Wednesday, February 24, 2016

ARRIVEDERCI, ECO! (por Marcelo Rayel Correggiari)



Há dias em que a grande tarefa ao se abrir a Mercearia é tentar, de todas as maneiras, não soar enfadonho.

Costumo sentenciar (quase sempre erroneamente) que a Literatura tem sua porção técnica, uma simetria que nos faria lembrar das tecnicidades da engenharia, da medicina e das ciências jurídicas.

Claro que estou errado! Trata-se de uma arte que, obviamente, possui uma técnica, mas de ciência humana e não de cálculos fechados. Até podem ser aplicados aqui e acolá algum conceito ou idéia com origem na lógica, nos números, nos sistemas e equações, nos modelos encontrados em fórmulas.

Contudo, caso realmente garantissem o fabuloso sucesso de uma Literatura de alto giro, suspeito que a Google hoje estaria encabeçando as listas dos mais vendidos. Não é o caso.

Na última quinta-feira, o mundo deu adeus a um dos grandes da Literatura (no meu personalíssimo pavoneamento verborrágico) Universal. Águas passarão, pessoas nascerão e morrerão, mas Umberto Eco sempre, em algum instante, terá alguma de suas obras citada e reverenciada.

A questão do Clássico: daqui a duzentos anos, quando não mais estivermos aqui, se algumas das obras continuarem nas leituras e discussões de quem for, podem carimbar: “Clássico”!

Não tive muito contato com a obra de Eco. Apenas “A Obra Aberta”, “Baudolino” e “A Misteriosa Chama da Rainha Loana”, efetivamente, passaram por essas mãos que a terra há de comer. Assim, minha eterna sugestão ao(à) querido(a) freguês(a) dessa modesta Mercearia de importante visita ao blog do Alfredo Monte, esse, de verdade, conhecedor da obra do romancista, filósofo e pensador italiano.

A direção dessa Mercearia sempre lamentará o descanso devido de um grande artista. Biografia à parte, um grande artista deveria sempre arregaçar as mangas e arrebentar-se de tanto trabalhar para o nosso deleite! Egoismo esse, nosso, de platéia? Até é, só que elevar a alma por intermédio de uma grande peça de Arte, independente de qualquer injustiça, parece sempre ser um fim a ser, no mínimo, perseguido.


Umberto Eco talvez tenha sido o contemporâneo que melhor resgatou (ou tentou resgatar) o romanesco, cujo ápice, segundo alguns especialistas, críticos e engajados na causa, teria sido no século XIX. A cabeça bateu no teto. Não se deu por vencido: seja pelo viés folhetinesco ou por uma estrutura do Romance que nos remeteria a 150, 200 anos atrás, Eco nos chamava ao desafio de repensar um eventual ‘esgotamento’ da modalidade com ferramentas mais atuais.

Além disso, seu talento para a elaboração de uma voz narrativa que, mesmo sedimentada em certos decalques e paródias, buscava sempre chamar o(a) leitor(a) para perto pelo sabor da história contada. Tinha a capacidade de segurar a atenção de quem o lia por 400 páginas, ora somente com uma única voz narrativa, ora diversificando nesse componente literário.

Por outro lado, era alvo vez e outra de comentários em torno de passagens um pouco mais truncadas de suas mais recentes obras, sem contar as críticas em relação à forma hisurta de como as encerrava. Receio, e isso é apenas uma ‘orelhada’ de minha parte, que Umberto Eco, ao final da vida, não conseguiu escapar dessas quantidades excessivas de camadas de narrativas que há em tudo hoje em dia.

Nesses tempos de agora, tudo é narrativa. Quantidades abissais de narrativas, há narrativas em tudo: quase sempre canhestras, claudicantes, sem qualquer jorro de um melhor pensamento ‘a priori’, feitas por pessoas sem qualquer traquejo para uma análise antes da materialização da obra.

Ao final da vida, Eco concorria com uma quantidade abissal de textos, narrativas, o que fosse, encontrados desde mensageiros eletrônicos (alô, ‘zap-zap’... aquele abraço!) até redes sociais, ‘camisas-de-força’ em 150 caracteres onde nem mesmo uma história, muito menos quem a conta (voz narrativa), sobrevive a esse tipo de ignomínia.

Fiel a todo conhecimento filosófico, etimológico, social-histórico, filológico e literário produzido em vida, talvez, nessa reta final, faltou ao grande romancista italiano entender que a Literatura, de repente, evoluiu para outros meios, outras formas de expressão, quase literários por excelência, como o Cinema. Eventualmente, certas soluções para uma suposta crise do discurso literário seriam encontradas mais na tela do Cinema do que no objeto livro (seja no formato tradicional, papel, seja na forma eletrônica, os ‘e-books’).

Tanto que há críticos de cinema, estudantes e profissionais de audiovisual, que costumam caracterizar o Cinema como uma arte narrativa.

É uma discussão que traz certo calor ao debate. Debates acalorados, respeitando obviamente o mínimo de civilidade que tais embates demandam, são sempre bem-vindos. Essa zona de intersecção entre Cinema e Literatura não é grande novidade, mas fico com a impressão de que ainda se tem muito a explorar.

O problema desse tipo de debate descambar para gritaria, politização barata e ‘dedo-na-cara’ se deve aos mesmos flagelos experimentados pelo já saudoso romancista italiano: Umberto Eco não cedeu aos cadafalsos contemporâneos de ‘um mundo melhor’, ‘paz de tarja preta’, uma felicidade de ‘livro-de-róstos’ completamente aporéticos de todo o paradoxo da vida em seu estado mais bruto.

Eco jamais cederia a soluções ‘mais em conta’, que permitiram as ‘inúmeras possibilidades’ do desenvolvimento literário como casamata para certo ‘trabalho de preguiçoso’. Mesmo que isso causasse nele a estranheza semelhante encontrada na desmotivação de leitores(as) e empurra certa gama de críticos a serem mais ‘ferozes’, ‘inconsequentes’, ‘virulentos’, amantes de uma modalidade de iconoclastia sem pé, nem cabeça, onde a arte da crítica acaba sendo sempre pessoal, com tom às vezes bem violento, ao invés de uma abordagem mais analítica da ‘escrita como arte’.

Umberto Eco já não está mais aqui, entre a gente. Sentiremos saudades. Sempre será muito bom nos confortarmos com as obras deixadas por ele: nas peças, no cinema, nos próprios livros. Um homem que sempre acreditou nessa ancestralidade de onde é feita a grande Literatura: o de contar (e ouvir!) boas histórias.


Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 47 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO

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