para Papo de Cinema
“Vida é o que acontece enquanto você está ocupado fazendo outros planos”. A frase de John Lennon (da canção Beautiful Boy) serve de lema no cartaz de Califórnia, primeiro longa de ficção de Marina Person. Filha do mestre Luiz Sergio Person (diretor do clássico São Paulo: Sociedade Anônima, 1965) – a quem dedicou seu primeiro esforço como realizadora de longa-metragem, no documentário Person (2007) – a também atriz, apresentadora de televisão e crítica de cinema decidiu sabiamente trilhar um caminho seguro nessa estreia, investigando uma trama de fortes tons autobiográficos e colocando a protagonista, vivida pela igualmente novata Clara Gallo, como sua alter ego. O resultado, tímido e pouco ambicioso, é simpático dentro dos limites que se auto-impõe, sem ousar, nem surpreender.
Estamos em São Paulo, início dos anos 1980. Estela (Gallo) é uma adolescente como tantas outras da sua idade: tem as melhores amigas de escola, flerta com o garotos, é fã de música e cinema e nem sempre está no melhor dos humores em casa, juntos aos pais (Paulo Miklos e Virgina Cavendish, apropriados) e com o irmão menor. Seu maior ídolo é o tio Carlos (Caio Blat, em participação especial), que jogou tudo para o alto e foi viver em Los Angeles, nos Estados Unidos, para trabalhar como jornalista e experimentar tudo que no Brasil daquela época ainda era inacessível – rock, drogas e até sua velada homossexualidade, escondida da família, porém não dissimulada. A menina o vê como um herói, alguém que foi atrás dos sonhos sem olhar para trás e que hoje é seu maior exemplo. Tanto que, ao invés da tradicional festa dos 15 anos, ela pediu como presente uma viagem à Califórnia, não só para visitá-lo mas também para vivenciar um pouco de tudo aquilo que só conhecia através das cartas que ele lhe envia regularmente. Mas nem todos os planos são feitos para serem realizados.
Marina Person divide seu foco entre dois momentos distintos: o cotidiano de Estela, a rotina ao lado das colegas, o possível namoro com o surfista bonitão (Giovanni Gallo, do ótimo De Menor, 2013) e a atração que aos poucos vai surgindo pelo colega ‘alternativo’ (Caio Horowicz, premiado como Melhor Ator Coadjuvante no Festival do Rio). Entre elas há o relacionamento, a amizade, a confiança. Com o primeiro garoto, se defronta com a descoberta do sexo, a atração física, a autoestima. E com o segundo há um entendimento mais profundo e, por isso mesmo, mais complicado de ser elaborado. Nestes aspectos o filme se sai mais convincente, ainda que não seja totalmente inédito. Conquista pela simplicidade, pela honestidade com que assume suas emoções e por evitar clichês evidentes.
No entanto, os problemas se revelam naquele que deveria ser o argumento de virada: a chegada do tio Carlos. A volta do parente ao Brasil frustra as expectativas da garota em ir aos Estados Unidos, e também serve para levantar outra discussão: ele está doente, vítima da AIDS e, principalmente, da desinformação generalizada que dominava a situação naquela época. Person, no entanto, evita um aprofundamento neste debate. A própria homossexualidade dele é abordada de modo apenas passageiro – vemos apenas uma cena ao lado de um suposto namorado, vivido de forma discreta e convincente por Ivo Müller. Não se questiona, nem se instiga uma maior troca de ideias a respeito. Fica tudo sob o olhar da protagonista, mas com tanto a viver ela oferece pouca atenção a um episódio que até então parecia lhe ser de suma importância. Acaba, por isso mesmo, menor, quase como uma nota de rodapé, ao invés de assumir o devido impacto até então imaginado.
Estela tem tanto a passar, a conquistar, a comemorar e a lamentar que chega a ter a impressão de não aproveitar o hoje na medida que lhe é oferecido. Marina Person está ali na tela, e bem sucedida que é, sabemos que no final tudo dará certo, rumo a um inevitável final feliz – e, ainda que este não seja o mais óbvio, fica claro ser o necessário. Califórnia é um filme de passagem, de amadurecimento, de possibilidades. Nem todas chegam a ser exploradas em todo o seu potencial, mas o resultado está longe de se revelar uma experiência frustrante. É um passo importante, tanto para a personagem da ficção quanto para a cineasta em formação. Afinal, o futuro das duas tem tudo para ser auspicioso. Resta confiar no tempo e esperar pelo melhor.
por Rodrigo Fonseca
para OMELETE
Segundo a geografia de afetos cartografada por Marina Person em seu primeiro longa-metragem de ficção como realizadora, exibido na segunda à noite na Première Brasil, a Califórnia fica logo ali. Mas esse “ali” não quer dizer um perímetro físico, demarcado no mapa dos EUA, e sim uma área emotiva - às vezes doída, às vezes chapada - no imaginário da gente, não importa a idade. Nela residem sonhos de conquista da liberdade, ao explorar a imensidão de um mundo celebrizado pelo cinema e, ao lado desses sonhos, moram músicas – aquelas das boas, tipo The Cure e cia. - que embalam a perdas de diferentes virgindades: a de beijos na boca, a da transa inaugural, a da inocência frente às decepções que o verbo “amadurecer” nos apronta. Essa Califórnia virou filme. Algo que quem nunca viu Person, o documentário dirigido por Marina em 2007, sobre seu pai (Luís Sérgio, diretor do clássico São Paulo S/A), chamaria de um filme-casulo. Por quê? Porque Marina entrou nele ainda um pouco VJ e saiu cineasta com “C”, com a maturidade do risco e a sabedoria de fazer da delicadeza seu norte.
Entre imperfeições e belezuras, acertos e falhas, Califórnia se equilibra como um filme de estreia elegante: suas ambições narrativas são de fôlego curto, mas seu poder de comunicabilidade é farto, pelas veredas da doçura, com o açúcar Ploc da década de 1980. É sobre ela que o longa fala. Ou melhor, é, a partir dela, que o longa fala, a fim de retratar o desaguar das expectativas da adolescente Estela (a.k.a. Teca) num mar de sabores e dissabores... aqueles que só se vivem aos 17 aninhos. É essa a idade que Teca tem em 1984, quando espera a viagem aos Estados Unidos prometida desde 1982, quando abriu mão de sua festinha de debutante. Detalhe importante: Teca revela ao cinema Clara Gallo, jovem atriz com fome de atuar bem e uma beleza daquelas que se define melhor com a expressão “Pra casar”. Seu desempenho é intenso, sem jamais resvalar nas caricaturas da aborrescência.
Para Teca, a meta do futuro é viajar América adentro para conhecer o lado Norte do Novo Mundo ao lado de seu tio (e super-herói) Carlos, um jornalista especializado em rock vivido por Caio Blat. Enquanto o passeio esperado não chega, a mocinha encara o colégio, dividida entre cochichos com as melhores amigas e flertes com o aspirante a surfista Xande (Giovanni Gallo). Nesse período, chega ao colégio, por transferência, um aluno novo, de visual à la Tim Burton, de quem nada se sabe e tudo se especula (sobretudo que ele é gay): JM, papel confiado ao surpreendente Caio Horowicz, “o” coadjuvante da Première 2015 até aqui.
Dividida entre a paixão pueril por Xande e a curiosidade/ fascínio por JM, Teca se escora na corda bamba da educação sentimental inerente à sua idade, agravada pela volta inesperada de Carlos, agora mais magro e suscetível a gripes e afins. É na figura dele que o filme se fragiliza, não por deslizes na interpretação de Caio, vigoroso a todo gesto, mas sim pela incapacidade do roteiro de lidar com a força do personagem. Já na primeira cena de Califórnia, fica a sugestão de tudo o de forte e vivo que Teca é. Até na ausência da distância ele é onipresente nos ritos diários da sobrinha. Mas sua volta – que prometia virar e revirar o filme – é mal aproveitada, limitada a cenas que exploram pouco (às vezes mal) o “tamanho” do personagem (e o talento de seu intérprete). Tem Carlos (e Caio) de menos e tem previsibilidades demais, a começar pela opção (desgastada) de julgar Xande, o menino sufista, relegando a ele atitudes mesquinhas. O mesmo vale para o retrato rasteiro do pai de Teca, vivido por Paulo Miklos.
São arranhões que vincam mas não chegam a rasgar um tecido resistente, com cheiro de saudade (dos anos 1980) costurado por Marina com a ajuda do bom elenco de feições teen e a participação (sempre notável) da atriz Gilda Nomacce (a melhor de sua geração) na pele de uma empregada doméstica. Destaca-se ainda um nutriente a mais, capaz de fazer o filme crescer: a fotografia de Flora Dias, sempre numa paleta de cores que nunca berra, mas captura o olhar. A fusão de imagens de arquivo e encenações também é rica, criando terreno para um resgate de tempo capaz de deixar Marina refletir sobre a eclosão da Aids e o alvorecer do B-Rock e, de quebra, emocionar a plateia, sem arroubos de invenção, mas com ternura, sobretudo quando toca The Caterpillar, na voz de Robert Smith para “curar” nossas ressacas, sobretudo a descrença no poder regenerativo do verbo “amar”.
CALIFORNIA
(2015, 90 minutos)
Direção
Marina Person
Roteiro
Marina Person
Francisco Guarnieri
Mariana Veríssimo
Elenco
Caio Blat
Paulo Miklos
Virginia Cavendish
Caio Horowitz
Clara Gallo
em cartaz no CINE ARTE POSTO 4
em 3 sessões: 16.00 - 18.30 - 21.00
até quarta 3 de Fevereiro
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