Sunday, February 28, 2016

OS DEDOS DOS PÉS

um conto de Márcio Calafiori





É uma coisa agradável ser jovem e ter dez dedos nos pés, pode acreditar.”
(O pirata de uma perna só, Long John Silver, em A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson)



Eu estava com uma infecção grave no quarto dedo do pé esquerdo, com risco de amputação. Embora precisasse ficar isolado, não havia vaga nos quartos particulares. Por isso, fui instalado com outro doente. Cláudio Afonso era aposentado. Estava internado a fim de ser submetido à cirurgia para a instalação de próteses nos quadris. Lá pelas oito, a mulher dele chegou com o jantar:
“O teu celular tá com defeito? Tentei te ligar, mas não chamava.”
Enquanto comia, placidamente Cláudio Afonso pediu que eu mostrasse à esposa o dedo infeccionado. A senhora virou o rosto:
“Não quero ver, não mostra isso, por favor.”
“Sabe por que ela não quer olhar? Porque assim como o senhor é diabética. Mas passa o dia inteiro bebendo café com açúcar. Depois do café, cigarro. Quase dois maços por dia.”
“Vou me cuidar.”
“O hospital impressiona. É só por isso que você tá dizendo que vai se cuidar.”
Depois de comer, enquanto dona Sílvia se preparava pra ir embora, o meu colega de quarto insistiu mais uma vez:
“Não quer mesmo ver o dedo dele? É um bom exemplo.”
“Durmam bem, boa-noite. Até amanhã.”
Alto e forte, rosto vermelho prestes a explodir, Cláudio Afonso não esperou que a auxiliar de enfermagem inflasse o medidor de pressão:
“Quanto tá?”
“Calma.”
“Calma? E se fosse eu medindo a tua pressão?”
“Dezessete por treze.”
“Eu já disse e repito: enquanto eu não tiver alta a minha pressão não vai baixar. Oh céus!”
“A pressão do senhor é teimosa, isso sim. Tomou o medicamento ontem à noite? Tá se sentindo bem? Mais tarde o cardiologista vai passar aqui.”
Da cama, eu prestava atenção àquele trecho do corredor. A visão dos profissionais circulando de branco ou azul me sobressaltava. O jornaleiro estacionou o carrinho. Como se fossem velhos camaradas, ele entregou o Expresso Popular a Cláudio Afonso:
“Ah, o Expressinho... O colega aqui é professor.”
“Professor, é? Que jornal o senhor lê? Os únicos que não tenho mais, pois só recebo um exemplar de cada, é o Estadão e a Folha de S.Paulo. Quer A Tribuna? Tenho a Veja também.”
Cláudio Afonso só folheou o jornal. Depois, o colocou na mesa de cabeceira, dizendo que estava à minha disposição. No pátio do estacionamento, a claridade começava a colorir as árvores enferrujadas. O cirurgião vascular, doutor Aguiar Augusto, chegou por volta das nove, sozinho. Dentro de uma cuba rim, trazia um bisturi, gazes, lâminas de laboratório, luvas de borracha e soro fisiológico. Depois de vestir as luvas e de examinar o meu dedo, que tinha aumentado muito de tamanho, ele disse:
“O travesseiro.”
“O que tô usando?”
“É.”
Dobrou-o:
“Põe o pé aqui.”
Cortou a parte lateral do dedo, de onde brotou um bocado de sangue engrossado com pus; em seguida, escavou a região infeccionada com a lâmina de laboratório, reservou o material e lavou o ferimento com soro. Os lençóis teriam de ser trocados.
“Por enquanto, deixa o pé assim.”
Quando ele saiu, pressionei Cláudio Afonso:
“O que o senhor acha?”
“Do quê?... Ah!... Pensei que ele fosse te dar uma paulada na cabeça e amputar o teu dedo a sangue-frio, como a gente vê nos filmes de cowboy. Mas no fim das contas, esse médico me pareceu eficiente. Se eu fosse o senhor, teria esperança.”
“Não consigo.”
Na manhã seguinte:
“O travesseiro.”
Com a expressão ressaltada pelos óculos de lentes grossas, de míope, o doutor Aguiar Augusto verificou com cuidado o espaço entre o dedo infeccionado e o outro:
“Caso sobreviva, esse dedo vai ficar com um defeito pequeno. Talvez incomode.”
Um homem entrou no banheiro:
“Eu te conheço.”
“Me conhece?”
“José Cleuton, muito prazer. O senhor dá aula no colégio.”
“É...”
“Eu trabalho na Universidade, no Bloco M. Tô internado na enfermaria.”
“Ah, é?”
“Líquido no pulmão. Cheirei sem querer um produto químico que era pra ser usado no tratamento da piscina olímpica. Foi como levar um soco na cara, manja? Pow! Sabe quantos morreram essa noite, só nesse andar?”
“Como assim?...”
“Uma mulher e dois homens. Um deles era motoboy. Acidente de trânsito. Tiveram que amputar a perna dele. Não resistiu. Coitado.”
Todas as manhãs, José Cleuton ia me visitar:
“Sabe aquele quarto, o último, perto do elevador?”
“O quê?”
“Tem um japonês lá.”
“Conta logo”, resmungou Cláudio Afonso. Ele quase não saía da cama. Se movia com dor, indisposto.   
“Tal como o professor aqui, o japa é diabético grave. Teve um AVC, coitado. Os japoneses têm a saúde frágil. Já perceberam?”
“Ah, meu caro, isso é absolutamente relativo”, discordou o meu colega.
“Claro que sim, os japoneses envelhecem rápido e vivem doentes e encurvados. Não é mesmo, professor?”
Cláudio Afonso estava indignado: “Os presidentes militares jamais enriqueceram. Eram honestos, todos. Concorda? Os militares deviam voltar e dar o exemplo, pôr ordem na casa, botar esse bando de larápios na cadeia, e fuzilar outros tantos, começando pelo sapo barbudo. Na ditadura, o cidadão de bem vivia sossegado, tranquilo, havia uma viatura em cada esquina; se a polícia te parasse para averiguação, não pedia a carteira de identidade, nada disso! Qualquer vagabundo tira carteira de identidade. Concorda? O cara tinha que mostrar a carteira de trabalho. Ah, não tem carteira de trabalho? Cana dura!”  
“O senhor fala, mas quando os militares tomaram o poder eu ainda ia fazer dez anos; e depois, mais adiante, não era ligado em política.”
“Sim, mas como professor o senhor não acompanha o noticiário, não está por dentro da sujeira?”
“É impossível não ficar sabendo, não é mesmo? Só se fala nisso.”
“É tanto escândalo.”
“O senhor lembra de A Ponte dos Suspiros?”
“Quê?”
“A novela.”
“Novela?... Ah!... Claro que não! Como é que eu vou lembrar? Eu vivia ocupado, não tinha tempo de ver novela. A sobrevivência era difícil. Numa família todos eram obrigados a trabalhar.”
“...os mocinhos eram o Carlos Alberto, o Rolando Candiano, e a Yoná Magalhães, a Leonor Dandolo. A ação se passa em Veneza, em 1500. O nobre Rolando Candiano é acusado injustamente de assassinato e trancafiado numa masmorra, que fica na Ponte dos Suspiros. Um dia, a fim de provar a inocência, ele resolve fugir. Com um objeto rústico, começa a cavar a parede da cela. Movido pela esperança, cava todos os dias; cava, cava e cava. Incrível como havia emoção naquilo, capítulo a capítulo.”
“Ele consegue fugir?”
“Agora, Rolando Candiano já conseguia penetrar os meandros da masmorra. A intenção dele era alcançar algum ponto do canal de Veneza, mas adivinha aonde ele vai parar?”
“Onde?”
“Em outra cela.”
“O quê?”
“É.”
“Tanto sofrimento.”
“Adivinha quem está nessa cela?”
“Quem?”
“Scalabrino, um ladrão. Sabe quem fazia o papel de Scalabrino? O Paulo Araújo.”
“Não sei quem é.”
“Talvez o senhor se lembre do Paulo Araújo como o cunhado Agostinho na primeira versão de A Grande Família.”
“É?”
“A sorte de Rolando Candiano foi justamente ter caído na cela de Scalabrino, que era um ladrão romântico.”
“Viu só? Antigamente, até os ladrões eram bons.”
“Eles ficam amigos e juntos começam a cavar a masmorra onde Scalabrino está.”
“Mas como é que eles faziam? E os guardas?”
“Eles só cavavam à noite. Até que um dia conseguem escapar. Me lembro até hoje dessa cena repleta de emoção: Rolando Candiano e Scalabrino saltando da prisão para as águas noturnas do canal de Veneza.”
Uma comissão formada por gente do próprio hospital e por representantes dos usuários dos planos de saúde estava entrevistando pacientes e familiares, indo de quarto em quarto. Um senhor que se identificou como usuário quis saber se estava tudo bem. Sim, está tudo ok. Uma funcionária da administração olhou ao redor e perguntou de quem era a tevê em cima da mesinha. Cláudio Afonso levantou o dedo.
“É minha.”
“Já lhe avisaram? O senhor vai ter que pagar uma taxa pelo uso do aparelho. A energia consumida aqui é estritamente para uso hospitalar.”
“O meu plano de saúde custa os olhos da cara e não posso ver TV?”
“O senhor pode ver TV, sim. Desde que pague. Como o próprio nome diz, o plano de saúde é para cuidar da saúde”, replicou a funcionária com firmeza.
Um rapaz da comissão questionou se para atender a demanda os quartos de dois leitos não comportariam mais um. A funcionária que encrencou com a tevê disse que não, que os quartos não eram estruturados para isso.
Sem mais, a comissão se foi.
           
“Tem um cara que quer te conhecer, professor. Ele é meu colega na enfermaria. Coitado, tá com câncer no esôfago.”
“Mas por que ele quer me conhecer, justo a mim?”
“Porque eu falei do senhor.”
“Falou o quê?”
“Disse que era professor.”
“E daí?”
“Ele quer te cumprimentar.”
“Eu não quero falar com ninguém. Não gosto de conhecer gente.”
“Professor, não se nega um pedido a um doente grave”, resumiu José Cleuton.
Os pacientes podem ficar andando por aí? É terapêutico isso? O senhor que fez questão de me conhecer: ele veio da enfermaria carregando o suporte do soro. Levantei-me para recebê-lo. Ele sorriu e disse algo que não entendi, pois estava com a voz tremendamente prejudicada.
“Ele quer saber se o senhor é mesmo professor.”
“Ah, sim, sou professor, professor...”

O homem então me cumprimentou.
“Muito prazer”, falei.
Em seguida, José Cleuton pegou-o de leve pelo cotovelo:
“Tá na hora da boia…”
Lá se foi o homem carregando o suporte do soro, arrastando os pés vestidos com meias brancas no chinelo de dedo.
“Professor, sabe o meu colega?”
“Que colega?”
“Acaba de falecer.”
“O que teve aqui?”, se alarmou Cláudio Afonso.
“É... A gente tava almoçando. De repente, ele começou a botar sangue pela boca. Acho que morreu engasgado.”
“José Cleuton...”
“Quando um paciente morre, temos que sair da enfermaria para a retirada do corpo.”
“... não traz mais doentes aqui, por favor. Não quero ver ninguém, ninguém... Entende isso?...”
“O senhor já parou pra pensar?”
“O quê?”
“A sua mão foi a última que ele apertou.”
“Você quer que eu pense o quê? O quê?”
Eu só conseguia imaginar que se o dedo do meu pé esquerdo tivesse mesmo que ser amputado, não seria amputado sozinho. Eu não parava de remoer o que o médico me dissera anos atrás, antes da cirurgia de amputação no pé direito: “Se forem cortados só os dois dedos que estão comprometidos, depois você vai ter dificuldade pra andar, isso por causa do repuxamento dos outros dedos. Portanto, o certo é recuar um pouco mais o corte, seccionar o pé bem aqui. Assim, evitamos o risco de outra cirurgia. É possível que a gangrena tenha avançado mais do que consigo observar a olho nu.”
A perda de membros é sempre dramática. O meu pé direito virou um coto de quinze centímetros. Fiquei manco. Long John Silver se virava bem sem a perna esquerda. Só que ele caçava tesouros. Eu, não. Passei a usar um calçado especial adaptado com uma órtese que preenchia o espaço dos dedos. Não era material de primeira. Quando eu pisava, o bico do sapato não se posicionava rente ao chão, ficava meio levantado. Assim, eu vivia tropeçando e caindo. Ao consultar um ortopedista especializado em pés, ele me recomendou uma oficina de excelência em aparelhos e calçados ortopédicos. Esse tipo de serviço é caríssimo. Confeccionados sob medida, quaisquer produtos ali tinham que ser pagos cinquenta por cento à vista, no ato da encomenda. Os outros cinquenta podiam ser divididos em duas vezes no cartão de crédito ou de débito. Mesmo que eu pudesse parcelar a nova órtese em dez prestações, isso já abalaria o meu orçamento. Só se eu escavasse a Ilha do Tesouro. Mas o técnico da oficina me sugeriu outra coisa:
“O senhor pode tentar o empréstimo consignado. Alguns clientes meus fazem isso.”   
“Sabe o japonês? O do quarto perto do elevador?”
“Basta, José Cleuton! Não quero saber. Dane-se!”
“Fala logo”, disse Cláudio Afonso.  
“Morreu.”
Cláudio Afonso não recebia visitas inoportunas. Os únicos que vinham vê-lo era a mulher, que lhe trazia o almoço e o jantar, e a filha e o genro. Estes moravam em São Paulo. Assim, os encontros eram breves e espaçados, de acordo com as boas regras da etiqueta hospitalar. O ex-mecânico de navios era espontâneo e um tanto quanto explosivo, mas tinha momentos de bom humor e de gentileza. Exasperava-se ao falar de política, é verdade. No entanto, eu evitava esse tipo de assunto. A tática que adotei foi a da dissimulação, inclusive porque a sua visão ideológica se resumia ao senso comum. Depois do Jornal Nacional, quando ele insistia em debater os escândalos trazidos pelo noticiário, eu aproveitava a novela e tentava distraí-lo:
“O senhor lembra do Antônio Maria D´Alencastro Figueroa?”
“Quem?”
Antônio Maria, TV Tupi, 1968, o grande Sérgio Cardoso em cena. Ele é um português que acaba de chegar ao Brasil e vai trabalhar como motorista na casa...”
A auxiliar de enfermagem entrou no quarto:
“Sr. Marcelo Moraga.”
“Eu.”
“O senhor vai ser transferido de quarto, vai ficar isolado.”
“Isolado? Por quê?”
“Ordem do médico.”
“Mas ele não me disse nada.”
“Desde o início, ele deixou anotado no prontuário que o senhor precisa ficar isolado. Só agora surgiu a vaga.”
“Eu não vou! Não quero sair daqui.”
“Tem um paciente aguardando o seu leito.”
“Acontece que eu tô muito bem aqui. O senhor Cláudio Afonso e eu somos bons amigos.”
“Se o senhor não sair, vou chamar a segurança.”
“No hospital, infelizmente, não temos vontade própria. É melhor o senhor ir, vai com Deus”, me aconselhou Cláudio Afonso.
Ao passarmos em frente à enfermaria, José Cleuton estava na porta:
“Vai se mudar, professor?”
“Vou.”
“Professor, esse quarto aí perto do elevador é o quarto em que o japonês morreu.”
“O quê?”
“Qual o problema?”, disse a auxiliar de enfermagem.
“O problema? O problema? Uma pessoa... um ser humano... acabou de falecer nesse quarto.”
“Em todos os quartos morrem e continuam morrendo pacientes — todos os dias, todos os dias, todos os dias. Não existe nenhum quarto de hospital, em lugar nenhum do mundo, sem essa condição.”
“É uma coisa inusitada. Não consegue avaliar? Não tem sentimento?”
“Esse é o seu quarto agora. Faça o favor, pode entrar.”
Fui ao banheiro, molhei o rosto.   
“Tá se sentindo bem, professor?”
“Não sei...”
“O senhor não pode se impressionar. Não num hospital. Na enfermaria, sempre que a gente olha pra cama ao lado tem um cara coberto com o lençol. E ele tava ali um segundo atrás. E se por infelicidade o senhor tivesse que ficar na enfermaria, como eu?”
Nem mesmo a cama onde o japonês havia acabado de falecer era igual às outras; era uma com rodas maiores, das que são usadas talvez no pronto-socorro. O leito jazia um pouco afastado, o lençol desarrumado, como se o homem tivesse saído só pra tomar um café. O quarto era grande, tinha uma janela ampla e a vida lá fora.
“Não vou deitar nessa cama. Não consigo...”
“O senhor quer ficar na cama em que estava antes?”, disse a auxiliar de enfermagem.
“Sim, por favor! E com os mesmos lençóis e o travesseiro.”
“Então me ajuda a trazer a cama pra cá. Ela é pesada, mas tem rodinhas, é fácil empurrar.”
Duas semanas depois, o doutor Aguiar Augusto anunciou:
“Vou te mandar embora, mas não vou te dar alta. A partir de agora, você vai ser tratado em casa.”
“Em casa? Por quanto tempo?”
“Temos pela frente mais duas semanas de tratamento. Antes disso, o teu dedo não estará fora de perigo.”
“Doutor, ontem deixaram comigo um formulário. Querem que eu faça um relatório sobre a internação. Como me refiro ao dedo que está infeccionado?”
“Não sabe os nomes dos dedos dos pés?”
“Não, não sei. Da outra vez foi mais fácil escrever no relatório: “amputação do antepé direito”. Não precisei citar nenhum dedo em particular, pois todos foram cortados.”
“A contagem dos dedos dos pés é feita a partir do hálux, o dedão, que também é chamado de primeiro pododáctilo ou primeiro dedo. O que fica ao lado dele é o segundo dedo, ou segundo pododáctilo, e assim por diante até o dedo mínimo. O que está infeccionado é o quarto dedo, ou o quarto pododáctilo, tanto faz. Cuide bem deles. Os diabéticos precisam ter um cuidado extremo com os pés.”



Márcio Calafiori é jornalista. 
Nasceu em 1957 e se formou 
pela Facos em 1986. 
Exerceu quase todos os cargos 
em redações de jornais em Santos, 
Santo André, Campinas e São Paulo. 
Foi redator, repórter, revisor, editor, 
secretário de redação, 
chefe de reportagem e ombudsman. 
Aposentou-se em 2012 
como professor da Unisanta, 
depois de 29 anos 
de dedicação exclusiva 
ao Jornalismo Impresso.
Márcio faz participações
especiais eventuais
em LEVA UM CASAQUINHO.



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