Thursday, March 9, 2017

HIROSHIMA MEU AMOR, CLÁSSICO DE ALAIN RESNAIS, VOLTA EM VERSÃO RESTAURADA

por José Carlos Avellar


1. Você não viu nada em Hiroshima

É o título do livro editado pelo Instituto de Sociologia da Universidade Livre de Bruxelas em 1962. É a primeira frase que se fala no filme

“Tu n’as rien vu, à Hiroshima”

depois de três minutos de imagens de um desenho quase abstrato ligadas por fusões e sublinhadas por um tema musical.É a sensação primeira. Exprime a surpresa que toma conta do espectador depois da primeira visão e estimula a vontade de voltar a ver e rever o filme:

Você não viu nada em Hiroshima.

“Tu n’as rien vu, à Hiroshima”.

A resposta vem de imediato. Uma voz feminina desdiz o que o homem acabou de dizer num francês de sotaque acentuado. O francês dela é claro:

“J’ai tout vu. Tout”.

Ela viu: o hospital (como não ver o hospital de Hiroshima?), o museu, as pessoas, as fotografias, as explicações, o ferro retorcido, as cinzas, as pedras queimadas. Ela sentiu o calor de dez mil graus na praça da Paz.

“Eu vi tudo. Tudo”.

O francês dele tem uma outra musicalidade. Ele insiste que ela não viu nada em Hiroshima:

“Tu n’as rien vu, à Hiroshima. Rien”


As vozes correm sobre as imagens do hospital, do museu, de rostos queimados, de pedaços de ferro retorcido. Temos as vozes mas não a imagem do homem e da mulher que falam e deste modo as duas frases aparecem como um diálogo interior do espectador com ele mesmo – em particular, do espectador brasileiro com ele mesmo. Ele, que não viu nada em Hiroshima, com o filme na tela tem a impressão de ver tudo em Hiroshima.

[Ouvir a voz sem ver a pessoa que fala passa a sensação de que o filme, não o personagem mas o filme, neste momento fala para o espectador. Adiante, a mesma sensação reaparece, mas agora vemos o rosto da mulher em primeiro plano; ela responde uma pergunta como se falasse também para o espectador: “eu estou atuando num filme”. Sem sair de dentro de si mesmo o filme simultaneamente salta para outra dimensão e se comunica com o espectador de outro modo.]


Talvez se possa dizer mais, que o espectador brasileiro tem a sensação de que estas duas frases de duplo sentido, se referem tanto à cidade que quase acabou com a bomba quanto ao filme que apenas começa, representam a experiência do espectador diante de Hiroshima meu amor. Enquanto a imagem está acesa na tela ele é conduzido pela voz da mulher; terminada a projeção, a voz do homem reaparece na memória: você não viu nada em Hiroshima. Esta sensação talvez continue a mesma hoje, cinquenta anos depois da primeira projeção pública de Hiroshima meu amor em maio de 1959, no Festival da Cannes.

Quando surgiu, o primeiro filme de longa-metragem de Alain Resnais provocou entusiasmo e desconcerto. O seminário de Bruxelas, em janeiro de 1960, e o livro coordenado por Raymond Ravar dois anos mais tarde prosseguiram a discussão aberta em Cannes. E entre nós, em torno das primeiras exibições idêntico entusiasmo.


Antes da estréia do filme no Brasil, Paulo Emílio Salles Gomes escreveu cinco textos no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo (nos dias 7 e 14 de maio, 4 e 25 de junho e 2 de julho de 1960). O penúltimo texto conclui com uma frase que dá a tônica de todos os outros:

“É difícil escrever sobre Hiroshima mon amour”.

Depois da estréia, José Haroldo Pereira, na “interpretação cinematográfica de um filme superior ao cinema” (Revista de Cinema de Belo Horizonte, janeiro / fevereiro de 1961, páginas 5 a 12), fala da “dificuldade de analisar a complexidade temática do filme” e de seu entusiasmo: “amo a obra de Alain Resnais / Marguerite Duras acima de todas as outras já vistas por mim na tela”.

Entre um texto e outro, David Neves (Hiroshima-Nevers: um itinerário, em O metropolitano, agosto de 1960) confessa: “guardamos ainda certa parte da perplexidade que nos assolou desde a primeira vez que o vimos, no mês de janeiro, em Belo Horizonte (...) O bouleversement provocado por Hiroshima, mon amour é, em todos os aspectos, distinto daqueles que se originam nas manifestações da emoção estética pura”.

O enredo do filme pode ser resumido em três linhas ou esticado até uma história sem fim, anota Paulo Emílio. “Uma atriz vinda de Paris para trabalhar numa fita em Hiroshima, tem uma aventura amorosa e revive, através do amante japonês, a trágica experiência que tivera durante a ocupação em Nevers, na França, com um amante alemão. Tudo na película brota de um diálogo de amantes e a linha dramática se desenvolve através do pontilhar de recordações”. Deste modo, “a madrugada de amor em Hiroshima é inseparável da madrugada de morte em Nevers”. O espaço e o tempo “se dissolvem e a câmera percorre sem solução de continuidade Hiroshima e Nevers, 1945 e 1958”. A presença do amante japonês desperta a memória do amante alemão e “a lembrança do cataclismo que se abateu sobre Hiroshima no dia 6 de agosto de 1945, quando em alguns segundos morreram duzentas mil pessoas.”

Memória: “como você, um lutei para manter uma memória inconsolável”, diz a voz feminina de Hiroshima, meu amor. E depois de um vazio conclui: “e como você, eu esqueci”.

Memória e esquecimento são a matéria dos filmes curtos de Resnais – observa José Haroldo – quase todos eles uma “meditação sobre um passado que desfila novamente (ou pela primeira vez) em nosso campo visual, num exercício talvez mais político que filosófico”.

Para David Neves uma frase da personagem feminina (l’oubli commencera por l’oeil / o esquecimento começará pelo olho) é o motivo central “da construção interna e externa da fita. Todo processo interior de criação tem fundamento na capacidade intrínseca de imaginar (o próprio vocábulo encerra sua origem). O cinema, aqui, atinge pela primeira vez o ápice, nas investidas em busca da melhor exposição de nossos âmagos anímicos. Os pensamentos que se desenvolvem internamente em palavras, mesmo estes, possuem um background figurativo”. Sem dúvida, conclui David, “estamos diante de uma realização sui generis”, entre outros motivos porque “o método tradicional de percepção visual, pelo qual o espectador usufruía certo conforto, sofre violento desprezo”.


A personagem principal, para Paulo Emílio, “vive numa profunda desordem interior. A fita tem por vezes algo de uma sessão de psicanálise em que o divã foi francamente transformado em leito e o médico em amante”.

Mas o caso amoroso narrado em Hiroshima, meu amor “simultaneamente continua e inverte a moral que anima o pequeno ensaio sobre a cidade destruída”, acrescenta José Haroldo: “ao privilégio temático das tragédias coletivas se opõe o da tragédia individual, à necessidade da memória argumenta a necessidade do esquecimento, à abstração da montagem uma história concreta”. Haroldo observa que as falas dos personagens “são frequentemente contraditórias: os pensamentos da moça somente obedecem ao seu estado de espírito do momento. Com idêntica sinceridade um pourquoi nier l'évidente necessite de la mémoire? (por que negar a evidente necessidade da memória?) se faz seguir de um il faut éviter de penser à ces difficultés que presente le monde quelquefois (devemos evitar pensar nas dificuldades que o mundo nos apresenta de quando em quando)”.

“Contradições, sim”. Para Resnais, “o filme inteiro se apóia em contradições. Vivemos todos num tempo marcado por contradições: pensamos uma coisa pela manhã e o oposto pela tarde, temos um sentimento pela manhã e outro pela tarde. Por isso me parece normal encontrar contradições numa obra”. Para o diretor o texto do começo do filme “não representa uma conversa real entre o homem e a mulher. É uma espécie de sonho, são vozes que vêm, ao mesmo tempo, do inconsciente dos autores e dos espectadores. Só mais tarde estas vozes se transformam nas vozes dos personagens principais. O começo do filme é uma espécie de travelling nas nuvens do inconsciente para que possamos nos aproximar dos personagens. É também uma maneira de criar um clima sensorial, de dar a esta história de amor um outro tom, uma outra ressonância. Queria provocar nos primeiros quinze minutos um incômodo semelhante ao do provocado por um pesadelo... Mas devo acrescentar: tudo isso foi feito de modo intuitivo, absolutamente intuitivo.”

No seminário em Bruxelas, o diretor contou como começou a ver a história:

“É muito difícil dizer como nasce um filme. No começo existe uma imagem, um tema, uma atmosfera, uma forma geral, às vezes uma espécie de arquitetura. Quando comecei a pensar em Hiroshima meu amor sonhava com um filme a-cronológico, um filme em que o tempo, o espaço e a ação se modificassem inteiramente dentro da mesma cena, um filme em que a visão mudasse a todo instante. Cheguei a conversar sobre isso com Roger Vailland e com Alain Robbe-Grillet. Eu tinha sido convidado a fazer um filme sobre a bomba atômica, e depois de trabalhar com diferentes roteiristas me encontrava num impasse. Eu não queria fazer o décimo quinto ou o décimo sexto filme sobre o tema. O que eu queria mesmo era filmar Moderato cantabile de Duras, filmar para mim, em 16mm, para meu prazer pessoal. Então disse ao produtor que não dava para fazer mais um filme sobre a bomba atômica, e acrescentei: a não ser que Marguerite Duras se interessasse”

“ Eles levaram a sério minha observação e organizaram um encontro com ela. Em nosso primeiro encontro eu disse para ela que poderíamos tentar fazer uma história de amor em que a angústia atômica estivesse presente. Falei também de uma certa noção de personagens que não participam diretamente da ação trágica, mas que se lembrem dela. Personagens que são testemunhas da ação. O japonês não viveu a catástrofe de Hiroshima, mas a conhece intelectualmente, tem consciência dela, assim como os espectadores do filme, assim como todos nós. Podemos interiormente sentir o que aconteceu mesmo sem jamais ter estado lá. Todos nós somos numa certa medida espectadores diante das catástrofes ou dos grande problemas de nosso tempo.”

“Penso que existe uma qualquer coisa estranha quando no cinema o espectador se vê diante de filmes como... por exemplo, Lanceiros da Índia [The lives of a Bengal Lancer, de Henry Hathaway, 1935], onde o herói explode uma fábrica de pólvora. Muito raramente temos ocasião de fazer algo assim, de explodir alguma coisa, de agir como um herói. Por isso, acredito, existe a possibilidade de desenvolver outros princípios dramáticos e de tentar colocá-los em ação.” Resnais disse mais, que levou a Marguerite Duras “uma vaga idéia de construção. O esquema de uma história de amor que se passa em Hiroshima e que evoca, numa montagem paralela, algo que se passou em 1944, durante a guerra. A rigor o que apresentei a Marguerite Duras foi uma coisa puramente abstrata. E um filme se faz sobre coisas concretas. Preciso ver os personagens para me interessar por eles. Preciso saber o que eles podem e o que não podem fazer. Existe uma imagem simples: a de uma árvore. Para que uma árvore se mantenha de pé, é preciso que possua raízes profundas. Mesmo que seja vista apenas durante um momento — e talvez, precisamente, porque é visto em vez de ser conduzido por palavras, o personagem de um filme deve também possuir raízes, ou seja, uma vida inteira por detrás dele. Foi por isso que, antes de começar a filmar Hiroshima, meu amor pedi a Marguerite Duras que escrevesse a história completa das personagens, o que chamei então de roteiro subterrâneo do filme.”

[“Habitualmente um diretor de cinema se pergunta se a história que ele quer contar pode ou não interessar ao público”, observou Marguerite Duras em depoimento para a revista francesa Image et son, em setembro de 1959. “Resnais, ao contrário, se pergunta se a história que ele quer contar interessa a ele, Resnais. Nos encontrávamos todos os dias e todos os dias ele me dizia se a história que desenvolvíamos lhe interessava ou não”.]


E ainda, Resnais disse que o roteiro não estava concluído quando ele viajou para Tóquio em julho de 1958 para a escolha das locações, do ator e dos técnicos que iriam trabalhar no filme. De certo, quando viajou para o Japão, tinha apenas a participação de Emmanuele Riva. Ele e Marguerite concordavam, era a atriz ideal para a personagem. As cenas que se passam na França só foram escritas depois das filmagens no Japão – feitas em setembro.

“Marguerite entregou-se ao trabalho e quando voltei do Japão e assistimos às primeiras imagens achávamos, juntamente com os produtores, que talvez elas não se equilibrassem. Tentamos, então, desenvolver a parte francesa, e eu, por desencargo de consciência — mas com muita dificuldade — filmei cenas suplementares. Finalmente, tive de eliminar todas elas, porque estas cenas não tinham lugar no relato, pertenciam ao roteiro subterrâneo. A protagonista poderia tê-las vivido, mas não era verossímil que viesse a narrá-las.”

Duras, no citado depoimento para a revista Image et son, diz que Resnais trabalha como um escritor que escreve um romance, que procura deixar o espectador com a imaginação livre assim como a do leitor de um livro. Resnais concorda, e explica que vem daí o tom recitativo e os longos monólogos em Hiroshima, meu amor. Diz que procurou recriar o universo romanesco de Duras, que o filme é tão dele quanto dela, que a mise-en-scène aqui é menos importante que o texto e o trabalho dos atores e o importante é despertar a imaginação do espectador assim como um romance desperta a do leitor.

“Quando lemos um romance temos a impressão (pelo menos num certo tipo de romance) que o escritor nos deixa uma grande liberdade, convida o leitor a não ser passivo. Eu estava com vontade de fazer um filme em que o espectador, ele também, se sentisse livre e estimulado a trabalhar com a cabeça para completar o filme pela imaginação. Existem romances que nem sequer descrevem a aparência física dos personagens. No cinema, no momento, é difícil, mas é uma possibilidade que me seduz: encontrar um espectador que não se deixe ficar hipnotizado na poltrona. Hiroshima é assim: se o espectador não acrescenta alguma coisa ao que viu ele parece um filme vazio.”

Ou, noutras palavras, se o espectador não trabalha tudo o que viu na imaginação a experiência dele pode ser resumida na primeira frase que se diz no filme:

Você não viu nada em Hiroshima.

texto extraído do blog escrevercinema.com
Textos e Notas Críticas de José Carlos Avellar


HIROSHIMA MEU AMOR
(Hiroshima Mon Amour, 1959, 90 minutos)

Direção
Alain Resnais

Roteiro e Diálogos
Marguerite Duras

Música
Georges Delerue 

Elenco
Emmanuelle Riva
Eiji Okada
Bernard Fresson
Stella Dassas
Pierre Barbaud

em cartaz no Cinespaço Miramar Shopping




José Carlos Avelar foi cineasta, e também curador e crítico de cinema,
Coordenou a área de cinema no IMS de 2008 até março de 2016, quando faleceu.







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