Ele e Ela estão no sofá da sala. O ambiente é simples, organizado e limpo. Há um computador em cima de um móvel apropriado, com impressora e luminária de mesa. Ao lado do computador há uma estante com tevê e molduras com fotos. Ao lado do sofá de três lugares em que o casal está, à direita, há um abajur de pedestal e na frente uma mesa de centro; num canto da sala há um móvel-bar, com bebidas, balde para gelo, copos, taças. Ela deve ter uns quarenta ou quarenta e cinco anos. Pode ser que seja professora de escola pública. Usa um vestido solto que vai até a altura dos joelhos, pois talvez seja o início da primavera. Ele tem mais de cinquenta. É fisicamente comum. Está de jeans, camisa polo e sapatos pretos.
Ela — Você é assim organizado ou arrumou tudo antes d’eu chegar?
Ele — Normalmente, sou organizado.
Ela — Ah, eu sou bagunçada. Acho que você não iria gostar de mim se visse a minha casa. Não gosto de nada arrumadinho. [Levantando-se do sofá] — Mas afinal, o que você preparou pra me embebedar?
Ele [se levanta também e começa a beijá-la suavemente no rosto, na testa e nos lábios] — Eu não quero te embebedar...
Ela [incrédula] — Não quer me embebedar? Mas todo o homem quer embebedar a mulher. Não existe um que não queira. Os homens são todos uns tarados.
Ele — Eu não sou assim.
Ela — Ah, então vou começar a ficar preocupada! Estou com um cara que não quer me embebedar? Tenho medo de homens assim, são os piores.
Ele [dirigindo-se ao móvel-bar e rindo de leve] — Ao contrário, preparei algo que não vai te deixar bêbada, apenas tontinha.
Ela [sorrindo] — O que é? Fala!
Ele — Surpresa...
Ela — Ah, não, vai me dizer que fez batida de amendoim? Eu adoro, adoro, adoro!
A batida está no móvel-bar dentro de um balde com gelo, numa garrafa improvisada. Ele tira a garrafa do balde.
Ela — Não acredito! Mas que homem ardiloso! Você fez batida de amendoim? Isso é uma arte. Ninguém mais sabe fazer batida de amendoim. Ou fica fraca demais ou forte demais ou doce demais.
Enquanto Ela fala, Ele despeja a bebida cremosa num copo baixo, com duas pedras de gelo. Enche o copo.
Ela — Como você preparou? Me ensina?
Ele [meio posudo] — Usei pasta de amendoim, e não paçoca. A paçoca é que deixa a batida doce e granulada demais. Coloquei leite condensado, um pouco de açúcar, licor de cacau, duas gemas, cachaça... e gim. Tudo bem batido no liquidificador. Prova.
Ela [bebendo] — Nossa!... Enquanto você falava, fiquei pensando: “Isso não é batida, é sorvete de amendoim.” Mas ficou o máximo. Muito diferente.
Ele [se servindo de uísque com gelo] — O segredo é o gim e a pasta de amendoim no lugar da paçoca.
Ele senta no sofá. Ela continua em pé, bebendo. Ele põe o copo em cima da mesa e começa a acariciá-la por baixo do vestido.
Ela [graciosamente] — As tuas mãos são tão macias...
Ele — São mãos de quem não faz nada.
Ela [graciosamente, leve] — Se eu fechar os olhos — assim — sinto uma mulher me acariciando.
Ele — Então abre os olhos. [Ele continua o carinho. Agora Ela está de costas].
Ela — Fiquei com essa sensação...
Ele — Qual sensação?
Ela — De uma mulher me fazendo carinho. [Ela continua de pé]. Deixa eu ver as tuas mãos. [Ele estica as mãos, obediente] — Que mãos! Nem eu tenho mãos assim. Olha aqui as minhas mãos [Ela estica as mãos].
Ele [segurando as mãos dela] — As tuas mãos são lindas, delicadas, as unhas pintadas de rosa, adoro. [Beija as mãos dela com muito carinho, num clima erótico de muito respeito].
Ela — Ah, não! As minhas mãos não são iguais às tuas. [Agora Ela senta no sofá e examina de novo as mãos dele]. Olha só: Você não tem nem cutícula. As tuas mãos são perfeitas, perfeitas. Frequenta manicure?
Ele [meio chocado] — Não, claro que não!
Ela — Mas essas mãos foram tratadas por manicure.
Ele — Não sei se é manicure. É uma senhora que trabalha na barbearia onde corto o cabelo. Ela perguntou se podia cortar as minhas unhas e eu deixei.
Ela — Mas sem dúvida ela caprichou nas tuas mãos. Me dá mais batida.
Ele se levanta e serve mais, levando a garrafa do móvel-bar até a mesa de centro. Senta de novo no sofá.
Ela [sentada, bebendo do copo que foi novamente servido] — Ah, as tuas orelhas [toca nas orelhas dele, alisando-as de leve]. Tão bem feitas. Mas são pequenas... Eu gosto de orelhas grandes.
Ele — Mas que importância as orelhas têm? Não entendi.
Ela — As tuas orelhas parecem as orelhas de um bebê. Só isso.
Ele [puxando-a] — Deixa o bebê mamar. Vem cá...
Ela — Eu não quero um bebê mamando em mim. Eu quero um macaco.
Ele — Um macaco? Mas eu sou um macaco!
Ela — Não, você não é um macaco. Você não tem pelos.
Ele [contrariado] — Você tá falando sério? Respondi todas as perguntas que me fez pelo Facebook e pôde constatar que não menti. Eu disse que depois dos trinta anos comecei a perder os pelos dos braços e das pernas. Isso é normal.
Ela — Não se trata de normalidade.
Ele — Mas eu...
Ela [interrompendo-o] — Eu sei que você não me escondeu nada. E é isso o que me espanta. Acredita em tudo o que te dizem pelo Facebook? Eu não acredito! Sou humana, por isso não acreditei em você. O bom no relacionamento digital são as surpresas.
Durante o diálogo, o casal senta e levanta do sofá, caminha pela sala, senta de novo.
Ele — Está me acusando de ser verdadeiro?
Ela — Estou dizendo que você é ingênuo. Só isso.
Ele — Mas você também não mentiu. Disse que era bonita, e de fato é bonita.
Ela — Foi a única coisa que você quis saber, se eu era bonita, se a minha foto era atual.
Ele — Afinal, por que quis me conhecer, se encontrar comigo?
Ela — Posso ir ao banheiro?
Ele — É lá.
Ele está tenso. Vai ao móvel-bar e bebe mais uísque. Agora Ela está de volta, segurando uma embalagem de creme.
Ela — O que é isso? [Ela lê a embalagem] — Creme Nívea. Milk. Hidratação intensiva. Com óleo de amêndoas. É você quem usa?
Ele — Qual é o problema?
Ela — É só uma pergunta. Não fica tenso. É você quem usa?
Ele — Uso antes de dormir, ao redor dos olhos. Por quê?
Ela — Ao redor dos olhos? Quem te ensinou isso?
Ele — Foi o meu oftalmologista.
Ela — Oftalmologista?
Ela retorna ao banheiro, desta vez demora um pouco mais. Ele se serve de mais uma dose de uísque. Ela volta trazendo mais embalagens de produtos de beleza.
Ela [Começa a ler as embalagens, uma por uma e com sotaque francês onde precisa de sotaque francês.] — Loréal Paris, Pure Zone, Passo 1, Sabonete purificante, Ação antiacne constatada; Loréal Paris, Passo 2, Adstringente, Limpeza profunda; Loréal Paris, Passo 3, Gel creme antiacne; La Roche-Posay, gel mousse purificant.
Ele — O que é isso, afinal? Pode botar tudo de volta no banheiro, já!
Ela — Eu mesma não tenho esses produtos em casa. Lavo o rosto com sabonete de glicerina. E só. Sabe uma coisa que me irrita? É quando um homem entende mais de xampu e de cremes do que eu. Os homens aprenderam rápido demais sobre esses cuidados.
Ele — Você é exagerada. São só cuidados, atualidades da estética masculina.
Ela — Eu exagerada? A mulher está no salão e, de repente, olha pro lado e tem um cara fazendo limpeza de pele e cuidando das sobrancelhas. E os senhores de setenta anos? Eles tiram o dia pra depilar os pelos das orelhas. É a melhor idade ridícula.
Ele — Tudo é uma questão de dedicação pessoal. No meu caso é só higiene, manter a pele limpa, saudável. Só isso. É quase como filosofia. As mulheres do século 21 não gostam de homens relaxados.
Ela — Que mulheres?
Ele — As mulheres! As mulheres!...
Ela — Sim, mas quais? A quem se refere? Os homens dizem “as mulheres”, “as mulheres” como se isso fosse um produto. Que mulheres?
Ele [um pouco exaltado] — As que aparecem nos programas de tevê! Elas gostam de homens bem cuidados. O Fantástico fez até uma pesquisa, ouviu várias na rua. Absolutamente todas disseram que o homem precisa se cuidar, ser vaidoso.
Ela — ahhhhhhhhh!
Ele [Preocupado] — O quê?
Ela — Você acredita na televisão?
Ele [meio discursando] — É o século! Ninguém discute com o século!
Ela — Por que você não tem cabelo no peito?
Ele [Indignado] — Eu tenho cabelo no peito!
Ela — Não tô vendo.
Ele — Eu tenho. Só que raspo.
Ela — Por quê?
Ele — Porque a última mulher que tive pediu pra eu raspar. Ela encostava a cabeça no meu peito, mas dizia que o pelo irritava o rosto dela. Foi por isso que raspei o peito. Para agradá-la.
Ela — Você ainda sai com ela?
Ele — Não, já disse! Não tenho ninguém.
Ela — Você é exatamente o tipo de homem que faz o que as mulheres querem. Você deveria ter insistido em ser um macaco, ter desafiado a tua ex-mulher. Ela sentia a tua falta?
Ele [perplexo] — Mas como eu posso saber?
Ela — Aposto que quem lavava a louça era você. Adivinhei?
Ele — As tarefas aqui em casa eram divididas. As mulheres hoje exigem isso.
Ela — Sei, você cozinhava e lavava a louça e o banheiro e ela botava as roupas na máquina de lavar. Acertei?
Ele — Não me lembro... Você parece louca!
Ela — Louca? Não, meu caro, eu sou apenas uma mulher, algo que você não conhece. Ainda me acha bonita?
Ela não espera Ele responder. Volta para o banheiro com os produtos e retorna trazendo três sabonetes fechados nas embalagens. Ele está no bar, bebendo mais.
Ela — E isso aqui é o que é? [Começa a ler as embalagens]: sabonete cremoso, figo da Turquia; sabonete cremoso, alfazema provençal. Mas que bom gosto!
Ele — Não é bom gosto! Esse sabonete não irrita a minha pele.
Ela — Ah, mas não é só isso. Vem cá.
Ele obedece. Ela o cheira um pouco e depois o empurra de leve.
Ela — Eu gosto de homem com cheiro de barbearia. Mas o cheiro da Acqua Velva não existe mais, nunca mais senti... Era um aroma másculo. O meu avô era barbeiro... Algo se perdeu, não consigo mais...
Ele — O que se perdeu?
Ela [meio perdida, aérea] — Algo que estava no cheiro e que agora eu só consigo imaginar. Entende isso?
Ele — Não, não entendo.
Ela — Aposto que se eu voltar ao banheiro vou deparar agora com outra variedade de sabonete cremoso, tipo “fragrância limão siciliano”. Você garante que não?
Ele — Basta! Basta! Eu gostaria que você fosse embora. Por favor. [Ele abre a porta].
Ela — Eu vou. Não quero ficar. Imagina eu, de repente, com uma vontade gigante de mijar e você trancado no banheiro seguindo os passos 1, 2, e 3 da Loréal Paris.
Ele [sem calma, perdido] — Oh, Deus, eu não sei mais... Não entendo mais... Me ajuda, por favor...
Ela — Cada mulher é uma mulher.
Márcio Calafiori é jornalista.
Nasceu em 1957 e se formou
pela Facos em 1986.
Exerceu quase todos os cargos
em redações de jornais em Santos,
Santo André, Campinas e São Paulo.
Foi redator, repórter, revisor, editor,
secretário de redação,
chefe de reportagem e ombudsman.
Aposentou-se em 2012
como professor da Unisanta,
depois de 29 anos
de dedicação exclusiva
ao Jornalismo Impresso.
Márcio faz participações
especiais eventuais
no time de colaboradores
de LEVA UM CASAQUINHO.
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