Já estava ficando meio sem graça, chato mesmo, receber notícia de que mais alguém caiu de cama com dengue, pois os mosquitos estavam em dias de festa. Não havia quem não tivesse levado picada... Mas isso foi até o fim de semana, pois, reunidos no cafezinho, na segundona brava, deram pela falta de um.
“Estranho, ele nunca falta, deve ter acontecido alguma coisa”.
Não demorou, chegou alguém dizendo: “foi picado”.
A risada dos cinco parou de repente: “Por uma jararaca!”
“Como?!?”
“Ele foi andar no mato?”
“Que nada, foi no asfalto, em plena cidade”.
Antes que um fanfarrão fizesse piada com mulher, quem trouxe a notícia disse que ele correu com a cobra para o pronto-socorro sucateado da cidade, que estava cambaleando pelos efeitos da última desadministração. Filas, atendimento precário, gente sofrendo. Se era assim lá, imagine-se o resto da cidade, com lixo empilhado por tudo que é canto e, agora, também cobras rebolando livremente pelas ruas, já não apenas dentro dos gabinetes.
No pronto-socorro deram uma injeção que não era de soro antiofídico e o mandaram pra casa descansar. Estava tudo muito fácil.
Em casa, olhando para os desenhos no teto manchado de umidade, pensando nas cores da cobra e com as dores aumentando e começando um sangramento nas gengivas, as coisas começaram a ficar mais difíceis. A irmã então teve a ideia de pesquisar na internet. Achou o telefone do Butantã e o médico de plantão instruiu: “Corra para o hospital tal, na cidade vizinha. Quanto tempo vocês levam?” “Uma hora.” “De jeito nenhum! Se demorar isso ele morre, vocês têm que chegar lá em meia hora! Vou ligar para os médicos ficarem na espera”.
A cidade era próxima, furaram uns sinais, correram além do limite permitido, mas diminuindo para dar bom dia aos radares, e conseguiram chegar. Nova injeção de soro certo, exames de sangue, repouso, voltou pra casa. Apareceu no trabalho dois dias depois, passou mal com as recorrentes ânsias de vômito e tonturas e teve que se afastar mais uns dias. Quando voltou, trouxe a foto da cobra, uma jararaquinha amarela, alguém logo disse que era loira...
Num verso, a poeta polonesa Wislawa Szimborska diz que “a cobra mais longa da Terra acaba ao fim de alguns metros”. Aquela jararaquinha acabava bem antes. Mas o fato é que se alongou bem mais que a maior cobra do mundo, pois se esqueceram da dengue e do mosquito e a cobra passou a povoar as mentes de todos, percorrendo lugares sutis da imaginação, assim como o veneno espraiou-se pelo corpo do rapaz.
Todos estavam habituados a conviver com os seres peçonhentos, venenosos e envenenantes que saem das urnas e rastejam pelas repartições públicas procurando cofres sem dar botes visíveis. Aquela cobrinha remetia para outro lugar, para um âmago vital dada sua imprevisibilidade que começava com o fato de que nem no lugar mais asfaltado e azulejado já se podia estar seguro.
Szimborska agora poderia escrever outro poema dizendo que a cobra mais longa é aquela que está na imaginação de todos e não acaba, por mais metros que se passem.
Ademir Demarchi é santista de Maringá, no Paraná,
onde nasceu em 7 de Abril de 1960.
Além de poeta, cronista e tradutor,
é editor da prestigiada revista BABEL.
Possui diversos livros publicados.
Seus poemas estão reunidos em "Pirão de Sereia"
e suas crônicas em "Siri Na Lata",
ambos publicados pela Realejo Edições.
Suas crônicas, que saem semanalmente
no Diário do Norte do Paraná, de Maringá,
passam a ser publicadas todas as quintas
aqui em Leva Um Casaquinho
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