Monday, July 11, 2016

MATINÊ NO CINE GLÓRIA NUM DIA DE SEMANA (um conto mínimo de Márcio Calafiori)



“Mamãe, já começou o filme?”

“Não, esse é o trailer. Não quer fazer xixi?”

“Não...”

“Já sei, tu vais esperar o filme começar pra ter vontade, não é?”

“Não.”

“Não come todos os dropes. Deixa pra quando o filme começar.”

“Já começou o filme?”

“Não quer fazer xixi?”



“Presta atenção, o filme vai começar.”

“É um filme de quê?”

“Já te disse! É de amor.”

“Filme de amor é parado.”

“Mas esse é bom.”

“Mamãe, por que a senhora só gosta de filme de amor?”

“Ah, um dia tu vais entender. Agora, boquinha fechada. O filme tá começando.”



“Mamãe, pra onde a ambulância tá indo? Quem tá doente?”

“Espera um pouco... Ah, eles estão levando uma guria que foi atropelada na rua.”

“Mas por que ela foi atropelada?”

“Porque atravessou a rua sem olhar. Isso é o que acontece com quem anda no meio da rua sem tomar cuidado.”

“Eu olho para os lados quando atravesso a rua. Só não olho quando estou com a senhora e o papai, pois os adultos são os responsáveis pelas crianças.”

“É isso mesmo. Mas agora para de falar. Presta atenção no filme.”



“Mamãe, por que o homem está olhando pra moça?”

“Ah, ele gostou dela.”

“Eles são namorados?”

“Ainda não.”

“O homem e a moça vão sair?”

“Vão. Fica quieto.”

“Pra onde eles estão indo?”

“Ah, eles vão passear.”

“Mas aonde?”

“Eles estão em Hong Kong.”

“Esse lugar é lá longe?”

“É.”

“Por que eles estão batendo nas tigelas?”

“Porque assim os maus espíritos ficam com medo do barulho e vão embora.”



“Mamãe, pra onde o homem e a moça estão indo agora?”

“Eles vão namorar.”

“Namorar?”

“É, eles são tão bonitos...”

“Por que a moça não quer beijar o homem?”

“Ela quer e não quer. Um dia tu vais entender.”



“Mamãe, que lugar é esse em que o homem e a moça estão?”

“Ah, é a Colina do Amor.”

“Olha, a borboleta parou no ombro do homem!”

“Essa é a borboleta da boa sorte. Que linda!”



“Mamãe, por que o homem e a moça estão discutindo?”

“Ah, por bobagem. Daqui a pouco eles ficam de bem.”

“Mamãe, por que o homem e a moça estão conversando? Eles não tinham brigado?”

“Parece que agora vão ficar de bem. Vamos esperar... Viste? Não te falei? Eles fizeram as pazes e vão se casar.”

“Vão casar?”

‘É.”

“Por que a moça tá rindo e chorando ao mesmo tempo?”

“Porque ela está muito, muito feliz.”

“Quando eu tô feliz eu não choro.”



“Por que a moça beijou a carta, mamãe?”

“Porque na carta o namorado diz que a ama e que está com saudade dela.”

“Mas por que ela beijou a carta?”

“Porque imaginou que o namorado estava ali com ela.”

“E aonde o namorado dela foi?”

“Ele foi pra guerra. Fica quieto, vê o filme.”



“Mamãe, por que a música desse filme é triste?”

“É uma música de amor e saudade, por isso é um pouco triste.”

“Por que a moça tá guardando as cartas?”

“Porque são cartas de amor.”

“Mas por que ela guarda? Por que não joga fora depois de ler?”

“Porque as cartas falam de sentimentos bonitos. As coisas bonitas a gente guarda. Agora deixa a mamãe ver o filme. Come os dropes.”

“Já comi tudo.”

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“Mamãe, por que o homem parou de escrever e saiu correndo?”

“Porque ele tá na guerra e os inimigos começaram a atacar?”

“Vai ter briga agora?”

“É só um ataque dos aviões.”

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“Mamãe, por que aquela mulher não quer entregar o jornal pra moça?”

“Porque o jornal não traz notícias boas.”

“Por que a moça tá chorando?”

“Porque o namorado dela morreu na guerra.”

“Morreu? Como ele morreu?”

“Ele foi ferido e morreu.”

“Mas eu não vi ele morrer.”

“Tu não viste porque ele deve ter morrido à noite. Mas a gente sabe que ele morreu.”

“Mas como ele morreu?”

“Alguém deve ter dado um tiro nele.”

“Com o revólver?”

“É.”



“Mamãe, por que a moça tá correndo?”

“Não sei ainda... Vamos ver...”

“Pra onde a moça está indo?”

“Ah, já sei. Ela indo para a colina onde ela e o namorado se encontravam.”

“Mamãe, olha! O homem não morreu. Ele está chamando a moça!”

“É só a imaginação dela. Ele morreu sim."

“Por que a moça tá chorando?”

“Porque ela nunca mais vai ver o namorado. Coitada.”

“Mamãe, olha a borboleta. Por que a moça tá olhando a borboleta?”

“Porque a borboleta é uma lembrança boa.”

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“O filme já vai acabar?"

“Daqui a pouco.”

“Por que essa música é triste?”

“Porque o amor deles foi triste. Que lástima.”

“Eu não queria que o homem morresse.”

“Não fica preocupado. Ele morreu de mentira.”

“Por que de mentira?”

“Porque é só um filme.”

“Esse filme parece de verdade.”



Márcio Calafiori é jornalista. 
Nasceu em 1957 e se formou 
pela Facos em 1986. 
Exerceu quase todos os cargos 
em redações de jornais em Santos, 
Santo André, Campinas e São Paulo. 
Foi redator, repórter, revisor, editor, 
secretário de redação, 
chefe de reportagem e ombudsman. 
Aposentou-se em 2012 
como professor da Unisanta, 
depois de 29 anos 
de dedicação exclusiva 
ao Jornalismo Impresso.
Colabora regularmente com

LEVA UM CASAQUINHO.


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