O Circo de Pavilhão montado no bairro do Macuco,
há pouco mais de um mês, estava lotado aquela noite. Até o velho Ribamar, pipoqueiro improvisado e bilheteiro oficial da casa, estava contente. É que casa cheia não era uma coisa das mais comuns naquela parte da cidade de Santos.
O público, gente muito simples, passava das cem pessoas e aquele sábado movimentado prometia. Na platéia, as crianças disfarçavam a sua ansiedade comendo balas, algodão doce e pipocas.
Os pais, em sua maioria “doqueiros”, domésticas e operários, mal continham sua impaciência. Na coxia, os artistas pediam passagem aos funcionários apressados. É que lá dentro, a emoção de um espetáculo para uma platéia tão numerosa também contagiava a todos. O clima era o de uma noite de estréia, uma estréia típica dos bons tempos.
Assim quando o palhaço Frajola, atração principal daquele modesto Circo de Pavilhão entrou em cena, a casa quase caiu de tantas palmas, gritos e assobios.
Frajola entrou como sempre: atravessou o pano roto e remendado, pisou no picadeiro, jogou os braços para cima como num aceno e deu uma cambalhota meio desajeitada sobre a serragem mínima, aquela cambalhota dos verdadeiros palhaços que sempre deixa as crianças vermelhas de tanto rir.
Estava tão feliz com o público numeroso que não chegou a perceber a terrível presença de um prego, colocado exatamente no lugar onde sua mão esquerda buscava apoio para o salto. O corte foi fundo. Frajola, porém, continuou seu número. As crianças da primeira fila nunca riram tanto, assim como seus pais. Até mesmo seu Ribamar achou que a apresentação de Frajola estava muito mais engraçada aquela noite.
Vinte minutos depois, Frajola deixou o palco sob os aplausos de uma platéia encantada e agradecida. Ainda escutava a multidão gritando seu nome quando correu para o camarim em busca de alguma coisa que estancasse o sangue. Poucos minutos depois estava na Santa Casa de Santos, onde o médico de plantão deu-lhe dez pontos na mão ferida.
Mais tarde, a caminho do bairro do Gonzaga, ponto de boêmios, intelectuais e artistas, ainda teve tempo de lembrar da dolorida experiência: o sangue correndo com força, encharcando a luva branca e fundindo-se sutilmente ao vermelho da calça larga, as crianças rindo e batendo palmas e ele, apesar de ferido, determinado a terminar seu espetáculo.
Plínio Marcos de Barros, 44 anos de idade, sempre fez da determinação a principal característica de sua personalidade. A cicatriz em sua mão esquerda, muito mais do que uma marca, quase que simboliza a força e a coerência do seu caráter. Autodidata, tenaz, com apenas o curso primário, Plínio nunca se afastou dos seus princípios, da sua concepção de vida, estando sempre disposto a qualquer sacrifício para levar ao grande público a sua mensagem, o seu recado. Pensava desta maneira ainda nos tempos magros de palhaço Frajola.
Hoje, cronista censurado e dramaturgo proibido, continua o mesmo, fiel às suas raízes populares. Impedido de montar suas peças, tentou a imprensa. Era Mino Carta que, à frente da Revista Veja, lhe reservava uma página para suas crônicas. A sua sorte, porém, não melhorava. Mais uma vez foi atacado por forças estranhas, uma sombra que escurecia todo o cenário cultural brasileiro e perdeu mais uma chance de sobreviver através do seu ofício maior: escrever. Como se fosse um dos seus personagens, Plínio Marcos não encontrava saída.
A força de sua personalidade, no entanto, mais uma vez veio em seu socorro. Não se dera por vencido antes, portanto não seria agora que os covardes e invisíveis inimigos cantariam vitória. "Navalha na Carne", "Dois Perdidos numa Noite Suja", "Abajur Lilás" e outras de suas peças estavam proibidas de serem encenadas. Porém, talvez pudessem ser publicadas em livro. Plínio foi à luta.
O restaurante Gigetto estava cheio aquela noite. Sob a batuta do mâitre Jaime, os garçons atendiam as mesas com uma eficiência e rapidez tão mecânicas, que mais pareciam formigas a homens. Nas mesas, executivos e garotas de programa, comerciantes e banqueiros, bicheiros e homossexuais, tiras e pessoas do meio artístico, casais de namorados e algumas famílias de classe média alta, falavam ruidosamente, criando um burburinho que dava mais vida ao lugar.
A perua loira, cujos pulsos mais pareciam um mostruário de joalheria, não pôde deixar de notar a aproximação daquele homem com jeito de rapaz. Calça de brim, sapatos esporte já um tanto usados, jaqueta Lee, uma bolsa enorme ao ombro, ele se aproximava sorrindo como se já a conhecesse.
O gordo negociante ao lado da loira também percebeu a aproximação do rapaz e não gostou do seu ar decidido, muito menos do que ele trazia mas mãos: um livro. Na certa, concluiu, deve ser um vendedor.
- Ei! Você não é o Plínio Marcos?
A pergunta foi feita por um jovem que, acompanhado por
uma simpática morena, estava sentado na mesa ao lado da loira. Plínio sorriu afirmativamente para o casal, desviando-se do olhar sério e contrariado da dupla por ele antes visada.
- Eu curto muito o seu trabalho, Plínio. Já li o seu "Histórias das Quebradas do Mundaréu". Um barato! Que livro é esse?
Plínio ficou a vontade, como sempre que se encontrava com jovens. Respondeu.
- Esse é o texto de "Barrela", minha primeira peça.
Tô vendendo a duzentos paus!
O rapaz comprou o livro autografado na hora. Plínio fez
mais umas quatro ou cinco mesas e depois saiu. Barrela foi sua primeira peça e logo em sua primeira montagem já criou polêmica.
Plínio pára no botequim em frente ao Gigetto, o Bar do Jura. Pede uma cerveja e um maço de Continental sem filtro. Lembra de "Barrela", no dia de sua estréia.
Era um festival de teatro amador em Santos, por volta de 1958. A sua peça logo de saída já tinha dado encrenca. Um gole de cerveja, uma tragada e de repente a Rua Avanhandava, presa no coração de São Paulo, ganha ares do agitado bairro do Gonzaga, em Santos.
"Barrela", naquela época, quase que não chegou a ser
apresentada no festival. O texto, cru, seco, realista, depois de lido foi taxado de indecente para baixo e estava proibido. Só foi liberado graças a um providencial telegrama expedido do gabinete do Presidente da República por Pascoal Carlos Magno, então Ministro sem pasta de Juscelino Kubstchek.
O grande Pascoal Carlos Magno conhecia o texto e o considerava de vanguarda. E se não fosse sua interferência, "Barrela" nem teria sido encenada. Outro gole de cerveja, nova tragada no cigarro. Plínio relembra a noite de estréia. O Centro Português de Santos, esquina das ruas Amador Bueno e Martim Afonso, estava lotado.
Ele fumava sem parar o mesmo Continental sem filtro. Pensa no amigo Julinho Bittencourt, um dos atores, andando nervoso de um lado para outro. E dá-lhe café e cigarro. Pensa nas pessoas que saíram no meio da apresentação, indignados com a força do texto.
Depois, pensa na ovação que a peça recebeu ao seu final.
A platéia de pé, aplaudindo freneticamente. Alguns rostos amigos nas primeiras filas: Geraldo Ferraz, Mário Gruber, Patrícia Galvão, Maurice Lejard e muita gente boa.
Lembra da briga de Geraldo com sua mulher Patrícia, a famosa Pagu. Ela achando peça e autor geniais. Ele afirmando ser aquele um texto de última página de jornal, do tipo crônica policial.
Plínio sorri e seu sorriso chama a atenção de um rapaz que toma um cafezinho no balcão. Quantos anos teria? Na certa a mesma idade que ele quando "Barrela" ganhou uma Menção Honrosa naquele festival, em 1958, dividindo a crítica e garantindo ao seu autor o título vitalício de maldito.
- Maldito!
A palavra, dita entre dentes, intrigou o português do
balcão.
- O que disseste?
Surpreso com a praga que escapara dos seus
pensamentos, Plínio fez que não era nada e continuou ensimesmado. Maldito. A palavra o acompanharia para sempre, como uma cicatriz.
A explicação era simples. Até pouco tempo antes da estréia de "Barrela", o único autor que tinha usado palavrão foi Gianfrancesco Guarnieri e, mesmo assim, apenas um, que acabou sendo bem recebido. "Barrela", porém, tinha muitos palavrões que eram a própria maneira de falar daquela gente que a peça mostrava.
Plínio sempre foi fiel ao seu povo. Se eles falavam palavrão, se viviam uma merda de vida, se tinham nascidos “cagados de arara” como ele mesmo dizia, era isso que devia ser mostrado. Plínio acende mais um cigarro e serve seu copo. Dá um gole generoso que o faz inclinar a cabeça para trás e reparar nas cores do luminoso do botequim: vermelho e lilás.
Relembra a montagem de sua peça "O Abajur Lilás". O elenco ensaiado, os contratos assinados, a divulgação feita, a implacável censura. Joga o cigarro no chão e o pisa com força, como se aquele gesto fosse uma espécie de vingança contra a perseguição sistemática que vinha sofrendo.
Sorri, quando pensa que apesar de tudo ainda se sente seguro de si, do seu trabalho, da importância do seu recado. Se não tinham conseguido quebrá-lo até ali, nunca mais conseguiriam. Ele era madeira que quebra, mas não verga.
E sabia disso. Se nunca tinha se afastado dos seus objetivos, por qualquer que fosse a razão, não seria agora que o faria.
Os misteriosos e invisíveis homens da censura tinham proibido a encenação de suas peças em todo o território nacional. E ele tinha reagido, atendendo ao chamado da imprensa. Eles tinham articulado e forçado os homens da imprensa a não mais lhe darem guarida e trabalho.
E novamente ele tinha encontrado uma porta de saída, através de uma maneira honesta e digna de resistir: a venda dos seus livros.
“Ora”, pensou, “se as minhas idéias assustam os responsáveis por esse sistema injusto, se os meus textos expõem essa realidade terrível aos olhos da opinião pública nacional e internacional, se minhas peças são um relato fiel e real da miséria do nosso povo, então estou no caminho certo, fazendo o que faço”.
E Plínio gostou de ser Plínio Marcos. Gostou de ser um dramaturgo maldito. E, mais, sentiu orgulho disso. E de repente voltou a sentir aquela força misteriosa que se apossava dele quando trabalhava numa peça. Aquela vontade irresistível de criar, de escrever textos ainda mais fortes, textos que contribuíssem de alguma forma para mudar esse absurdo que é a realidade social brasileira.
E Plínio, então, se sentiu forte, forte como o nordestino de Euclides da Cunha. Ele era o cronista da resistência, repórter de uma gente simples, humilde, aviltada e tripudiada.
Aquela gente que se esconde nas quebradas do mundaréu, lá onde o vento encosta o lixo e Judas perdeu as botas. Aquela gente que vive com a navalha na carne e que é o povão lesado da sociedade.
Ele tinha um protesto a fazer, uma mensagem a dar, e o faria da melhor maneira possível. Era seu destino.
- Ei, Plínio, ouvi dizer que liberaram suas peças. É verdade?
Plínio encostou no balcão do Bar Redondo e pediu um
conhaque. Acendeu o velho Continental sem filtro e puxou uma longa tragada. O rapaz que havia feito a pergunta, um estudante, foi-se embora satisfeito pela oportunidade inesperada de cumprimentar o dramaturgo anistiado.
O movimento era normal naquela quarta-feira de junho de 1980. Alguns travestis faziam ponto na esquina da Avenida Ipiranga com Consolação. Um grupo de meretrizes promoviam uma algazarra na Rua Rêgo Freitas, como que tentando espantar o frio da noite. Dois PMs desciam a Rua Araújo.
Plínio Marcos de Barros pagou a bebida e saiu, sem pressa, em direção à Praça Roosevelt.
Nada quebrava o ritmo de normalidade do Bar Redondo e arredores naquele momento. Só o Arena, o velho e bravo Teatro de Arena parecia diferente.
Como uma fênix a ressurgir das próprias cinzas, o Arena pedia passagem aos transeuntes, anunciando a todos o início de uma nova temporada no cenário cultural brasileiro.
Agora era a vez da caça!
No comments:
Post a Comment