publicado originalmente
pelo Diário Carioca
em Fevereiro de 1958
Para responder, há tempos, a uma enquete de jornal, fiz um esforço para apurar as minhas primeiras lembranças carnavalescas. Vi-me a mim mesmo e a meu irmão, muito pequenos mas de calças compridas, uma faixa vermelha na cintura, com bigodes e costeletas pintados a rolha queimada... De pouco mais me lembro, mas creio que éramos nada menos que mexicanos. Também tenho uma vaga noção de que cheguei a apache, mas não estou muito seguro.
O que me encantava, e até hoje me seduz no carnaval, era a transfiguração das pessoas. As pessoas grandes, que eu via todo dia em Cachoeiro, sérias, em seus trajes vulgares, de repente viravam piratas, cowboys, esqueletos, cossacos, índios, sultões, mosqueteiros, palhaços, almirantes. De um certo ponto de vista, parece que eu "acreditava" um pouco nas fantasias, isto é, passava a associar aquelas pessoas às fantasias que tinham usado no carnaval, como se essas fantasias fossem a sua verdade secreta. O disfarce era uma revelação, eis o que eu sentia inconscientemente.
O cheiro dos lança-perfumes, os confetes, as serpentinas, a música, tudo era transfiguração. Para o adolescente tímido, as mocinhas deixavam de ser intocáveis, ao mesmo tempo que ficavam muito mais maravilhosas - ciganas, piratas de coxas nuas, odaliscas, bailarinas, pierretes.
Só no carnaval eu tinha coragem de dançar; ele é a grande festa dos tímidos. Moças que passavam por mim na rua apenas murmurando um "bom dia", com um rápido olhar - que milagre! - no carnaval sorriam, cantavam para mim, olhos nos olhos, se deliciavam com o jato do meu lança-perfume, deixava que eu enchesse seus cabelos de confetes, que as prendesse eternamente com voltas de serpentina - e havia momentos de quase êxtase no tumulto das danças.
Havia uma instituição espantosa para nossa cidade pudica: era, digamos assim, o carro das mulheres. Naturalmente um grande carro aberto cheio de mulheres fantasiadas, a jogar serpentinas, empunhando bisnagas de cem gramas, pintadíssimas, alegríssimas, passeando escandalosamente no meio da gente e dos carros familiares, entre blocos de mocinhas. E todo ano havia um rapazinho que se embriagava e saía no carro das mulheres. Ia ali abraçado a duas gordas, empunhando uma garrafa de cerveja, enfrentando a censura das famílias, mostrando que já era homem, que era farrista, que era um perdido.
O moço de família que tinha a coragem suprema de fazer essa exibição me parecia um herói do vício. Moças recusavam-se a dançar com ele na noite seguinte, no baile dos Caçadores; era, durante algum tempo, um intocável, um imundo. Mas os homens mais velhos comentavam aquilo sorrindo, com simpatia: rapaziadas...
Nunca um capixaba foi tão carioca
quanto o talentosíssimo Rubem Braga.
Jornalista de formação, com alma de poeta,
ele esboçou uma maneira diferenciada
de retratar em suas crônicas
o cotidiano urbano carioca
integrado à Floresta da Tijuca
e ao mar azul que banha
seus bairros mais charmosos.
Viveu 77 anos muito bem vividos.
Deixou este planeta em 1990.
pelo Diário Carioca
em Fevereiro de 1958
Para responder, há tempos, a uma enquete de jornal, fiz um esforço para apurar as minhas primeiras lembranças carnavalescas. Vi-me a mim mesmo e a meu irmão, muito pequenos mas de calças compridas, uma faixa vermelha na cintura, com bigodes e costeletas pintados a rolha queimada... De pouco mais me lembro, mas creio que éramos nada menos que mexicanos. Também tenho uma vaga noção de que cheguei a apache, mas não estou muito seguro.
O que me encantava, e até hoje me seduz no carnaval, era a transfiguração das pessoas. As pessoas grandes, que eu via todo dia em Cachoeiro, sérias, em seus trajes vulgares, de repente viravam piratas, cowboys, esqueletos, cossacos, índios, sultões, mosqueteiros, palhaços, almirantes. De um certo ponto de vista, parece que eu "acreditava" um pouco nas fantasias, isto é, passava a associar aquelas pessoas às fantasias que tinham usado no carnaval, como se essas fantasias fossem a sua verdade secreta. O disfarce era uma revelação, eis o que eu sentia inconscientemente.
O cheiro dos lança-perfumes, os confetes, as serpentinas, a música, tudo era transfiguração. Para o adolescente tímido, as mocinhas deixavam de ser intocáveis, ao mesmo tempo que ficavam muito mais maravilhosas - ciganas, piratas de coxas nuas, odaliscas, bailarinas, pierretes.
Só no carnaval eu tinha coragem de dançar; ele é a grande festa dos tímidos. Moças que passavam por mim na rua apenas murmurando um "bom dia", com um rápido olhar - que milagre! - no carnaval sorriam, cantavam para mim, olhos nos olhos, se deliciavam com o jato do meu lança-perfume, deixava que eu enchesse seus cabelos de confetes, que as prendesse eternamente com voltas de serpentina - e havia momentos de quase êxtase no tumulto das danças.
Havia uma instituição espantosa para nossa cidade pudica: era, digamos assim, o carro das mulheres. Naturalmente um grande carro aberto cheio de mulheres fantasiadas, a jogar serpentinas, empunhando bisnagas de cem gramas, pintadíssimas, alegríssimas, passeando escandalosamente no meio da gente e dos carros familiares, entre blocos de mocinhas. E todo ano havia um rapazinho que se embriagava e saía no carro das mulheres. Ia ali abraçado a duas gordas, empunhando uma garrafa de cerveja, enfrentando a censura das famílias, mostrando que já era homem, que era farrista, que era um perdido.
O moço de família que tinha a coragem suprema de fazer essa exibição me parecia um herói do vício. Moças recusavam-se a dançar com ele na noite seguinte, no baile dos Caçadores; era, durante algum tempo, um intocável, um imundo. Mas os homens mais velhos comentavam aquilo sorrindo, com simpatia: rapaziadas...
Nunca um capixaba foi tão carioca
quanto o talentosíssimo Rubem Braga.
Jornalista de formação, com alma de poeta,
ele esboçou uma maneira diferenciada
de retratar em suas crônicas
o cotidiano urbano carioca
integrado à Floresta da Tijuca
e ao mar azul que banha
seus bairros mais charmosos.
Viveu 77 anos muito bem vividos.
Deixou este planeta em 1990.
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