Harper Lee morreu semana passada aos 89 anos.
Ela vivia numa casa de repouso em Monroeville, cidadezinha do Alabama onde nasceu e passou a maior parte de sua vida.
Enxergava mal, estava surda, não escrevia mais há muitos e muitos anos.
Sua saúde era frágil, em parte por ter sido uma fumante inveterada a vida inteira, e o motivo de sua morte não foi divulgado, mas, na verdade, isso pouco importa.
O que importa é que Harper Lee foi durante 55 anos a maior escritora de um romance só da história recente da Literatura Americana: "O Sol É Para Todos (To Kill A Mockingbird)", que ganhou o Prêmio Pulitzer de Literatura em 1961 e é considerado uma obra-prima por narrar um recorte humanístico contundente em meio à injustiça racial nos tempos da Grande Depressão no Alabama, extremo sul dos Estados Unidos.
"O Sol É Para Todos" vendeu aproximadamente 30 milhões de cópias pelo mundo afora, e está, juntamente com "As Confissões de Nat Turner" de William Styron, entre os romances que melhor abordaram dois temas vitais no imaginário americano: o racismo e os valores liberais humanistas do Novo Mundo.
De todos os livros que os jovens americanos são obrigados a ler na escola, "O Sol É Para Todos" é, comprovadamente, o que sempre desperta paixões mais intensas.
Muitos jovens moldaram a partir dele uma espécie de ideal social e humanístico a ser seguido pela vida afora.
Sem contar que muitos meninos optaram por estudar advocacia inspirados pela figura masculina notável e corretíssima de Atticus Finch, e muitas meninas enveredaram pela literatura na esperança de, no futuro, virarem escritoras com a grandeza e o sucesso de Harper Lee.
Estranhamente, Harper Lee se aposentou logo após o sucesso estrondoso do primeiro livro.
Era lésbica numa época e num lugar extremamente hostil a qualquer modalidade de homossexualismo, e foi vítima de algumas descomposturas públicas imperdoáveis cometidas por seu então amigo Truman Capote, que não conseguia esconder os ciúmes que sentia do sucesso dela.
Depois de romper com Truman, ela se retirou da vida pública e voltou para o Alabama, bem distante do "public eye", vivendo dos royalties de seu único romance por todos esses anos.
Numa entrevista para The New York Times em 1964, pouco antes de se recolher em sua casa no Alabama, ela disse:
"Eu estava à espera de uma morte rápida e misericordiosa nas mãos dos críticos, mas, ao mesmo tempo, tinha alguma esperança de que alguém viesse a gostar dele o suficiente de meu livro para me sentir encorajada a seguir em frente. No entanto, o retorno que eu recebi foi algo extremamente difícil de administrar, e isso, de alguma forma, acabou sendo tão assustador quanto a morte rápida e misericordiosa que eu esperava para mim como escritora e romancista"
Ano passado, depois de anos e anos de silêncio absoluto sobre Harper Lee -- quebrados apenas por uma homenagem que ela recebeu do então presidente George W Bush --, veio a notícia de que ela teria autorizado o lançamento de um segundo romance, escrito três anos antes de "O Sol É Para Todos".
E então, perto do Natal, foi lançado "Vá, Coloque um Vigia (Go Set A Watchman)", que dá continuidade à história do livro de estreia 20 anos mais tarde, colocando em cena os mesmos personagens do primeiro livro na mesma cidade, só que num contexto social bem diferente.
"Vá, Coloque Um Vigia" foi um sucesso editorial estrondoso, com mais de um milhão e meio de livros vendidos no mundo todo em poucos meses.
Eu, pessoalmente, comprei um exemplar, mas confesso que não li até agora -- e a julgar por todas as críticas negativas que li por aí, acho que não vou ler.
Francamente, não estou nem um pouco interessado em ver o bom e justo Atticus Finch transformado num segregacionista conservador em sua velhice.
Eu presumo que antes do sucesso de "O Sol É Para Todos" -- e, consequentemente, antes do romance ganhar a importância social e educacional que hoje possui -- Harper Lee possa até ter cogitado fazer de Atticus uma figura de natureza dúbia.
Mas duvido, francamente, que ela investisse contra a figura de Atticus depois dele se transformar no símbolo maior da retidão de caráter e da grandeza de espírito para várias gerações de americanos.
Certamente, esse romance ficou guardado bem escondido no baú da autora por todos esses anos por nunca ter feito sentido para a autora insistir em sua publicação.
Além do mais, dizem as más línguas que Harper Lee já estava senil quando assinou o contrato permitindo a publicação de "Vá, Coloque Um Vigia" -- que só sua irmã e alguns editores que o haviam rejeitado na década de 50 sabiam existir.
Dizem por aí que, além desse, existem vários outros ítens no baú de Harper Lee aguardando a hora certa para ser publicados.
Consta que haveria material suficiente para montar várias coleções de contos e de textos esparsos inéditos.
E haveria também um terceiro romance intitulado "O Reverendo", sobre a história real de um pastor batista nos Anos 30 e cnseguiu ser absolvido de assassinato.
Na medida em que foi a irmã de Harper Lee que cuidou dela nos últimos anos, é mais do que provável que ela tenha orquestrado, juntamente com a Harper Collins Press, todo esse processo de resgate e todas as devidas autorizações, para que nada impeça que todos os textos inéditos que ela nunca quis ver publicados em vida, quando ainda estava lúcida, finalmente vejam a luz do dia.
Francamente, eu, em respeito a Harper Lee, e em respeito aos valores que seu personagem Atticus Finch defendia com unhas e dentes, não consigo imaginar maneira mais digna de saudar a saída de cena dessa grande escritora americana relendo "O Sol É Para Todos", ou revendo o belíssimo filme de Robert Mulligan com Gregory Peck e o fantástico Robert Duvall.
Descanse em paz, Harper Lee, se conseguir.
"Eu estava à espera de uma morte rápida e misericordiosa às mãos dos críticos mas, ao mesmo tempo, tinha alguma esperança de que alguém viesse a gostar dele o suficiente para eu me sentir encorajada. No entanto, acabei por ter muito mais, e isso, de alguma forma, foi tão assustador quanto a morte rápida e misericordiosa que eu esperara"
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