempo do derrotismo e do atraso. Por exemplo, essa birra que você pegou contra o carnaval de rua é dar murro em ponta de faca, tem mais é que se sintonizar com os novos tempos e, sempre que possível, procurar tirar partido da situação. O carnaval de rua voltou para ficar, esta é que é a realidade.
– Espero que pelo menos o cheiro de mijo vá embora.
– Taí, você bateu em cima, olha a oportunidade de ganhar dinheiro aí, pensei nisso o carnaval inteiro. E pensei com criatividade. Vou ver se o Maurição tem contatos que consigam um patrocínio das cervejarias, dá para bolar uma série de esquemas, mas o principal é minha ideia. Minha ideia é pegar uns caminhões gigantes, desses de trio elétrico, e converter num conjunto de banheiros para uso dos blocos. O bloco anda e o Mijomóvel vai atrás, tudo arrumadinho, dá para uma série de bolações, é só soltar a criatividade, eu tenho anotado uma ideia atrás da outra.
– Eu também tive uma ideia. Neste caso, por que não criar também o Bloco do Fraldão? Em vez de ir ao banheiro, todo mundo se mija na fralda e fica despreocupado, vai ser um bloco muito tranquilo.
– Você está de gozação, mas é isso mesmo, são as ideias! Essa ideia do fraldão pode dar samba, acho que é possível pegar o patrocínio de um grande fabricante, botar umas popozudas sambando de fraldão…
(publicado originalmente em O GLOBO e O ESTADO DE S. PAULO, 3 de Março de 2011)
João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro
nasceu em Itaparica, Bahia, em 1941.
Formou-se em Direito em Salvador,
mas preferiu ser romancista,
jornalista, cronista, roteirista e professor
a ter que trabalhar como advogado.
Ganhou o Prêmio Camões de 2008
e foi membro da Academia Brasileira de Letras.
É autor de romances magníficos
como Sargento Getúlio,
O Sorriso do Lagarto,
A Casa dos Budas Ditosos
e Viva o Povo Brasileiro.
Este último acabou virando samba-enredo
pela escola de samba Império da Tijuca,
no Carnaval de 1987.
João Ubaldo morreu em 2014
em decorrência de uma pancreatite crônica.
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