Wednesday, February 17, 2016

BADALHOCA (por Carlão Bittencourt)



Era um neguinho à toa que, desde moleque, tinha a manha de passar despercebido por qualquer lugar. Um cara que já nasceu camuflado, oculto, naturalmente invisível. Quase um vírus em forma de gente.

Tinha tudo para ser mais um desses seres anônimos, que passam pela vida sem serem notados e sem deixar marcas. Um belo dia foi-se: passou. Ninguém sabe ninguém viu. Sumiu sem nunca ter sido. Ou estado.

Tinha. Mas deu zebra. O malandro se tocou do lance. Cedo, percebeu a própria insignificância, sacou que aquela sua ausência de características, fatalmente o condenaria ao estranho destino de não ser nem estar. Nunca. Para sempre um vácuo ambulante.

O fato é que, sem mais essa nem aquela, o pilantra se deu conta de que era totalmente inócuo, inodoro e incolor, quase abstrato para a sociedade. No veneno, não deu outra: fez disso uma arma.

Sua vida passou, então, a ser uma espécie de “volta dos que não foram”. Uma seqüência de experiências e passagens que ele só poderia compartilhar com si mesmo, pois apenas diziam respeito a ele e só ocupavam espaço em sua memória na de mais ninguém. Fosse onde fosse, fizesse o que fizesse, passava despercebido. Sempre. Olha só.

Sem pai nem mãe, foi criado no Morro da Mangueira de onde sumiu sem ser notado porque, afinal, era só mais um neguinho dos tantos que viviam ali pelos terreiros.

Zanzava pela Candelária na época do famoso massacre, do qual escapou com vida porque nenhum dos atiradores prestou atenção nele.  
Roubava para comer nas feiras, sem medo nem susto, que ninguém se dava conta de sua presença. Entrava nas biroscas e ficava num canto, quieto, entrutado. Dali, assistia a todas as mutretas, estrepolias e armações da corriola sem ser incomodado. Sabia de tudo e nenhuma alma viva sabia dele.

Aprendeu a ler e a escrever sem levar nota baixa nem responder chamada. Apenas passava em frente à escola. Se achava bonita, entrava. Quem é que vai reparar em mais um negrinho magro, de nariz remelento e pé no chão, sentado lá no fundão da classe?



Aos 10 anos de idade, foi do be-a-bá ao primeiro pim-pam-pum. A vítima, um garoto loirinho e bem arrumado, cuja culpa foi ter demorado demais pra tirar o par de tênis importados dos pés. A bala pegou na testa! Quando se afastou, pisando macio, notou que o corpo estirado na calçada parecia ainda menor.

Gostava da Zona Sul. Pra ele, aquilo era uma festa, um hipermercado. Tinha de tudo. Era só pegar e sair andando. Na boa. Naquela cordilheira de cimento fez e aconteceu.

Deu suadouro adoidado nos travestis da Galeria Alaska e bicha nenhuma marcou a sua cara. Assaltou aposentado e babá de monte nas praças, ruas e até no calçadão da praia. Nada. Saia andando na maior cara dura. Nem olhava pra trás.

Impune, pegou gosto pela coisa. E fez ainda pior. Atraído pelas gatinhas saradas do pedaço, passou a estuprar. A domicílio. Terror puro. De Copacabana a Ipanema tirou o sono da mulherada. Tanto barbarizou, tanta judiaria fez, que quase acabou com os serviços de entrega nestes bairros. Delivery nunca mais.

Nem sobrinha de delegado escapou. A ruivinha era uma graça. Pele bem clara, cheia de sardas, saia curta, pernas grossas, decote atrevido, barriguinha de fora, os pés pequenos e muito brancos em sandálias de tira. Uau!

Neguinho viu aquilo tudo e entrou no rastro. Parecia cobra se esgueirando, a língua viscosa tremendo, pronto pra dar o bote.

Seguiu a mina até em casa, um prédio enjoado na Prudente de Moraes. Deu sorte: um carro entrava na garagem. Encostou no muro, desceu a rampa encoberto pela lateral do veículo e entrou. Subiu até o hall. Conferiu. O elevador social tinha parado no 7º andar. Teve a pachorra de fumar um cigarro na recepção antes de subir.

Dois por andar. Tirou no par ou ímpar. Deu par. Azar da garota. Virou a maçaneta e não deu outra: a porta abriu. Foi entrando como se o barraco fosse seu. Sala de estar. Nada. Sala de jantar. Picas. Copa. Chongas. Cozinha. Necas. Suíte. Achou! E pelo olhar da fera aquela menina nunca mais seria a mesma.



Até o Jornal Nacional cobriu a matéria. A apresentadora leu a notícia visivelmente incomodada. O cara tinha mesmo barbarizado. O tio delegado botou a tropa na rua. Prometeu uma caçada humana. Jurou o bandido de morte. Agora a prisão do “monstro”, como ele estava sendo chamado, era ponto de honra.

No hospital, após uma semana em coma, a garota acordou. Não, não lembrava de nada. Não, não pôde ver direito o rosto do homem. Ou seria um menino? Só se lembrava de ter sido atacada por trás, já no banheiro, pouco antes de entrar no box. Não, não tinha a menor idéia da idade, peso, tipo físico, cor da pele ou dos cabelos do agressor.

Tinha aberto a porta de vidro quando viu, de relance, uma sombra escura no espelho. Só isso. Mais nada. De repente, ficou calada. Chorou. A menina não conseguia se esquecer da ferocidade daquela criatura. Dor e horror.

A Polícia Técnica não teve descanso. As provas e evidências eram fartas e estavam por toda parte. Do corpo da vítima ao seu apartamento, o que não faltavam eram lembranças do invasor.

Marcas de mordidas, chupões, tapas, batidas, arranhões, beliscões, sêmen, saliva, pêlos pubianos, cabelos, além fartas impressões digitais.

"Esse cara pode ser tudo, menos tímido" disse um investigador. "Até parece um exibicionista, tantos vestígios deixou em sua passagem. Vai ser moleza pegá-lo."

Fizeram de tudo. Só faltou chamar o FBI. No final, tinham o dossiê completo do canalha. Desde DNA, etnia, idade aproximada, arcada dentária e perfil psicológico, até cor das roupas e o tipo de tênis que usava. Mas, apesar de tudo isso, o resultado das investigações foi um fracasso. Pintou um ornitorrinco no retrato-falado. Ou quase.

A razão era simples: o bandido não era bandido. Ou, pelo menos, não tinha ficha na Secretaria de Segurança Pública. E, para piorar, sua impressão digital simplesmente não batia com nenhuma outra entre os milhões de RGs emitidos até aquela data, no Rio de Janeiro. Logo, o pilantra não tinha documentos. E, como tal, não existia. Era um fantasma.

Só poderiam prendê-lo se ele entrasse num flagrante, ao reconhecê-lo pelas impressões digitais. Um golpe de sorte. Até lá, o bicho continuaria solto. E aprontando. Tinha pegado gosto pela coisa.



Badalhoca* seguiu fazendo e acontecendo. Impunemente. No país aonde só os pobres e os miseráveis vão pra cadeia, ele era a própria exceção da regra. E, de alguma forma, sabia disso.

Em dezembro, armou uma quizumba danada numa mansão do Cosme Velho. Era a casa de uma família de gringos, cujo pai era presidente de multinacional, um "pica grossa poderoso".

O pilantra fez uma campana bacana no pedaço e sacou logo qual era a rotina do cafôfo. Horários, número de seguranças, empregados, carros, visitas. Tudo.

O pai saia cedo e só voltava à noite. Tarde. A mãe, uma loira gostosona, passava o dia inteiro na piscina. O casal de filhos adolescentes ficava em casa de manhã e, logo depois do almoço, iam pra escola. E os dois só voltavam na hora do jantar. Quando voltavam.

"A treta tem que ser de tarde", pensou o malandro. "É a hora certa. Aí só estão as empregadas, a gringa coxuda, um segurança e o jardineiro. E os cachorros ainda ficam presos. Se melhorar, estraga. Vai ser moleza!"

Às duas e meia em ponto, invadiu o casarão.

O negrinho parado em frente ao portão despertou a atenção do segurança. O moreno forte, cabelos curtos, terno e óculos escuros, saiu da guarita e perguntou o que ele queria.

O moleque jogou a charla manjada. Disse que estava com fome, que morava na rua, que não tinha família e coisa e tal e berimbau. Colou. O cara mandou ele esperar e se afastou lentamente, carregando os seus cento e muitos quilos.

Depois de falar pelo interfone com a cozinheira, voltou ao portão e abriu a tranca. Disse que era pro garoto esperar ali mesmo, que alguém logo viria trazer um prato de comida.

De volta à sombra amena da guarita, ele não teve tempo de se virar. O estilete fino e comprido penetrou em sua nuca, no princípio, como uma picada de mosquito. E, em seguida, como se mil fagulhas queimassem sua cabeça. Apagou. Em poucos segundos, aquela massa de músculos se desmanchou sobre si mesma. Uma implosão de músculos, ossos e banha.



Badalhoca nem se deu ao trabalho de recuperar a arma. Apenas fechou a porta da casinha do vigia e saiu correndo pelo gramado do jardim.

O homem podava as roseiras com cuidado. Não queria errar. A patroa era louca por rosas. Coitado. Tão entretido estava ele, que nem sentiu quando a pá bateu em sua cabeça. Já estava morto quando seu corpo magro desabou sobre a grama bem aparada. A festa ia começar.




O negrinho não teve pressa. Curtiu aquele momento como se fosse um banquete, há muito esperado.

Começou pela cozinha, onde entrou se esgueirando pela porta dos fundos. Num movimento rápido, degolou a gorda cozinheira com a foice do jardineiro. A negra corpulenta deu um gemido abafado enquanto caia, tentando estancar o sangue do pescoço.

O negrinho ficou impressionado com o fio da lâmina. Que corte! Só por curiosidade, deu mais dois talhos profundos nas ancas largas de sua vítima. Seu sadismo deu azar. A mulher nem respondeu aos golpes.

"Merda, essa já era!", pensou. E foi em frente.



A caminho da sala de jantar, junto da copa, escutou barulho num quarto: era a enorme despensa. Jovelina, a copeira, era sobrinha da cozinheira, Dona Esmeralda. Estava há poucos meses na casa, mas já tinha conquistado a família com sua simpatia.

Vinte anos, sempre com um sorriso de dentes muito brancos no rosto bonito de mulata, Jove, como era chamada, havia finalmente encontrado o melhor emprego da sua vida. Inacreditável.

Bom salário, carteira assinada, plano de saúde, quarto confortável com armário embutido e colchão de molas, duas folgas por mês. Tinha acertado na loteria.

Estava pensando nisso, enquanto empilhava os vidros de conservas nas prateleiras abarrotadas, quando sentiu uma estranha sensação. De repente, o arrepio na espinha. O medo. E a adrenalina inundou seu corpo, quando ouviu aquela respiração já tão próxima. Era pavorosa. Já em pânico, Jovelina virou-se e deu de cara com a própria morte.



Badalhoca precisou de um banho depois de acabar com a morena. Tinha se fartado. Estava que era só sangue. Claro que ele não tinha a menor idéia disso, mas um canibal não teria feito melhor. Nem Jack, o Estripador.

Entrou pingando sangue na enorme suíte do casal. Abriu a torneira e deixou a água cair sobre a cabeça. Delícia. Pensou que devia ser bom ter água quente em casa. Sorriu. Na verdade, seria ainda melhor ter uma casa. Desligou a ducha forte e pegou a toalha grossa, felpuda. Passou do banheiro para o quarto se enxugando, sem pressa.

Do outro lado da casa, deitada de bruços à beira da piscina, Mrs. Karen levantou a cabeça. Pensara ter ouvido qualquer coisa, logo abafada pelos latidos dos "fucking dogs", como ela costumava falar.

Deixou pra lá. Deve ter sido algum moleque, passando na rua. "Fucking kids", pensou. E sorriu, deitando novamente a cabeça no encosto largo e macio da espreguiçadeira.

A patroa viu a sombra se aproximando e pensou no chá gelado que Jove sempre trazia naquela hora. Delicioso. Ia se virar quando sentiu a parte de trás do seu biquini subitamente se soltar. Em seguida, veio o peso sobre suas nádegas.

"What the fuck!!!???"

"Cala a boca, louraça!"

Foi, só então, que Mrs. Karen percebeu apavorada que alguém havia sentado sobre as suas nádegas. Tentou se levantar mas, por causa do peso, não conseguiu. Ia gritar por socorro quando uma mão pequena, pouco maior do que a de um menino surgiu diante de seus olhos. A mão segurava uma navalha!

"Se tu ficá boazinha, vaca loura, eu juro que não te judio muito…"

A frase foi segredada em seu ouvido. E dita por uma voz quase infantil. Só que havia algo naquele tom gutural que não se parecia nada com uma criança falando. De jeito nenhum. A mão com a navalha sumiu de vista. Sentiu um friozinho do lado da coxa direita. Um puxão. E estava nua.

"Vira, deixa eu ver os peitão…"

Tremendo de medo, Mrs. Karen virou-se devagar. E deu de cara com o negrinho.

Badalhoca estava com a boca cheia de saliva. A gringa era mesmo um tesão. Difícil saber por onde começar. Seus olhos desciam dos seios fartos, de bicos grandes e róseos, para a vagina de talho longo, coberta por uma penugem grossa e avermelhada.

"Tá cum vergonha du que, louraça? Vamô, abre essas perna…"

A mão com a navalha balançava pra lá e pra cá. O moleque deixou cair a bermuda que pegara no quarto do filho dela. Mrs. Karen não reconheceu a roupa, mas entendeu o que viria em seguida. Na hora. Viu o brilho do sol na lâmina afiada. Preferiu não arriscar.

"Isso… assim…"

Badalhoca se empapuçou. Uma hora pode ser tempo demais. Uma eternidade. Mrs. Karen descobriu isso da pior das maneiras. Mas estava viva. Ou quase, depois de se sujeitar a todas as taras daquele "fucking devil". Um repertório de tabus para encabular psicanalista.

Agora ela se via nua, de bruços, amarrada pelos pés e mãos, com o corpo esticado ao comprido sobre a enorme mesa da sala de jantar. Mais uma vez tentou não pensar pelo que tinha passado. O Inferno de Dante seria considerado um refresco, um passeio no parque.

O fato é que ela não conseguiria mais se esquecer das humilhações a que havia sido submetida. Nunca mais. Aquele garoto sabia praticar o mal. Para valer.

Badalhoca entrou na sala de banho tomado, cheirando a perfume. Parecia outro. Vinha com uma maleta da American Airlines nas mãos. Colocou-a sobre a cabeceira da mesa.

Estava "bem embrulhadinho", como ele mesmo costumava dizer. Bermuda de surfista, camiseta nova, tênis Nike, boné e relógio de marca. Tinha valido a pena apertar a “vaca loura”.

Depois da “sova de rola”, nas palavras dele, tinha arrastado a pobre mulher pelos cabelos para dentro da casa. Aos tapas e pontapés, perguntou pelo cofre.

Desesperada, a mulher não dizia coisa com coisa. Chorava, babava, cuspia sangue, mas não queria dar o serviço. De jeito nenhum. Mas, foi só ele balançar a navalha perigosamente perto dos bicos dos seus seios que ela entregou o ouro. Direitinho. Não teve segredo.

Quando a porta do cofre se abriu, o negrinho pensou: "Badalhoca, acabou a miséria…só tem dólar e euro aí dentro, e o baú dos piratas de jóias, malandro!"

Pegou tudo e pôs na sacola grande que achou no armário embutido. Estava impressionado com o peso da rapinagem. Sem falar na pistola automática Glock e no relógio de ouro, Rolex.

Quando saia, o negrinho olhou para mulher deitada de bruços sobre a mesa e deu risada. Lembrou do quanto a "gringa" esperneava e gritava até finalmente entender o que ele queria dizer com "fiofó". Sentiu um comichão no sexo. Deixou pra lá.

"Ainda ri, motherfucker!", pensou a mulher. Ficou gelada quando ele veio em sua direção. Mas Badalhoca passou por ela e seguiu até a cozinha.

A mulher mal teve tempo de relaxar, quando pressentiu que ele tinha voltado. Tremeu inteira quando ouviu:

"Olha aqui, vaca loura: eu só num ti apago agora porque cê foi legal pra mim…"

Deu um tapinha nas nádegas fartas, marcadas de dentes. Falou: "Cê nasceu pra dar esse fió…"

Ainda estava rindo, quando disse, baixinho, junto da orelha dela:

"Agora abre essa boca de chupa rôla, que eu 
vou enfeitar ela pro Natal…"

Mrs. Karen olhou para a vela grossa, muito branca, que Badalhoca tinha na mão. Nem teve tempo de pensar. Ele enfiou aquilo em sua boca. Um estupro oral.

Depois que se assegurou de que, apesar de tudo, ela conseguia respirar, o negrinho acendeu a vela. E disse, gaiato:

"Agora, a porta dos fundos… que a gente nunca sabe por onde o Papai Noel vai entrar…"

Não adiantou lutar. A mulher bem que tentou se proteger mas, amarrada como estava, simplesmente não tinha como escapar.

A dor no ânus, já bastante machucado, foi dilacerante, mas o grito não saiu de sua garganta. Ficou preso, abafado.

Antes de perder os sentidos, a última coisa que Mrs. Karen viu foi a imagem da chama tremulando. Estranhamente, ela se lembrou de um natal feliz de sua infância.

O negrinho abaixou a cabeça e acendeu o cigarro na vela. Puxou uma tragada, pegou a sacola pesada e saiu. Ao chegar à porta, virou-se e achou graça na cena macabra.

Badalhoca viu a mão negra, gorda e ensangüentada da cozinheira, enterrada pelo pulso no “fiofó” da pobre dona da casa. O único aceno que recebeu em sua vida.




*Badalhoca - S. f. 1. Cardina – 1. Pequenas pastas de imundície que aderem à lã ou ao pêlo dos animais; 2. Sujidade na pele das pessoas; 3. Pedacinhos de fezes presas nos pelos em volta do ânus; 4. P. ext. Coisa pendente, difícil de se notar.

(Carlão Bittencourt 16.02.2016)



Carlão Bittencourt é redator publicitário e cronista,
autor de "Pela Sete - Breves Histórias do Pano Verde"
(2003, Editora Codex),
um mergulho no universo dos salões de bilhar de São Paulo,
e escreve toda semana em LEVA UM CASAQUINHO.


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