“Eu não escolho a forma, sigo as ideias. Tento cultivar a capacidade de codificar essas ideias quando elas vêm e me certificar de que o caminho esteja desbloqueado para elas. Tento “ouvir” o que estou criando e entender o que aquilo quer ser. Às vezes ele me diz, às vezes não. É muito difícil. Então tento ser o mais aberta possível, e não me fechar para nenhuma forma de arte. Por que reforçar as restrições sobre si mesmo se todo o caminho de um artista é tentar remover as restrições e ser o mais livre possível para criar? Eu sempre li literatura, e sempre sonhei em escrever um romance, mas eu não era uma escritora hábil o suficiente, não estava pronta para conceber uma ideia que funcionasse nesse formato."
São palavras da rapper, poeta, atriz e agora também romancista inglesa Kate Tempest, 30 anos, no prólogo de seu primeiro romance, "Os tijolos nas paredes das casas", lançado ano passado pela Casa da Palavra, depois de fazer uma carreira notável na Inglaterra e nos Estados Unidos avalizado por críticas entusiasmadíssimas de The New York Times, The Guardian e The Observer -- e que estava aguardando na minha fila de espera de leituras há já alguns meses.
O que faz desse romance algo tão especial é justamente o fato dele ter aquele jeitão peculiar de "romance de uma geração". Eu, pessoalmente, costumo gostar de livros que tem essa pretensão, seja como ponto de partida ou como ponto de chegada. Temos aqui o retrato de uma geração de jovens que achava que a vida adulta seria um parque de diversões, e que o futuro seguiria sorrindo indefinidamente. Mal poderiam imaginar que o contrário disso tudo estava muito mais próximo, e que acabariam todos atolados em rotinas de prazeres fugazes e desilusões.
Kate é, de certa forma, herdeira da tradição literária dos Angry Young Men dos Anos 50 e 60, e daquele universo temático conturbado de roqueiros suburbanos como Pete Townshend e Joe Strummer. Mas apesar dos temas abordados -- juventude, fugas e vida contemporânea nas grandes cidades -- serem basicamente os mesmos, o tom adotado aqui é de desalento, não de desespero. E não há nada de atemporal em sua prosa: seu tempo é hoje.
No cerne principal de "Os tijolos nas paredes das casas", estão três personagens:
1. Becky, uma aspirante a dançarina que banca seus estudos e seu início de carreira trabalhando como "massagista erótica".
2. Harry, um jovem preocupado em ter dinheiro em caixa para poder apostar num negócio que lhe garanta um futuro próspero, e que não hesita em, para isso, traficar cocaína para uns clientes endinheirados.
3. Leon, um amigo meio apagado de Becky e Harry, que, mais do que por qualquer outro motivo, os acompanha na fuga para fugir ao tédio mortal que tomou conta de sua vida.
A bordo de um Ford Cortina, os três deixam Londres com uma mala cheia de dinheiro e caem na estrada em busca de um futuro melhor, onde não hajam empregos sem perspectivas e traficantes vingativos. Conforme avançam em sua fuga, Kate nos convida a voltar e mergulhar fundo nas histórias pessoais de cada um desses personagens. E o que se vê, pouco a pouco, é um festival de contradições inconciliáveis muito bem trabalhadas pela autora, onde solidão e desejo, submissão e ambição, e sonhos e falta de perspectivas se contrapõem a todo momento.
Para trabalhar esses contrapontos, Kate faz uso de uma escrita sincopada, com cadência de rap, que é algo extremamente incomum em romances -- eu, pelo menos, não me lembro de ver nenhum romancista fazendo uso de um expediente desse tipo. Por ser poeta, usa e abusa de figuras de linguagem em sua prosa, que também não é um elemento comum em romances nos dias de ehoje. E, para completar, conduz o mergulho no passado de seus personagens de uma maneira semelhante à usada por Virginia Woolf em "Mrs. Dalloway".
O que é mais surpreendente em relação a Kate Tempest é que, antes de ser poeta e romancista, ela já era um dos nomes mais proeminentes da cena hip-hop inglesa. Começou na vida artística participando de competições de hip-hop, e aos poucos migrou para a poesia clássica, além de trabalhar paralelamente como atriz em companhias renomadas como a Old Vic e a Royal Shakespeare Company. O caso é que ela sentiu que os personagens e o universo temático dos números musicais de seu álbum solo “Everybody down” (2013) não couberam por inteiro no disco, e foi aí que começou a nascer o romance “Os tijolos nas paredes das casas”.
É um romance bastante ambicioso. Compõe um painel intenso de toda uma geração, e mergulha também no passado de seus pais e avós, em flashbacks reveladores. Há, talvez, alguns excessos descritivos nas histórias paralelas, quase atravancando em algumas passagens o ritmo da narrativa. Mas, na medida em que este é um romance de estreia, pequenos deslizes assim merecem um desconto. Até porque suas qualidades falam muito mais alto que seus pequenos defeitos.
Quem aprecia Kate Tempest como artista de rap dificilmente irá se sensibilizar com "Os tijolos nas paredes das casas". Por sua vez, quem admira sua poesia andou torcendo o nariz para este seu romance. Já quem teve seu primeiro contato com Kate através de "Os tijolos nas paredes das casas" -- o meu caso -- vai notar nela uma romancista esforçada, original e talentosa. Eu gostei muito do que eu li. E recomendo.
Editora Casa da Palavra
Título original
THE BRICKS THAT BUILT THE HOUSES
331 Páginas
331 Páginas
Preço de capa:
R$39,90
R$39,90
Chico Marques devora livros
desde que se conhece por gente.
Estudou Literatura Inglesa
na Universidade de Brasília
e leu com muito prazer
uma quantidade considerável
de volumes da espetacular
Biblioteca da UnB.
Vive em Santos SP, onde,
entre outros afazeres,
edita a revista cultural
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