Thursday, July 14, 2016

QUAL O LIMITE? (uma investigação literária e familiar de Marcelo Rayel Correggiari)

por Marcelo Rayel Correggiari


Em tempos de polarização de discussões, ultrapersonalidade e uma grave crise humana, que devoram instituições, biografias e modos de vida, enfrentamos o bom e velho assunto sobre qual o limite das coisas.

Sem que isso, obviamente, caia no andar rasteiro do que costumeiramente chamaríamos de ‘censura’ (ou auto-censura). Há uma linha tremendamente imperceptível e tênue entre o que chamaríamos de ‘bom-senso’ e questões referentes a qualquer tipo de cerceamento.

O que eventualmente damos o nome de ‘censura’ (ou auto-censura) pode ser facilmente encarado como um dispositivo para mitigar a inconveniência de alguém (ou de si próprio). Algo semelhante a chegar em trajes de banho, abrir ‘uma gelada’, puxar um pandeiro e um tam-tam para um estrondoso pagode no meio de um velório.

Exceto no funeral de algum sambista, tal postura não seria tão chocante assim. Caso contrário, ... Um dos principais combustíveis sólidos para a inconveniência é um antigo e saudoso amigo do Rei Salomão chamado vaidade (ou o que pessoalmente costumo classificar como ‘o mundo segundo eu mesmo’). Podem apresentar qualquer análise possível, lá pelas tantas, passem a lupa: encontrarão a vaidade como alicerce de boa parte dos desafetos e de tudo aquilo que emperra. E, no século XXI, não há biografia que escape. Caímos novamente na armadilha: “A Arte tem de ser livre?”. A Arte até é (e teria de ser) livre, no caso de ‘evento interno’, uma cidade onde todo mundo fosse artista. A Arte até é livre. O duro é convencer a platéia disso.

Quando algum(a) artista decide nortear seu trabalho por algum tipo de critério em favor do bom-senso, medida certa (ou adequada) para que uma simples dor-de-cabeça não se transforme em óbito diante de tanto analgésico ministrado, coitado(a): vai levar pau até dizer chega. O(A) artista, como qualquer ser humano, é passível de erro e nem sempre goza das mais perfeitas faculdades mentais. Também é alvo das mesmas quedas que acometem qualquer um. Não há leis, regulações oficiais ou médicas que permitam afirmar o fim de quaisquer distúrbios psiquiátricos pelo fato de alguém se descobrir artista.

Logo, prudência, dinheiro no bolso e canja de galinha...



Tal preambulo talvez seja alvo de grande discussão quando nos deparamos com uma obra de arte inacabada(pretensamente?), como o conto do romancista inglês Martin Amis chamado “O Conhecido Desconhecido”. Conversei com o editor desse renomado blog e não conseguimos (ainda!) encontrar a devida obra traduzida para o Português. Se há tradução, devemos essa, por enquanto, aos(às) queridos(as) fregueses(as) dessa humilíssima Mercearia. Publicado originariamente na edição de 08 de dezembro de 2008, pela revista Granta, com o título “The Unknown Known”, o(a) leitor(a) da obra repentinamente a encontra interrompida com uma nota do autor explicando o motivo de torná-la inacabada. Segundo Amis: “(...) Abandonei a história por muitos motivos, todas elas estritamente exógenas. (...)”. Hmm... tudo bem. “O Conhecido Desconhecido” conta a história de um personagem com a alcunha de Ayed (uma paródia para a expressão em língua inglesa ‘eyed’, ou ‘aquele que está sendo observado’, ‘o que tem olhos’) e seu dia-a-dia como um membro de uma comunidade islâmica norte-americana, sendo ele encarregado de organizar e treinar células terroristas.

Filho do lendário Kingsley Amis, seria impensável vê-lo (ele, Martin) discorrer sobre um tema, uma narrativa, sem esmiuçar o trágico teatro humano, ou demais paradoxos, sempre com uma ordem para alguma moralidade cujo elemento conclusivo é quase sempre uma verve bem pútrida encontrada nos seres humanos.



Quem chegou a ler “Girl, 20”, do pai, Kingsley, encontra perfeita dificuldade em ver Martin (o filho) não construir uma narrativa cujos personagens abdicam de questionar tudo aquilo que os cerca. Em geral, os personagens de Martin Amis são dotados de uma percepção à dualidade, críticos severos das condutas e posturas obtusas.

O que é próximo do encantador em Martin é sua coragem em sentar o pé no acelerador até o calcanhar colar no assoalho do automóvel. Ele sequer perde a linha quando alguém enfia o dedo na cara dele, disparando: “Moralista!”. Definitivamente, é um sujeito que não está ‘nem aí’.

 As questões em torno da Moral são os pratos prediletos do autor. E, com sua eterna coragem, diz: “Isso aqui... ‘tá’ errado!”. Toca na ferida de forma singular, enredando o(a) leitor(a) no sabor de sua narrativa. E sem medo de possíveis sensibilidades. Porque, para Amis, boa parte das pessoas agem igual às reações oriundas da leitura de “O Príncipe”, de Maquiavel: um modelo “imoral” de praticar o poder, mas seguido à risca por quase a totalidade das pessoas que o criticam.

Martin faz isso com enorme ‘fôlego dissertativo’, sem soar retrógrado, reacionário, fundamentalista, intransigente ou meramente moralista. Diferente de boa parte de cronistas, romancistas e ensaístas que, nos dias de hoje, apelam à vulgaridade chula e barata de seus cansativos temas rasos para provocar algum choque a fim de se discutir qualquer assunto em torno da Moral.



Costuma-se dizer que no primeiro dia de aula de qualquer curso de Direito de porta-de-esquina, o(a) professor(a) de Introdução ao Estudo do Direito é categórico(a) em afirmar: “Premissas falsas, conclusões falsas”. Assim, partirei da premissa (ainda que falsa e, logo, com conclusão falsa) de que a obra inacabada de Amis em “O Conhecido Desconhecido” nada mais é do que parte da própria narrativa produzida pelo autor (ou seja, de caráter artisticamente ‘intencional’, o famoso ‘de caso pensado’).

Martin Amis, ao incorporar como recurso narrativo do conto sua própria interrupção por motivos “estritamente exógenos” através de uma nota, entrega ao(à) leitor(a) um ponto da discussão sobre o ‘limite das coisas’, um critério erigido sobre o bom-senso em torno de qual o índice de tolerância a ser empregado diante de certos gestos, posturas e expedientes.

É fácil ser crítico de uma forma de vida adotada por seguidores de uma determinada religião, ou associá-la a atos terroristas de qualquer natureza, quando se vive num lugar com diferente inclinação religiosa. Você não precisa dar de cara com nenhum fiel assim que sai de casa. Quando se mora em Argyle Street e no caminho para o metrô você se depara com paquistaneses vestidos à caráter e mulheres de burka, é de se pensar umas quatro, cinco vezes se vale a pena seguir adiante com um conto cujo cenário é a associação da prática mulçumana com organização de células terroristas.

Até mesmo porque cabe certa má interpretação numa leitura muito resumida e superficial do conto: Ayed também se sente desconfortável com a idéia de ‘redenção’ dos mártires, de certos usos e costumes da religião praticada pela família onde ele nasceu. Ayed é questionador: não concebe uma estrutura mínima que o permitisse compreender melhor o porquê de tudo aquilo.

Se uma estrutura é condição fundamental para que se decodifiquem signos, para que alguém crie melhores critérios a fim de contemplar um caráter mais cognitivo das coisas, logo se tornam claras as angústias da personagem principal no que se refere ao verdadeiro sentido de se acreditar no que se acredita, de manter determinadas tradições sem pé, nem cabeça, de levar a cabo qualquer plano sem a conformidade do desejo de quem a executará.

Além disso, Ayed também problematiza a canhestra burocracia das instituições religiosas, que se perdem, dependendo do objetivo, num organograma semelhante ao encontrado em forças militares, uma ‘cultura de bureau’ com uma quantidade pavorosa de encarregados, líderes religiosos que enxergam fantasmas ao meio-dia, num esforço que não gera dividendos para absolutamente ninguém. Ao contrário: só reforçam preconceitos e temores em relação às comunidades islâmicas locais.

Sendo ou não a interrupão do conto por intermédio de uma nota do autor como um recurso literário introduzido na narrativa (ou seja, um instrumento tão fictício quanto o próprio conto e a criação literária), Matin propõe ao(à) leitor(a) o retorno à discussão sobre os limites do que se pode fazer na vida. Tudo é permitido, mas nem tudo é lícito (ou seguro). Nem tudo o que se faz na vida é bacana de ser feito, independente do grau de privacidade que cada um mereça. A própria privacidade tem limites: se algo de fôro íntimo se torna inconveniente a alguém, principalmente a uma terceira pessoa, supõe-se que essa intimidade possa ser tudo, menos privada. Há proporcionalidade na privacidade: quanto mais os efeitos colaterais de uma intimidade afetam o bom andamento de qualquer coisa e, por consequência, atingem direta ou indiretamente pessoas fora desse ‘espaço íntimo’, mais públicos eles se tornam. Obviamente, algo deixa, assim, de ser privado (ou íntimo) para se tornar público.

Além disso, Martin Amis sinaliza com a interrupção do conto que é preciso melhor domínio sobre certos assuntos antes que se abra a boca. A boa e velha frase “Não sei muito sobre esse assunto”, no melhor estilo Glória Pires na cerimônia de entrega do Oscar, pode, inclusive, salvar a própria pele, assim como a dos demais membros da família e amigos mais próximos. Discutir assuntos em torno da moralidade exigem bem mais do que análises bem amarradas: os gestos precisam, primeiramente, estar em conformidade. Nem que para isso, como visto no caso do conto de Amis, seja preciso recuar.



(Nota do Editor: Interessados em conhecer o conteúdo da versão web da Revista Granta podem clicar AQUI)

Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 47 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO


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