Thursday, March 23, 2017

QUANDO SOPRAM AS BALEIAS (por Ademir Demarchi)



“Pergunto a mim mesmo se uma recordação é algo que se tem ou algo que se perdeu”, diz Woody Allen no filme “A outra”, de 1988, um drama psicológico que tem por personagem uma professora que se licencia da universidade para escrever um livro. Para isso, ela se muda para uma casa onde teria a solidão e o silêncio necessários. No entanto, começa a ouvir pelo sistema de ventilação as conversas da casa ao lado, de uma outra mulher, grávida, em crise consigo mesma, que fala ao seu psicólogo sobre sua falta de sentido para viver. Não é essa, porém, “a outra”, pois as conversas ouvidas pela escritora parecem vir dela mesma na medida em que começa a se lembrar de quem foi no passado e esqueceu. É essa a “outra” que reaparece no presente colocando novos desafios para a escritora. A constatação desse esquecimento é que motiva uma tal indagação sobre o que seria uma recordação e a memória e as respostas que se tem sobre isso é que dão o tom do filme: aquela outra esquecida no passado volta para interferir nessa que deseja escrever sobre si. Esse filme é citado como uma das inspirações do galego de La Coruña, na Espanha, Miguelanxo Prado, em “Ardalén”, álbum de quadrinhos de 254 páginas publicado no Brasil pela Realejo, que transcende essa linguagem na medida em que é também poético e reflexivo ao usar recursos literários e jornalísticos para compor a estória. O personagem principal é um velhinho, Fidel, que, desmemoriado, vê baleias voarem quando sopra o vento “ardalen”, um vento ábrego, temperado e úmido, vindo do mar cheirando a sal e iodo. A representação dessas imagens por Miguelanxo Prado é impressionante ao leitor e cativam a imaginação. Vivendo em uma pequena comunidade, Fidel sai de casa rotineiramente para encontrar outros velhos em uma taberna, que o tratam grosseiramente. A rispidez aumenta quando chega à aldeia uma moça vinda da capital em busca de informações de um avô perdido que possivelmente foi amigo de Fidel. Tornando-se amiga dele, a inveja e o ciúme são despertados nos outros, estabelecendo-se uma tensão que vai minando a narrativa. Fidel vive num eterno presente sem memória, na agonia de não lembrar, olhando para uma paisagem que integra como se estivesse dentro do mar, com peixes e baleias voando ao seu redor. Miguelanxo, a certa altura da narrativa, introduz a informação de que “não existe o presente”, relativizando ainda mais a ideia do tempo, agora mais crucial ainda na constatação de Fidel que diz não saber mais se o que lembra foi de fato recordado ou imaginado. Fidel é, assim, um náufrago em meio a uma aquosa e caudalosa memória pintada pela imaginação. A convivência com a nova amiga impõe a ele o desafio de recordar ou inventar um passado estimulado pela própria memória perdida que ela busca na figura do avô. E é nisso que reside uma das sugestões mais instigantes de Ardalén, associada com as ilustrações coloridas: mesmo que a memória recuperada seja verdadeira, ou real, ela não se dissocia do fato de que é, também, imaginada, e, em geral, edulcorada por quem faz o exercício de recordar. No filme de Allen não se trata de amenizar a memória, mas de fazer o esforço para recuperá-la, perdida na rotina da vida, essa sim edulcorada para se tornar agradável. Ao sair desse conforto para escrever um livro, no entanto a professora cai naquele oceano de baleias que Fidel espera chegar com a mudança de estação que traz o vento e que é uma metáfora eficiente do inconsciente, recoberto pelo sono ameno em que se transforma a vida. O fato é que essa rotina é insuportável e todos estamos sempre esperando que chegue um vento como o ábrego, temperado e úmido, vindo do mar cheirando a sal e iodo, para nos cercar da sensação fantástica de que as baleias voam à nossa volta suspendendo o tempo.






Ademir Demarchi é santista de Maringá, no Paraná,
onde nasceu em 7 de Abril de 1960.
Além de poeta, cronista e tradutor,
é editor da prestigiada revista BABEL.
Possui diversos livros publicados.
Seus poemas estão reunidos em "Pirão de Sereia"
e suas crônicas em "Siri Na Lata",
ambos publicados pela Realejo Edições.


SO LONG FAREWELL
AUF WIEDERSEHEN
GOODBYE
VERÃO!

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