- Seu plano inicial era escrever todas as memórias em cinco volumes. Agora já anuncia o sétimo, Cera das almas, em preparo, A obra dominou o autor?
Meu plano inicial não era escrever cinco volumes: eu queria escrever um livro de lembranças familiares, de fatos que eu conheci mas meus irmãos ignoravam. Seria um livro clandestino, pra correr dentro da família. Os originais eu dei pra ler ao Fernando Sabino, ao Otto Lara Resende e ao Drummond, e a opinião deles foi que eu deveria continuar no mesmo tom, escrevendo as minhas memórias. Foi o que aconteceu. Assim, o roteiro é que domina o autor: ele escreve um roteiro pensando que vi fica preso àqueles trilhos, mas a coisa começa a ter uma porção de desvios, uma porção de outras saídas, de modo que o roteiro não é motivo de contenção, mas de expansão para o autor. Foi o que ocorreu comigo: eu pretendia escrever um livro de lembranças familiares, acabei escrevendo, até o momento seis volumes – que são grandes, de trezentas a quinhentas páginas cada um -, onde estou apenas nos meus trinta, trinta e um anos, por aí. Veja como fui levado pelo meu próprio roteiro, pelo que eu queria escrever. Aquilo provocou em mim uma série de caminhos, uma abertura pra novas estradas, uma coisa extraordinária. Foi uma experiência fascinante, essa viagem dentro de mim mesmo. Vi que tinha muita mais coisa pra contar do que eu próprio supunha...
- A franqueza com que você tem escritor suas memórias já lhe deve ter rendido uma boa dúzia de inimigos...
Evidentemente. Alguns eu já tinha, não tenho poupado os inimigos que já tinha. Outros apareceram até gratuitamente: foram parentes meus que se sentiram tocados de uma maneira extraordinária. Eu não faço, por exemplo, um belo retrato de minha avó materna: era uma pessoa dura, sem doçura de espécie alguma, de modo que eu tive uma infância um pouco infelicitadas por ela, porque nós morávamos juntos. O retrato não poderia ser favorável. Ora, as netas dela, que não a conheceram, que nunca a viram, tomaram o pião na unha, em sua defesa. Acho que são pessoas que já não gostavam de mim e aproveitaram a ocasião para manifestar sua hostilidade.
- Qual tem sido a reação da classe médica quanto às críticas que você faz, em várias passagens de sua obra, à figura do médico, como profissional e como ser humano?
A classe médica é uma das classes mais desunidas que eu conheço. Os médicos se digladiam, a briga é de foice, não tem regras. A questão é que eles não querem que isso saia de dentro do ambiente médico. Quer dizer, um médico pode considerar o colega um canalha, mas quando vê isso publicado num jornal ou num livro, fica instintivamente a favor dele, para manter esse cunho um pouco maçônico que tem a medicina. Eu, transgredindo a regra, pequei perante os cânones da profissão. Tenho tido, aliás, um trabalho muito grande pra fazer o que eu chamo a minha “desprofissionalização”. Quero pensar não mais como médico, considerar um homem inteligente não como os médicos consideram uns aos outros inteligentes ou menos inteligentes – sempre engrandecendo,de maneira geral. Até o meu modo de vestir: tive, no início, dificuldade de sair pra cidade em manas de camisa, tão condicionado estava ao paletó e à gravata. Comparo o exercício médico, quando se está dentre dele, a um verdadeiro grande gessado, que é um aparelho de gesso que se usa, pegando o corpo todo, para os grandes fraturados. De modo que eu tive esse trabalho, a saída desse grande gessado que me constrangia e me segurava numa posição só, com relação ao exercício médico, aos doentes mas, principalmente, com relação aos colegas. Rompi com tudo, e isso aborreceu, me tornou um sujeito pouco simpático à classe, atualmente.
- A condição de best-seller incomoda a sua modéstia?
Não. Eu acho que a modéstia não existe assim, na prática, a ponto de inibir completamente a pessoas das coisas agradáveis. Um elogio é sempre agradável. O ficar best-seller é agradável, também, de modo que isso não pode me incomodar. Seria uma hipocrisia dizer o contrário. Uma vez eu estava recebendo elogios de cara, os mais calorosos, de um pessoa amiga, e eu protestando, protestando... Ele parou e disse: “Ô Nava, deixa de falsa modéstia! Você sabe perfeitamente que eu estou falando a verdade!” Eu respondi: “Verdade ou não, você está dizendo coisas muito agradáveis para mim, que eu gosto de ouvir. Mas sou obrigado a protestar contra elas, porque se eu começar a dizer que sim, você vai me toar por um idiota”. Mandam os bons costumes, a boa educação que eu diga que não, que o que escrevi não vale nada, essa coisa toda. Mas não é assim. A prova é que eu publiquei: se não tivesse publicado é que seria um homem modesto.
- Para o crítico Wilson Martins, você, ao se transfigurar em José Egon Barros da Cunha e ocultar os desafetos sob pseudônimos, tem violado algumas regras básicas do memorialismo. O que você acha disso?
Eu acho que estou fazendo uma obra que não se pode situar dentro do memorialismo ortodoxo. Tenho saído inclusive da cronologia, e nunca ele me acusou de nada, por causa disso. Ele achou que eu não podia deixar de falar na primeira pessoa e passar para a terceira. Mas eu digo a você que foi uma experiência muito interessante: eu não teria coragem de contar certos fatos meus, da minha boêmia – e de meus amigos, cujos nomes também estão encobertos – dizendo eu. Me sentiria mal. Ao passo que esse José Egon já tomou personalidade, é outra coisa, já saiu pra outro lado. Aliás, deixei nele a minha marca, é fácil perceber: Egon é ego mais o N de Nava: eu, Nava – estou dizendo isso ali. Pensei que não existisse essa palavra , mas é um nome corrente na Alemanha, como Pedro, Antônio, José e João aqui. Vi isso nos jornais.
- A crítica literária tem, de alguma maneira, influenciado o desenvolvimento de sua obra?
O que representa os críticos para você? A crítica tem um valor muito grande, pra mim e pra qualquer escritor. Porque ela revela uma porção de fatos que nós mesmos ignoramos, de intenções que temos talvez no subconsciente. A crítica nos leva a encontrar aquilo como num espelho, e dizer:”Então eu sou assim, o que eu quis fazer foi exatamente isso, escrevi sem querer tal e tal coisa, o caminho que tomei estava por dentro do meu subconsciente e eu nem havia notado”. Mas o crítico nota e me mostra coisas a meu respeito, me apresenta uma nova personalidade minha. “Eu dou trezentos, trezentos e cinquenta”, como dizia Mario de Andrade. Portanto, de cada personalidade minha que aparece, mostrada pelo crítico, eu gosto, fico satisfeito. Não gosto é de uma crítica absolutamente desfavorável, essa não agrada a ninguém
- O fato de vir se mantendo há anos nas listas dos mais vendidos obriga-o a algum tipo de compromisso com o público? Em outras palavras, você pensa no leitor quando escreve?
Eu sempre tenho a preocupação do leitor, mas essa preocupação não vai ao ponto de me tolher, me segurar. Mesmo sabendo que estivesse contra uma maioria de leitores, eu continuaria a fazer o que estou fazendo, porque há, no escritor que se deixa arrastar pela criatividade, uma espécie de compulsão, como tem o bêbado: se ele toma um copo, então tem de tomar o segundo, o terceiro, o quarto, até se embriagar. Eu tenho de escrever o que eu quero escrever – fazer a interpretação à minha maneira, sem compromisso com coisa alguma, inclusive com a verdade pura e simples do relatório. Eu não tenho compromisso com essa verdade: meu compromisso é com a verdade passando um pouco para o terreno do verossímil, da verossimilhança, que essa é mais interessante , porque interpretativa. Acho que o memorialista é um narrador de fatos, um contador de coisas passada; mas, pela interpretação que pode fazer do tempo, ele entra um pouco na ficção -, não na de invenção, mas na de contar o verossímil, o possível.
- Por que você, sistematicamente, desloca o ponto de interrogação da frase? Isso não incomoda o leitor?
Incomoda, e muita gente me vem reclamar. Fiz isso como experiência quando estava escrevendo o Baú de ossos, devo ter começado no meio do livro. Tenho a impressão de que quando pergunto:”Você é amigo daquele rapaz com quem o vi vestido de verde, gravata amarela etc?”, o final não é mais pergunta, já são afirmações. De modo que o verbo, que interroga a frase, depois dele ou nas proximidade dele é que deve cair a interrogação. Os espanhóis não põem no princípio? Por que é que eu não posso deslocar um bocadinho? O Wilson Martins fala nisso também, e desfavoravelmente, mas você vê que eu vou mantendo, vou insistindo. E estou procurando explicar. Não sei se terei razão.
- Qual o plano geral que você traçou para as suas memórias?
Eu procuro seguir, tanto quanto possível, uma história cronológica. Fazer a coisa de acordo com a minha vivência. Isso é importante, manter uma certa ordem. Mas há pessoas que são apresentadas – certos perfis que eu traço, ou certas situações – que pedem que se acabe, que se termine logo aquilo. De modo que, com isso, eu entro futuro adentro – um futuro, alíás, que já se passou, tanto é que eu posso contá-lo. Se uma ação se passa em 1920 e vai terminar em 40, eu dou um pulo; depois volto, baixo o nível da comporta e retomo o meu caminho no plano anterior.
- Quem já escreveu mais de duas mil e quinhentas páginas evidentemente que não depende só de inspiração. Qual seu método de trabalho?
Eu procuro seguir um sistema, que é o seguinte: de manhã, que é a hora em que me sinto com menor capacidade criativa, procuro escrever minhas cartas, o que é sempre mais leve do que o trabalho literário propriamente dito, ou organizar o meu arquivo, que nunca está em ordem. Sou um vagatônico, e os vagatônicos sofrem de manhã, a manhã não é agradável pra eles, bom mesmo é a noite afora. À tarde eu crio, de meia dúzia de linhas, uma página, até no máximo oito, nove páginas datilografadas – que eu escrevo diretamente a máquina. A produção varia conforme a dificuldade do assunto. A noite eu deixo pra fazer a revisão, pra corrigir. Na minha idade, o sujeito deve estar pronto pra tudo: quero deixar um texto menos revisto por mim.
- Você corrige muito o que escreve?
Sim, bastante. Meus originais estão hoje todos na Casa de Rui Barbosa. A méis dúzia de linha que estou tentando escrever do novo livro já apresenta correções. Você pode ver o número de chamadas e modificações que eu faço. Se você me faz agora uma revelação que interesse à minhas memórias, ao desenvolver do meu trabalho, se me conta alguma coisa lá do Ceará, geralmente eu tomo nota saio sempre com um papel no bolso pra tomar uma notinha ou outra, às vezes até de uma palavra só. – dessas que nascem como uma flor, são bonitas em si. Há palavras assim, quem mexe com as letras sabe disso. Você conhece de repente e é uma revelação – ou a maneira como ela foi dita, como foi pronunciada. Tomo nota das coisas que me importam, uma série de cadernos. Depois eu corto aquilo como fichas – tenho o cuidado de escrever só de um lado da folha, para depois poder cortar.
- Somente aos 70 anos você publicou Baú de ossos, seu primeiro livro. O escritor nasceu aí ou apenas se revelou aí, já plenamente amadurecido?
Acho que a segunda hipótese é a melhor. Tive um período literário muito curto com o grupo modernista de Minas Gerais, quando me liguei a amigos que tenho até hoje, como Drummond d Afonso Arinos. Evidentemente que eu escrevia, não era insensível à beleza de uma frase, à beleza da coisa escrita. E já tinha mesmo, muito mais cedo, muito antes de conhecer esse pessoal, o hábito da leitura. Minha obra médica é bastante grande, tenho algumas centenas de trabalhos publicados. Estou recenseando isso agora, pra fazer uma biocronologia que o pessoal da Nova Fronteira está querendo ver. Não sei ao certo, mas seguramente umas duas centenas de trabalhos eu tenho. De modo que escrevi minha vida inteira, sempre com a preocupação de escrever bem:nunca assinei trabalho de colaboração que não fosse escrito por mim. Quem bateu a máquina, quem deu forma àquilo fui eu. Tenho dois livros anteriores aos de memória, sobre história da medicina, a que não dou grande valor porque foram feitos às pressas, eu estava interessado num concurso para uma cadeira de historia da medicina. São livros fabricados, não foram escritos, como a minha obra memorialística. Nessa eu procuro dar o melhor que posso, o mais trabalhado possível.
- Você se tem mostrado, repetidas vezes, refratário a idéia de se candidatar à Academia Brasileira de Letras. No entanto, tece altos elogios à Academia Nacional de Medicina, a que pertence. Por que a discriminação?
Esse argumento já me tem assacado como uma espécie de incoerência minha, mas creio que posso responder perfeitamente. Quando fui eleito membro da Academia Nacional de Medicina – e entrei tarde, porque achava que devia ter uma bagagem pra entrar -, eu tinha cinqüenta e poucos anos. Pra mim, ainda eram anos de mocidade, porque toda a vida fui muito saudável, nunca tive uma doença grave – apesar de não ser nenhum atleta, e de ter sido muito extravagante, boêmio. Assim, com cinqüenta e poucos anos eu achava que tinha trinta, estava em plena força, em pleno apogeu da minha personalidade. Tinha energia e paciência pra visitar acadêmicos por acadêmico. Na Academia de Medicina são cem acadêmicos! Eu fiz cem visitas, procurei um por um, preenchi todos os requisitos, apresentei um trabalho muito grande, fruto de minha experiência médica, sobre artrose de joelho. Eu tinha força e energia para isso. Pra conviver, principalmente. Eu era capaz de esconder minhas antipatias, meus ressentimentos, minhas mágoas, e tratar todo mundo de maneira igual e afável. Hoje não tenho mais paciência pra isso. Eu,dentro da Academia de Letras, iria ser um mau elemento. Primeiro: só votaria em homens de letras. Podia ser o general mais cheio de estrelas, o político de vida mais rica, mais cheio de presidências de sua própria província; o presidente da república; jamais daria meu voto. Em Getulio Vargas, por exemplo, eu não votaria. Nem em Dantas Barreto, no Almirante Jaceguai, em Dom Aquino, ou no Cardeal Leme, nenhum desses teria meu voto. Quer dizer, eu iria me transformar numa espécie de ovelha negra. E depois, a minha geração foi antiacadêmica. Veja, por exemplo, um homem da minha geração, Gilberto Freyre: é antiacadêmico; Sergio Buarque de Holanda: antiacadêmico; Prudente de Morais, neto: antiacadêmico. Drummond tem se recusado sistematicamente a se candidatar. Os modernistas que entraram depois pra Academia - cito como exemplos, que me ocorrem agora, Ronald de Carvalho e Manuel Bandeira – já eram poetas antes de ser modernistas. Eles aderiram ao Modernismo, não nasceram nele.Na Academia não esteve Mario de Andrade, tampouco Oswald de Andrade.
- Você está na Antologia dos poetas bissextos, de Manuel Bandeira, como O defunto, um belíssimo poema. O fantasma da poesia deixou de tentá-lo, abandonou-o de vez?
Ainda tenta, eu é que não consigo. Acho a minha poesia sem espontaneidade, sem aquele alumbramento que você encontra num Murilo Mendes, num Drummond, num Vinícius, num Bandeira. A gente tem a impressão de que aquilo é uma possessão, um estado de êxtase. Eu nunca senti isso, a não ser em dois poemas que fiz: O defunto e Mestre Aurélio entre as rosas, que foram escritos de um jato. São poemas longos e quase sem correções. As correções que houve no Defunto foram feitas por Manuel Bandeira, que gostava dos versos. Depois eu vi que aquele não era o meu poema. Então voltei ao ruim e tirei o bom do Bandeira pra vestir minha roupa: ele me dera um smocking emprestado, eu peguei meu paletó-saco outra vez...
- Você já se disse, em outras ocasiões, profundamente influenciado por autores franceses, principalmente Anatole France e Marcel Proust. E os brasileiros, quais os que conseguiram marcá-lo?
A primeira biblioteca que tive em minhas mãos foi a do meu tio Antonio Sales, quando vim morar com ele aqui no Rio. Foi ele quem me iniciou, eu li uma porção de coisas que talvez os cearenses moços, como você, não tenham lido. O pessoal da “Padaria Espiritual”, por exemplo. Conheço quase toda a obra de Rodolfo Teófilo, inclusive os seus romances. Tudo isso eu li na biblioteca do Sales. E certos autores com quem ele privava, como Machado de Assis, que ele tinha como mestre. Li alguma coisa do Machado, que na época não me atraiu como viria a atrair depois, na idade madura. Gostei do Lima Barreto à primeira vista, foi o Sales quem me apresentou a ele. Conto isso num dos meus livros, o dia em que conheci Lima Barreto, ele muito bêbado, oscilante... Li também os ingleses, meu tio gostava muito da literatura inglesa. Quando saíamos juntos era fatal uma visita ao Garnier e ao Crashley, uma casa que vendia coisas da Inglaterra, desde comida, artigos de esporte, de toalete, até livros. Todos esses autores tiveram muita influência sobre mim. Depois é que caí na orgia da literatura francesa, principalmente de Anatole France ,que eu nunca repudiei. Porque tenho perguntado a amigos meus - feito o meu inquérito, sem parecer que estou fazendo – por que o Anatole tão mal visto hoje. Dizem que o recado que ele nos dá é o de não fazer nada, um recado pessimista, negativo. Nesse caso também não se deveria ler Machado de Assis, não é? E todo mundo lê. Eu acho que o Anatole é desses sujeitos que, quando voltam, vêm com força total.
- Você tem revelado, em toda a sua obra, profundos conhecimentos sobre pintura. Isso é fruto de estudos sistemáticos?
Não, não, a pintura para mim é como um hobby: quando não estou escrevendo, folheio os livros que eu tenho aqui em casa, e aí, naturalmente, aprendo sobre obras dos grandes mestres. Nessas horas é que vou me impregnando daquilo, mas de uma maneira espontânea, sem maiores preocupações didáticas. Tenho uma verdadeira paixão pela forma, pelo mundo plástico, acho uma coisa fabulosa, a contemplação da natureza. E, dentro dela, o ser vivo, o ser humano, o homem , a mulher, na sua beleza: é uma das coisas mais esplendorosas que há no universo.
- Aos oitenta anos de idade, você ainda lê muito? Qual a sua leitura predileta?
Eu estou lendo, agora, dois livros ao mesmo tempo: um, do Zimmerman, médico-filósofo do século XVII, que está ma minha cabeceira; e o segundo volume dos Ensaios de Montaigne, que estou lendo pela terceira ou quarta vez. Sou um homem muito mais de releitura do que de leitura: eu não tenho uma cultura extensiva, faria má figura se pedissem pra dar uma aula de literatura. Mas sobre determinados autores eu aceito falar, esse que eu conheço, de morar dentro deles: entrar, sair, tornar a entrar... Sou um grande releitor.
- Você tem acompanhado a produção dos escritores mais jovens? O que achou do Feliz ano velho, de Marcelo Rubens Paiva?
Esse eu não li porque não recebi, mas tenho curiosidade de ler. Recebo muita coisa dos estados onde, parece, tenho maior penetração: muita coisa do Rio Grande do Norte, muito da Paraíba, muitíssimo do Ceará... De São Paulo também, mais do que do meu estado, Minas Gerais. Mais para o Sul, Paraná. Ano passado foi defendida uma tese a meu respeito na Universidade de Londrina. Comecei então a receber livros de lá. O paranaense escrevem muito.
- Muitas páginas do seu Baú de ossos são dedicadas ao movimento da “Padaria Espiritual”, Qual a importância, para você, dos “padeiros” - como se chamavam os participantes - na história da literatura brasileira?
Acho que tiveram uma enorme importância. Tanto que os considero – Sânzio de Azevedo transcreve essa minha opinião – precursores do Modernismo. O primeiro movimento de renovação que tivemos na literatura brasileira foi, sem dúvida, a “Padaria Espiritual”. Evidente que, nela, havia homens de letras de grande valor e outros apenas amadores, intelectuais diletantes. Mas o espírito regionalista, o espírito de transformação era muito forte: basta ler o estatutos, que acabo de reler no novo livro do Sânzio de Azevedo.
- Poucos cariocas conhecem o Rio de Janeiro tão bem quanto você, que aqui vive há cinqüenta anos. Como você vê o problema da violência social que hoje caracteriza nossas grandes cidades?
Eu acho que essa violência do povo carioca – como de resto do brasileiro, de uma maneira geral – resulta de duas coisas. A primeira é que o brasileiro não se sente dono de sua terra. Temos a impressão de que ainda estamos colonizados, nossa reação é a do colono. Eu, por exemplo, não me sinto dono desta terra de maneira nenhuma: sou uma espécie de posseiro aqui. Somos colonizados por uma pequena casta, uma elite financeiro-militar que nos está governando nos últimos tempos. O outro fator é a profunda crueldade , a profunda maldade com que o governo trata o brasileiro: por qualquer coisa se dá uma solução policial. Isso vem dos nossos hábitos coloniais. Um exemplo: ninguém admira mais o Oswaldo Cruz do que eu. Mas a vacina obrigatória foi uma violência, uma coisa feita com o auxílio da polícia: em vez da persuasão, da educação nas escolas, aquilo se fez de maneira brutal, um ato de benemerência grosseiramente praticado. Assim, nós não opinamos com relação ao Brasil. Eu, amanhã, posso tomar uma surra da polícia, posso me dirigir a um policial e ser desacatado, porque eles têm o rei na barriga, um simples soldado com aquele revólver do lado. Ele está caçando um sujeito pra matar. Acho que o principal fator de violência vem do governo, dos mandantes do Brasil – os atuais e os passados. É uma questão que vem de muito longe, essa da violência de cima pra baixo. A polícia da Inglaterra, desarmada, seria o nosso ideal: tenho a impressão de que se a nossa polícia se desarmasse, espancasse menos e não torturasse, a violência diminuiria .Porque hoje o sujeito que vai para uma assalto, para um ato de terrorismo, tem de ser um bravo, ele vai disposto a morrer. O assaltante é um camicase, ele vai porque sabe que morre. Se não morrer na hora pode morrer na prisão, e ser jogado fora no Rio Guandu, numa lixeira qualquer aí da roda da cidade. Estou certo de que a culpa pela violência é menos do povo do que de quem manda nesse povo.
- Com a experiência que lhe deram seus oitenta anos de vida, como você vê o futuro do Brasil?
Vejo com pessimismo – ou, para atenuar esse pessimismo, com uma interrogação de muita angústia. Porque sinto que foram construídos, como se de propósito, dois Brasis diferentes Nossa parte mais rica, que se desportugalizaou completamente, e de maneira rápida, está cheia de influências hoje. Há umas oito o nove nacionalidades de imigração concentradas de São Paulo para baixo, na parte mais produtiva do nosso território. É um pedaço que se separa cada vez mais da parte luso-brasileira, que é de Minas pra cima. Tenho a impressão de que criamos dois países, dois povos distintos: a miscigenação do Sul já se diferencia da mistura de Minas pra cima, do mulato, do caboclo. Pode parecer absurdo, mas tenho muito medo de uma separação, da não continuação do Brasil como nação única. Não digo potência única porque, quando ouço falar no “Brasil Grande Potência”, tenho vontade de rir: precisamos primeiro aprender a enlatar goiabada, doce de caju, aprender a fazer bem feito. Depois então é que vamos cuidar da energia atômica. No fim do meu Círio perfeito tenho lá, em anexo, uma carta do meu amigo Coutinho Cavalcanti, em que ele declara que dentro do partido burguês não há nenhuma solução para o Brasil. Estou absolutamente de acordo. Talvez um partido socialista, um governo socializante, seria o nosso caminho natural. Seria, não: será. Pode estar certo disso.
entrevista realizada em 1983 por Edmílson Caminha,
publicada em seu livro "Palavra de Escritor", (Brasília DF, Editora Thesaurus, 1995)
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