Thursday, February 18, 2016

AS PERDAS (por Marcelo Rayel Correggiari)




Depois dos quatro dias das folias de mômo, nada como partir para um ‘de-tox’ que vá do físico ao material. O retorno à vida cotidiana tem suas vantagens: a criação de rotinas para quebrá-las mais adiante. O carnaval tem dá esse espaço de proporcionar uma espécie de ‘férias coletivas’ a quem pode tirá-las. Muita gente junta, clubes lotados, praias cheias, um vai-e-vem de pessoas bem diferente dos demais feriados prolongados do ano.

Faz-se muito estardalhaço em torno do carnaval: uma espécie de ‘bal masqué’ onde ‘tout est permis’, mas há certas permissões que já existem antes dos festejos começarem. Nada que seja muito diferente daquilo que já encontramos no resto do ano.

Aquela vã esperança de que as folias carnavalescas proporcionarão descanso em congestionamentos nas rodovias, aquela pegação desenfreada de homens e mulheres na solução de longos períodos de inoperância genital, a operação desse grande milagre de reflexão sobre o que se é como se só isso fosse salvar o mundo.

E ‘dá-lhe’ caipirinha, pôr-do-sol, bailes, silêncios, beijos na boca, ‘cabeleira do Zezé’ (será que ele é?!), refúgios paradisíacos para reflexão de ‘sei-lá-o-quê’, como se tudo isso ajudasse a mitigar certa canalhice que, a cada dia que passa, parece inerente ao ser humano.

Vantagem (ou não!) é saber que, apesar das dores que ficam (numa quarta de cinzas, quem sabe...), tudo isso, um dia, acaba.


É sobre a perda que o grande diretor romano Nanni Moretti trata no seu mais recente trabalho, “Mia Madre”. O filme conta a história de Margherita (intepretada por Margherita Buy), uma diretora de cima envolvida em seu novo trabalho, um longa metragem que será protagonizado pelo astro norte-americano Barry Hughins (John Turturro). Ao longo das filmagens, ela e o irmão (interpretado pelo próprio Nanni Moretti) lidam com a aproximação do fim da mãe (Giulia Lazzarini) e todos os embates emocionais oriundos dessa dolorosa despedida.

O filme se atém aos altos e baixos que tanto Margherita quanto o irmão passam antes do adeus à mãe. E todas as tentativas de se ter um mínimo de humanidade quando o fim é inevitável e é preciso se despedir desse mundo. O forte da abordagem de Nanni Moretti é trazer à baila a questão da dignidade em tudo que se faz em vida, do ponto em que ela desabrocha até o seu ocaso.

E... sim! Há presença de lambreta na película!


Minha experiência com Moretti é bem semelhante à da platéia: começando pelo grande sucesso ‘Aprile’ (Abril), de 1998, passando por ‘Caro Diário’, de 1994. Acredito que seja em ‘Caro Diário’ (memória, não me abandone!) uma das melhores sequências tendo como cenário a cidade de Roma: um passeio com Moretti em sua lambreta por lugares da capital italiana bem longe dos roteiros de pacotes turísticos. É impossível falar da história do cinema, ou de seus grandes momentos, sem inserir essa sequência pelas ruas de Roma. Antológico!

Em todos os filmes, o que percebi em Moretti é uma firmeza de direção que supera grandes nomes como Allen ou Eastwood. Sabor italiano, é fato, com uma certa latinidade ‘de berço’ sem cair em sentimentalismos piegas ou algo do tipo. Essa firmeza na direção novamente é uma das marcas de “Mia Madre”. A interpretação é contundente, os atores estão a serviço da história, do enredo, mas ninguém ‘espalha’ tanto a própria interpretação quanto as dua principais narrativas do filme.

Esse não ‘espalhar’ dos atores, além de mostra essa firmeza na direção, fica evidente no efeito choradeira por parte da platéia que tal intenção causa. E isso Nanni Moretti faz como ninguém: ‘de boas’, não consigo lembrar hoje de algum diretor de cinema vivo que esteja nessa envergadura.


O diretor italiano reverencia os grandes nomes do cinema de seu país, mas pede passagem: arrisca em sua assinatura manter certos padrões encontrados no atual cinema europeu (em especial, o francês), que muito se assemelham a um ritmo encontrado na indústria cinematográfica norte-americana. Moretti trabalha com planos médios, planos médios longos e planos americanos (característica do cinema americano) com planos inteiros e gerais, onde a contemplação característica dos grandes diretores do cinema europeu de todos os tempos, garantem a plasticidade comum dos filmes desse continente.

Contudo, sem açodamento. Afinal, a direção é firme e Moretti tem noção muito precisa daquilo que deseja em seus filmes. É uma consciência de uma proposta artística de tirar o chapéu: mantém a profundidade da história pelos planos gerais e inteiros onde abre espaço de uma contemplação da platéia para refletir sobre o que vê durante a exibição. A platéia entra no cenário. O resultado é inevitável: emoção, emoção, emoção.

O passo do filme é bom, não há tomadas longas porque não é essa a proposta do diretor. Se Allen chega para o público e diz: “é isso!”, Moretti, em seu melhor estilo Goulart de Andrade, convoca todos: “vem comigo!”. Allen é ‘tapa na cara’, Moretti é um ‘caloroso abraço’, daqueles bem apertados. Afeto à italiana! Allen ‘joga na cara’ para ver se você se toca (a partir de uma longa reflexão sobre suas teses), Moretti ‘te emociona’ para ver se você se toca.


Em “Mia Madre”, Moretti vai mais longe: qual a dignidade que precisaríamos ter quando não mais pudermos estar aqui? Somos muito apegados à vida que temos (daí, talvez, a dificuldade de transformação real e efetiva), mas, um dia, não estaremos mais nesse mundo. Quando chegar o momento, teremos a dignidade de entender que é hora de ir embora? Desapegar-se de tudo aquilo que nos constituiu, entender que acabou e aceitar o encerramento do ciclo, do desaparecimento?

Ao final da vida, caso se envelheça, a aceitação é menos dolorosa? Para quem vai é a mesma coisa para quem fica? Amarguras diferentes? E quando o fim de um ciclo acontece ‘longe do fim’, dentro da vida? Transformações pressupõem a ‘morte’ de pessoas e situações que não querem (às vezes, não podem) vir juntos. Qual o tamanho dessas perdas? Quando temos de nos despedir de relacionamentos, interações, mesmo os mais dolorosos. Alívio ou angústia? Ter de se despedir de lugares, lembranças, deixá-los ir. A despedida das possibilidades: a possibilidade do que poderia ter sido, desses grandes amores que se tem, das grandes paixões da vida. Viver, de certo ponto em diante, sem tudo aquilo que, um dia, tocou tão fundo.

Cabra bom, esse Moretti!


MIA MADRE estará disponível em DVD
e Blu-Ray a partir de Março.

Vários filmes anteriores de Nanni Moretti
(como CARO DIÁRIO, HABEMUS PAPAM, O CROCODILO,
APRILE e O QUARTO DO FILHO)
estão disponíveis para locação
no endereço abaixo


Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 47 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO

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