MUITA GENTE NÃO SABE, MAS A ROLLING STONE,
QUE HOJE É UMA PUBLICAÇÃO TOTALMENTE INTEGRADA
AO MAINSTREAM EDITORIAL BRASILEIRO,
JÁ FOI UMA REVISTA BEM ALTERNATIVA,
APESAR DE TER ESTADO SEMPRE A SERVIÇO
DA INDÚSTRIA FONOGRÁFICA.
ENTRE MEADOS DE 1971 E JANEIRO DE 1973,
A ROLLING STONE CIRCULOU NO BRASIL
NO FORMATO JORNAL TABLÓIDE
ENTÃO ADOTADO PELA MATRIZ AMERICANA,
E MESCLAVA ARTIGOS ORIGINAIS TRADUZIDOS
COM COLABORAÇÕES DOS EDITORES BRASILEIROS
QUE ERAM COMANDADOS POR LUIS CARLOS MACIEL.
DESNECESSÁRIO DIZER QUE
FOI UMA EXPERIÊNCIA MARAVILHOSA ENQUANTO DUROU
RECENTEMENTE, UM ABNEGADO
FÃ INCONDICIONAL DA REVISTA
CHAMADO CRISTIANO GRIMALDI
DECIDIU FAZER SCANS DE TODAS AS EDIÇÕES
DA PRIMEIRA ROLLING STONE BRASILEIRA
E DISPONIBILIZÁ-LAS NUMA HEMEROTECA VIRTUAL
PARA QUE TODOS OS QUE A CONHECERAM
E TODOS OS QUE SÓ OUVIRAM FALAR DELA
POSSAM FOLHEAR E LER TODAS AS 37 EDIÇÕES PUBLICADAS
ATRAVÉS DO ENDEREÇO
https://www.pedrarolante.com.br
SEJAM BEM-VINDOS AO WEBOASIS DA SEMANA,
NOVA SEÇÃO DE LEVA UM CASAQUINHO,
QUE VAI TRAZER AQUI TODA SEGUNDA-FEIRA
ALGUNS DOS RECANTOS MAIS APRAZÍVEIS DA WEB.
por Ana Maria Bahiana
(texto publicado originalmente no Rio Fanzine de O Globo
e cedido para republicação no portal Digestivo Cultural)
e cedido para republicação no portal Digestivo Cultural)
Ficava no segundo andar de um sobrado cor-de-rosa na esquina de Visconde de Caravelas com Conde de Irajá. Das janelas da redação, via-se o Corcovado e tudo parava no final da tarde para um sorvete e outras guloseimas menos legais. O chão era de tábuas corridas e rangia. O banheiro tinha um pequeno nicho a São Jorge, Iemanjá, Buda e Shiva. Num extremo do sobrado, ficava o santo dos santos: o escritório dos donos, um inglês e um americano muito festeiros.
Só os chefes – Luís Carlos Maciel, editor, Lapi, diretor gráfico – tinham acesso a ele. Fui lá uma vez: assinaram minha carteira de trabalho estalando de nova, a primeira anotação da minha vida.
No outro extremo, ficava a redação. A primeira sala era de Lapi. Parte do meu trabalho era manter Lapi feliz e sossegado, o que nem sempre era fácil considerando a noção vaga de "tempo", "prazo" e "pauta" que reinava na outra sala, um cômodo de janelas enormes, eternamente fechadas.
Este era o império de Ezequiel Neves, que às vezes respondia por Zeca Jagger e era, na verdade, o coração, a força motriz e o verdadeiro Shiva dançante de todo o sobrado. Zeca tinha uma juba encaracolada, um perpétuo bronzeado e uma lampadinha no pescoço. Várias vezes ao dia eu era chamada aos berros de "garotiiiiiiiiinhaaaaaaaaaa" ou "Aniiiiiinhaaaaaaa". Em geral, o que me aguardava era uma aula prática de jornalismo rock.
A crueldade que Zeca reservava aos grandes era comparável apenas à ternura que ele guardava para os pequenos. Nenhuma banda local era obscura demais, nenhum guitarrista principiante demais para merecer sua mais devotada atenção.
Seus acólitos nesse oficio eram Okky de Souza, com cachinhos de querubim barroco; o repórter volante Drope, sempre com um relato detalhado dos últimos acontecimentos; e o eternamente on the road Joel Macedo.
Se Zeca era a pilha, Maciel era o córtex cerebral do sobrado, pairando com uma calma zen sobre o festivo caos mal controlado que flutuava sobre as tábuas rangentes. Nenhuma crise – A polícia vai dar batida! A edição foi recolhida pela censura! Acabou o contrato com Jan Wenner! – era suficiente para abalar o Maciel.
Fora isso, Maciel sorria, tentava discutir com Zeca (impossível) e me ensinava o que eu pedia para aprender. Minhas tarefas consistiam inicialmente em marcar as laudas de matéria para a gráfica, recolher o material de ilustração, manter Lapi feliz e responder às cartas dos leitores, o que era quase uma psicanálise.
Como eu sabia muito bem, os leitores se julgavam donos da revista, sócios, conspiradores. E eram. Dois escreviam quase toda semana: uns tais Jamari França e José Emílio Rondeau. Eu reclamava com Maciel: esses caras estão monopolizando as cartas!
Durou um ano, exatamente: o ano de 1972. O último disco que recebemos foi Acabou Chorare, dos Novos Baianos. Lembro dos janelões finalmente abertos, um poente lindo de começo de verão entrando por cima das copas das amendoeiras, o disco rodando na vitrola do Zeca. Todo mundo ouvindo os Novos Baianos dizerem que tudo ia ficar lindo, a gente sabendo que a revista estava condenada e Zeca dizendo: "Mas garotinhos, vai ser um verão demais!".
Durou um ano exato.
Foi mais que o primeiro ano do resto da minha vida.
Foi o primeiro ano completamente feliz da minha vida.
por Antônio do Amaral Rocha
(texto publicado originalmente na Rolling Stone BR em Outubro de 2006
e cedido para republicação no portal Digestivo Cultural)
O tempo era outro. Exatamente há 35 anos, a primeira versão da Rolling Stone era lançada no Brasil. Durou dois verões, exatas 36 edições. Apesar da ditadura em que vivíamos, a revista divulgava assuntos que "faziam a nossa cabeça". Seus 30 mil leitores, se tanto (eu entre eles), sentiam-se vingados da gorilada que queria fazer o Brasil marchar em ordem unida. Não vivíamos apenas de sexo, drogas, e rock'n'roll, pode crer. Naqueles tempos, a Rolling Stone ensinava uma nova maneira de falar, de escrever, de pensar e se relacionar com tudo. Esta é uma memória daquele tempo, apesar dos pesares, feliz. Afinal, "eu já estou com o pé nessa estrada..."
A década de 70 começou em 68 ou em 69? Imprecisão histórica? Talvez a imprecisão seja a tônica deste texto, pois ele caminha num fio de navalha. E nada mais traiçoeiro que registro embaçado, feito a partir da lembrança.
Maio de 68, as barricadas de Paris: a juventude estudantil e o operariado saem às ruas enfrentando o poder estabelecido. No Brasil: barra pesada, ditadura. Como numa onda, a juventude pensa criticamente. Passeata dos Cem Mil, congressos estudantis, prisões de estudantes e trabalhadores. Em 1969, nada será como antes. Se até 1968 a busca de um novo modo de viver considerava a mudança na forma de se fazer política, em 1969 isso já não estava no horizonte. A arte passou a moldar o comportamento. Buscou-se um modo de viver mais simples, mais próximo da natureza, longe da máquina avassaladora da tecnologia, que naquela época ainda engatinhava.
Naquele ano, Peter Fonda e Dennis Hopper filmaram Easy Rider — Sem Destino, aventura de dois jovens americanos que em suas motocicletas saem em busca da liberdade. Apesar do final deprimente (os dois servem de alvo para a pontaria de rancheiros), ganhou ovação em Cannes e recebeu indicações para o Oscar nas categorias de Melhor Ator Coadjuvante (Jack Nicholson) e Melhor Roteiro Original. O filme fazia o elogio da liberdade, com trilha sonora da pesada, como dizíamos na época: Steppenwolf, Jimi Hendrix, The Byrds, The Band, Bob Dylan. Em Sem Destino, assim como na sociedade americana, a violência já se fazia presente: cocaína e armas. Muitos de nós, meninos ingênuos, talvez não quiséssemos enxergar.
Em Bethel, perto de Nova York, numa fazenda, acontece o festival de Woodstock, de 15 a 17 de agosto. Público esperado: 50 mil pessoas. Comparecimento: 500 mil. Foi filmado e lançado em 1970, como Woodstock — Three Days of Peace & Music. O festival foi um big evento comercial (mas ninguém queria saber), com a presença de vinte bandas e artistas solos, entre eles, Jimi Hendrix, The Who, Creedence, Joe Cocker, Richie Havens, Santana, Joan Baez.
Em 6 de dezembro, os Rolling Stones vão a Altamont (Califórnia) para uma apresentação ao ar livre. Antes de subirem ao palco, já havia problemas. A "segurança" do show estava sob a responsabilidade dos Hell's Angels de São Francisco, uma gangue de motoqueiros anti-flower power, armados com tacos de baseball. Qualquer maluquinho que tentasse subir ao palco era agredido. Durante a apresentação do Jefferson Airplane, que antecedeu os Stones, muitos já haviam sido carregados para atendimento nos postos da Cruz Vermelha, em bem maior número que os médicos podiam dar conta. Quando os Stones entraram, a multidão ficou histérica, e os Hell's Angels entraram em ação. Durante a execução de "Under My Thumb", um jovem negro, Meredith Hunter, foi assassinado com uma punhalada nas costas. Mick Jagger percebeu alguma coisa estranha acontecendo, mas não sabia exatamente o quê.
No dia seguinte, os Stones descobriram que quatro pessoas haviam morrido. Há versões de que Meredith foi agredido pelos Angels por estar acompanhado de uma loira, mas soube-se depois que ele portava um revólver. O assassino, Alan Passaro, foi julgado e inocentado por legítima defesa. O emblemático acontecimento está registrado no filme Gimme Shelter. Convenhamos, havia algo de podre naquele reino: armas num concerto de rock? Em plena era flower power! "The Rolling Stones, disaster at Altamont: Let it bleed", dizia a capa da edição 50 da Rolling Stone norte-americana, datada de 21 de janeiro de 1970. Fazer um paralelo entre a violência em Sem Destino e o concerto de Altamont não é nenhum exagero, apesar do rock. Talvez nossa ingenuidade não permitisse.
Em 1968, a vida no interior de São Paulo era uma modorra. Nada de mais acontecia. Música, só pelo rádio, com seus chiados AM. Beatles, muito Beatles, The Mamas & The Papas e sucessos comerciais. E tome Jovem Guarda. "Menina linda eu te adoro, oh! Menina pura como a flor, sua boneca vai quebrar, mas viverá o nosso amor" (versão de "I Should Have Known Better", de Lennon e McCartney), e TV na casa do vizinho, aqueles programas de sábado à tarde. Ecos da violência política, não sei como, ficávamos sabendo. "Se o Marighela aparecer por aqui pedindo ajuda, eu o escondo, nem que seja no paiol dos cabritos", pensava. Mas ele nunca apareceu. Colegial, teatro amador, viagens pelas cidades da redondeza, paqueras, papos, gamação, sexo (mas como fazê-lo?). Ninguém dava pra gente, só prostituta em rendez-vous. Namorada? Nem pensar, só mão-boba e olha lá. Perigava a menina querer fazer você prometer casamento. Comigo aconteceu e o namoro acabou.
Não sei como, em junho de 1969, apareceu nas mãos do meu irmão Abel um exemplar do número 15 de O Pasquim. Trazia uma entrevista com Elis Regina. Senti alguma coisa diferente naquelas páginas. Humor tipicamente carioca-ipanemense, se bem que eu nem sabia o que era Ipanema naquela época. Em novembro, na edição 22, apareceu a famosa entrevista "asteriscada" com a nossa musa Leila Diniz. Bonita, gostosa, linguaruda, Leila falou sobre homens, sexo, comportamento, censura... Entre outras coisas, ela dizia que "trepava de manhã, de tarde e de noite". Não tinha como não amar uma mulher daquelas. Todos os palavrões, em mais um lance de humor, mas nem tanto, foram substituídos por asteriscos. Apesar de alguns trechos ilegíveis, a entrevista motivou a criação da Lei de Censura Prévia, apelidada de Decreto Leila Diniz. Quando Leila morreu num desastre de avião, em 14 de julho de 1972, aos vinte e sete anos, no auge da fama e beleza, ao saber da notícia, me tranquei no fétido banheiro da gráfica onde trabalhava e chorei.
De O Pasquim, o importante é destacar um jornalista em especial: Luiz Carlos Maciel, também dramaturgo, roteirista de cinema, filósofo, poeta e escritor. "Em 1969 estávamos mais ou menos ao Deus-dará. O sonho havia acabado, não se tinha o que fazer ou para onde ir, formava-se o vazio histórico e existencial onde medraram a luta clandestina e o desbunde...", disse ele em seu livro Os anos 60. O sonho duraria mais dois anos, tempo suficiente para Maciel nos colocar em contato com assuntos e temas inéditos. Sua coluna Underground, de 1969 a 1971, divulgou os movimentos alternativos que eclodiam no mundo e a importância que isso tinha. Com formação de filósofo, Maciel podia entender e justificar as razões daquelas manifestações. Temas como Romantismo, Surrealismo, Marxismo e Existencialismo sartreano eram usados para explicar o hinduísmo, o embate Oriente-Ocidente, o flower power, a vida em comunidade, a revolução sexual, o desbunde hippie, a metafísica, os shows de rock, a contestação, a antipsiquiatria, a antipsicanálise, as idéias antenadas com pensamentos de uma "nova era", a nova percepção da realidade por meio das drogas (maconha, peiote, mescalina e LSD), a bruxaria, a era de Aquarius (que parece, ainda não chegou) e a literatura da beat generation (Allen Ginsberg, Jack Kerouac, Gregory Corso, William Burroughs).
Idéias de pensadores "sérios" como Reich, Allan Watts, Timothy Leary, Norman O'Brown, Marcuse eram constantes na coluna de Luiz Carlos Maciel, assuntos denominados genericamente de "contracultura". Maciel devia se sentir muito só naquele ambiente, já que contracultura no Brasil soava como algo exótico, uma curiosidade americana, subjetiva e individualista para os ideólogos da esquerda tradicional. Diz Maciel: "A coluna Underground sumiu do Pasquim quando Tarso de Castro foi alijado do cargo de editor chefe e substituído por seu desafeto Millôr Fernandes. Millôr detestava essa história toda de contracultura, cabeludos, rock e, principalmente, baianos tropicalistas. O Underground foi descartado e eles fizeram até uma campanha contra os 'baihunos', que era como chamavam Caetano e Gil. Os caras do Pasquim eram muito conservadores, embora desaforados. O único sensível à nova visão era o Tarso de Castro. Foi ele, aliás, quem inventou a coluna Underground, porque sabia que eu me interessava pelo assunto". Reflexão: se 1968 foi o clímax do pensamento crítico, 1969 inaugura o desbunde, uma negação dessa rigidez.
Fazer 17 anos em 1970, naquele interior perdido no mapa, não era mole. Imagino que aquela urbe só existisse porque por lá passa uma estrada importante. E as cidades crescem à beira de uma estrada. E a estrada virou uma fixação. "Adeus, vou pra não voltar". Já que não dava pra sair, ficava. "Caminhando contra o vento sem lenço e sem documento...". Até o dia em que um cinema de uma cidade próxima anunciou a projeção de Woodstock. Perco o trem, volto a pé, mas não posso deixar de ver. E o que vi naquelas três horas foi veneração, missa leiga, ritual orgiástico, revelação, pura epifania! O cinema quase vazio era pequeno para tanta felicidade. Fiz uma coisa boba: anotei a seqüência das bandas, querendo segurar aquele momento para sempre, sem me dar conta de que poderia rever o quanto quisesse. Não tinha consciência de que aquilo já era História. Finalmente o rock, o flower power se manifestando na minha cara sem meias tintas. O rock existia, não era mais citação em jornal. Estava ali em som estéreo e em cores.
Se a coluna Underground deixou de existir, criou-se outro espaço de maior tamanho e com dedicação exclusiva. Nasce Flor do Mal, mais uma de Maciel, agora com Rogério Duarte, Tite de Lemos e Torquato Mendonça. Todo "composto" à mão, trazia na capa, emoldurada com vinheta simulando espinhos, um texto de Baudelaire sobre a imprensa. No centro, a imagem de uma garota negra sorrindo. Maciel declarou que "na Flor podia se fazer o que desse na veneta". Foi o primeiro jornal totalmente contracultural brasileiro e o mais lembrado. Durou cinco números, mas em novembro de 1971, um sabiá me cantou que Luiz Carlos Maciel iria liderar uma nova aventura: a Rolling Stone americana seria publicada por aqui.
A aventura no Brasil começou com um físico nuclear inglês, Mick Killingbeck, que após visitar o país a trabalho, juntou alguns amigos (Stephen Banks, Stephane Gilles Escate e Theodore George), adquiriu os direitos de publicação da Rolling Stone por aqui e convidou Maciel a entrar no barco. "Mick Killingbeck foi quem inventou aquela Rolling Stone brasileira. Foi ele quem negociou os direitos da Rolling Stone americana e, depois de sondar o mercado, me escolheu pra editar a versão brasileira por causa de minha coluna Underground no Pasquim", lembra Maciel. Os verões de 1971 e 1972 foram tempos de muita alegria para todos nós. E a Rolling Stone esteve presente nele durante 14 meses. "Ser o editor de uma revista era um sonho meu que realizei. Acho até que tinha jeito pra coisa e lamento que não tenha tido a oportunidade de repetir a dose. Foi uma das experiências melhores e mais úteis, um dos períodos mais felizes da minha vida", disse Maciel.
A edição zero da Rolling Stone foi lançada em novembro de 1971. Entre os destaques, Gal Costa na capa e no miolo e uma matéria sobre uma onda de new religion que acontecia em San Francisco. Trinta e seis edições foram publicadas em menos de um ano, de 1º de fevereiro de 1972 a 5 de janeiro de 1973. Desde "Caetano está entre nós" até "Brasil 73: Nova Consciência". 13 meses, dois verões de contracultura, rock, toque e notas ligadas. Nesse período, ficamos sabendo de tudo o que acontecia no mundo underground: comportamento, lançamentos de discos, concertos, bandas novas, teatro, literatura, cinema, o que iria ou não dar certo. Aprendemos uma forma mais descontraída de pensar, escrever e falar. Transávamos tudo, sendo que nesse tempo transar significava fazer tudo, se relacionar com tudo, não tinha só o sentido sexual. Ler a Rolling Stone era estar antenado com o mundo, não importava onde você estivesse. Aliás, quanto mais longe do centro cosmopolita, melhor. Você podia olhar para o céu e ver as estrelas, sentir o cheiro do sereno, e se tivesse uma ajuda alucinógena, viajar. E essa viagem poderia se dar sem sair do lugar.
Hoje, o racionalismo não permite entender aquela proposta, mas naquele verão, não havia dúvidas. A cena musical que começou com o fantástico disco de Gal Costa (A todo vapor) terminou com o lançamento de um encontro antológico registrado ao vivo: Chico Buarque e Caetano Veloso juntos. Nada poderia ser melhor. "1972 acabou sendo um ano de total redenção da música brasileira", dizia um dos editoriais da Rolling Stone. Mas, desde o número 34, algo de estranho estava acontecendo. "A Rolling Stone americana cobrava royalties que nunca foram pagos. Depois de não sei quantos meses, eles pararam de nos mandar material — fotos e textos que vinham todas as quinzenas. A partir daí, tínhamos que simplesmente roubar — o que não nos incomodava, pois éramos alternativos e acreditávamos na propriedade coletiva de tudo. Por idéia do Lapi (ilustrador e editor de arte) ou do Joel Macedo ou de ambos, a confissão "Pirata" passou a aparecer abaixo do logotipo. A pirataria era um valor positivo na contracultura", diz Maciel.
Os editores pediam aos leitores que tivessem paciência, como dizia a nota "Rolling rolando", publicada na edição 36: "Mais uma vez fomos obrigados a mudar o dia da saída do Rolling Stone nas bancas. Vamos ver se dá pra segurar. Se não der, vocês — please, please, — segurem por nós mais uma vez". No mesmo número, um comunicado da Phonogram, assinado por André Midani, dizia: "A quem interessar possa. Declaramos que temos o maior interesse em que o trabalho desenvolvido pela revista Rolling Stone, no ano de 1972, prossiga com a mesma ênfase durante o ano de 1973. Sendo a única revista especializada na rock music e na pop music, consideramos indispensável que as companhias gravadoras e as indústrias eletrônicas dêem o devido apoio a esse empreendimento".
Parecia um réquiem. Seria o fim? Renovei minha assinatura e escrevi uma carta, não me lembro bem o conteúdo, tentando dar uma força: "Oi, amizades, a revista não pode deixar de existir, estou aqui, não vivo sem ela, sou leitor, gosto, divulgo". Esta carta acompanhada de uma foto minha [acima], na beira de uma estrada, com mochila nas costas, nunca foi publicada. Aquele foi mesmo o último número da Rolling Stone no Brasil. Felizmente, a pedra continuou rolando até hoje.
por Antônio do Amaral Rocha
(texto publicado originalmente na Rolling Stone BR em Outubro de 2006
e cedido para republicação no portal Digestivo Cultural)
O tempo era outro. Exatamente há 35 anos, a primeira versão da Rolling Stone era lançada no Brasil. Durou dois verões, exatas 36 edições. Apesar da ditadura em que vivíamos, a revista divulgava assuntos que "faziam a nossa cabeça". Seus 30 mil leitores, se tanto (eu entre eles), sentiam-se vingados da gorilada que queria fazer o Brasil marchar em ordem unida. Não vivíamos apenas de sexo, drogas, e rock'n'roll, pode crer. Naqueles tempos, a Rolling Stone ensinava uma nova maneira de falar, de escrever, de pensar e se relacionar com tudo. Esta é uma memória daquele tempo, apesar dos pesares, feliz. Afinal, "eu já estou com o pé nessa estrada..."
A década de 70 começou em 68 ou em 69? Imprecisão histórica? Talvez a imprecisão seja a tônica deste texto, pois ele caminha num fio de navalha. E nada mais traiçoeiro que registro embaçado, feito a partir da lembrança.
Maio de 68, as barricadas de Paris: a juventude estudantil e o operariado saem às ruas enfrentando o poder estabelecido. No Brasil: barra pesada, ditadura. Como numa onda, a juventude pensa criticamente. Passeata dos Cem Mil, congressos estudantis, prisões de estudantes e trabalhadores. Em 1969, nada será como antes. Se até 1968 a busca de um novo modo de viver considerava a mudança na forma de se fazer política, em 1969 isso já não estava no horizonte. A arte passou a moldar o comportamento. Buscou-se um modo de viver mais simples, mais próximo da natureza, longe da máquina avassaladora da tecnologia, que naquela época ainda engatinhava.
Naquele ano, Peter Fonda e Dennis Hopper filmaram Easy Rider — Sem Destino, aventura de dois jovens americanos que em suas motocicletas saem em busca da liberdade. Apesar do final deprimente (os dois servem de alvo para a pontaria de rancheiros), ganhou ovação em Cannes e recebeu indicações para o Oscar nas categorias de Melhor Ator Coadjuvante (Jack Nicholson) e Melhor Roteiro Original. O filme fazia o elogio da liberdade, com trilha sonora da pesada, como dizíamos na época: Steppenwolf, Jimi Hendrix, The Byrds, The Band, Bob Dylan. Em Sem Destino, assim como na sociedade americana, a violência já se fazia presente: cocaína e armas. Muitos de nós, meninos ingênuos, talvez não quiséssemos enxergar.
Em Bethel, perto de Nova York, numa fazenda, acontece o festival de Woodstock, de 15 a 17 de agosto. Público esperado: 50 mil pessoas. Comparecimento: 500 mil. Foi filmado e lançado em 1970, como Woodstock — Three Days of Peace & Music. O festival foi um big evento comercial (mas ninguém queria saber), com a presença de vinte bandas e artistas solos, entre eles, Jimi Hendrix, The Who, Creedence, Joe Cocker, Richie Havens, Santana, Joan Baez.
Em 6 de dezembro, os Rolling Stones vão a Altamont (Califórnia) para uma apresentação ao ar livre. Antes de subirem ao palco, já havia problemas. A "segurança" do show estava sob a responsabilidade dos Hell's Angels de São Francisco, uma gangue de motoqueiros anti-flower power, armados com tacos de baseball. Qualquer maluquinho que tentasse subir ao palco era agredido. Durante a apresentação do Jefferson Airplane, que antecedeu os Stones, muitos já haviam sido carregados para atendimento nos postos da Cruz Vermelha, em bem maior número que os médicos podiam dar conta. Quando os Stones entraram, a multidão ficou histérica, e os Hell's Angels entraram em ação. Durante a execução de "Under My Thumb", um jovem negro, Meredith Hunter, foi assassinado com uma punhalada nas costas. Mick Jagger percebeu alguma coisa estranha acontecendo, mas não sabia exatamente o quê.
No dia seguinte, os Stones descobriram que quatro pessoas haviam morrido. Há versões de que Meredith foi agredido pelos Angels por estar acompanhado de uma loira, mas soube-se depois que ele portava um revólver. O assassino, Alan Passaro, foi julgado e inocentado por legítima defesa. O emblemático acontecimento está registrado no filme Gimme Shelter. Convenhamos, havia algo de podre naquele reino: armas num concerto de rock? Em plena era flower power! "The Rolling Stones, disaster at Altamont: Let it bleed", dizia a capa da edição 50 da Rolling Stone norte-americana, datada de 21 de janeiro de 1970. Fazer um paralelo entre a violência em Sem Destino e o concerto de Altamont não é nenhum exagero, apesar do rock. Talvez nossa ingenuidade não permitisse.
Em 1968, a vida no interior de São Paulo era uma modorra. Nada de mais acontecia. Música, só pelo rádio, com seus chiados AM. Beatles, muito Beatles, The Mamas & The Papas e sucessos comerciais. E tome Jovem Guarda. "Menina linda eu te adoro, oh! Menina pura como a flor, sua boneca vai quebrar, mas viverá o nosso amor" (versão de "I Should Have Known Better", de Lennon e McCartney), e TV na casa do vizinho, aqueles programas de sábado à tarde. Ecos da violência política, não sei como, ficávamos sabendo. "Se o Marighela aparecer por aqui pedindo ajuda, eu o escondo, nem que seja no paiol dos cabritos", pensava. Mas ele nunca apareceu. Colegial, teatro amador, viagens pelas cidades da redondeza, paqueras, papos, gamação, sexo (mas como fazê-lo?). Ninguém dava pra gente, só prostituta em rendez-vous. Namorada? Nem pensar, só mão-boba e olha lá. Perigava a menina querer fazer você prometer casamento. Comigo aconteceu e o namoro acabou.
Não sei como, em junho de 1969, apareceu nas mãos do meu irmão Abel um exemplar do número 15 de O Pasquim. Trazia uma entrevista com Elis Regina. Senti alguma coisa diferente naquelas páginas. Humor tipicamente carioca-ipanemense, se bem que eu nem sabia o que era Ipanema naquela época. Em novembro, na edição 22, apareceu a famosa entrevista "asteriscada" com a nossa musa Leila Diniz. Bonita, gostosa, linguaruda, Leila falou sobre homens, sexo, comportamento, censura... Entre outras coisas, ela dizia que "trepava de manhã, de tarde e de noite". Não tinha como não amar uma mulher daquelas. Todos os palavrões, em mais um lance de humor, mas nem tanto, foram substituídos por asteriscos. Apesar de alguns trechos ilegíveis, a entrevista motivou a criação da Lei de Censura Prévia, apelidada de Decreto Leila Diniz. Quando Leila morreu num desastre de avião, em 14 de julho de 1972, aos vinte e sete anos, no auge da fama e beleza, ao saber da notícia, me tranquei no fétido banheiro da gráfica onde trabalhava e chorei.
De O Pasquim, o importante é destacar um jornalista em especial: Luiz Carlos Maciel, também dramaturgo, roteirista de cinema, filósofo, poeta e escritor. "Em 1969 estávamos mais ou menos ao Deus-dará. O sonho havia acabado, não se tinha o que fazer ou para onde ir, formava-se o vazio histórico e existencial onde medraram a luta clandestina e o desbunde...", disse ele em seu livro Os anos 60. O sonho duraria mais dois anos, tempo suficiente para Maciel nos colocar em contato com assuntos e temas inéditos. Sua coluna Underground, de 1969 a 1971, divulgou os movimentos alternativos que eclodiam no mundo e a importância que isso tinha. Com formação de filósofo, Maciel podia entender e justificar as razões daquelas manifestações. Temas como Romantismo, Surrealismo, Marxismo e Existencialismo sartreano eram usados para explicar o hinduísmo, o embate Oriente-Ocidente, o flower power, a vida em comunidade, a revolução sexual, o desbunde hippie, a metafísica, os shows de rock, a contestação, a antipsiquiatria, a antipsicanálise, as idéias antenadas com pensamentos de uma "nova era", a nova percepção da realidade por meio das drogas (maconha, peiote, mescalina e LSD), a bruxaria, a era de Aquarius (que parece, ainda não chegou) e a literatura da beat generation (Allen Ginsberg, Jack Kerouac, Gregory Corso, William Burroughs).
Idéias de pensadores "sérios" como Reich, Allan Watts, Timothy Leary, Norman O'Brown, Marcuse eram constantes na coluna de Luiz Carlos Maciel, assuntos denominados genericamente de "contracultura". Maciel devia se sentir muito só naquele ambiente, já que contracultura no Brasil soava como algo exótico, uma curiosidade americana, subjetiva e individualista para os ideólogos da esquerda tradicional. Diz Maciel: "A coluna Underground sumiu do Pasquim quando Tarso de Castro foi alijado do cargo de editor chefe e substituído por seu desafeto Millôr Fernandes. Millôr detestava essa história toda de contracultura, cabeludos, rock e, principalmente, baianos tropicalistas. O Underground foi descartado e eles fizeram até uma campanha contra os 'baihunos', que era como chamavam Caetano e Gil. Os caras do Pasquim eram muito conservadores, embora desaforados. O único sensível à nova visão era o Tarso de Castro. Foi ele, aliás, quem inventou a coluna Underground, porque sabia que eu me interessava pelo assunto". Reflexão: se 1968 foi o clímax do pensamento crítico, 1969 inaugura o desbunde, uma negação dessa rigidez.
Fazer 17 anos em 1970, naquele interior perdido no mapa, não era mole. Imagino que aquela urbe só existisse porque por lá passa uma estrada importante. E as cidades crescem à beira de uma estrada. E a estrada virou uma fixação. "Adeus, vou pra não voltar". Já que não dava pra sair, ficava. "Caminhando contra o vento sem lenço e sem documento...". Até o dia em que um cinema de uma cidade próxima anunciou a projeção de Woodstock. Perco o trem, volto a pé, mas não posso deixar de ver. E o que vi naquelas três horas foi veneração, missa leiga, ritual orgiástico, revelação, pura epifania! O cinema quase vazio era pequeno para tanta felicidade. Fiz uma coisa boba: anotei a seqüência das bandas, querendo segurar aquele momento para sempre, sem me dar conta de que poderia rever o quanto quisesse. Não tinha consciência de que aquilo já era História. Finalmente o rock, o flower power se manifestando na minha cara sem meias tintas. O rock existia, não era mais citação em jornal. Estava ali em som estéreo e em cores.
Se a coluna Underground deixou de existir, criou-se outro espaço de maior tamanho e com dedicação exclusiva. Nasce Flor do Mal, mais uma de Maciel, agora com Rogério Duarte, Tite de Lemos e Torquato Mendonça. Todo "composto" à mão, trazia na capa, emoldurada com vinheta simulando espinhos, um texto de Baudelaire sobre a imprensa. No centro, a imagem de uma garota negra sorrindo. Maciel declarou que "na Flor podia se fazer o que desse na veneta". Foi o primeiro jornal totalmente contracultural brasileiro e o mais lembrado. Durou cinco números, mas em novembro de 1971, um sabiá me cantou que Luiz Carlos Maciel iria liderar uma nova aventura: a Rolling Stone americana seria publicada por aqui.
A aventura no Brasil começou com um físico nuclear inglês, Mick Killingbeck, que após visitar o país a trabalho, juntou alguns amigos (Stephen Banks, Stephane Gilles Escate e Theodore George), adquiriu os direitos de publicação da Rolling Stone por aqui e convidou Maciel a entrar no barco. "Mick Killingbeck foi quem inventou aquela Rolling Stone brasileira. Foi ele quem negociou os direitos da Rolling Stone americana e, depois de sondar o mercado, me escolheu pra editar a versão brasileira por causa de minha coluna Underground no Pasquim", lembra Maciel. Os verões de 1971 e 1972 foram tempos de muita alegria para todos nós. E a Rolling Stone esteve presente nele durante 14 meses. "Ser o editor de uma revista era um sonho meu que realizei. Acho até que tinha jeito pra coisa e lamento que não tenha tido a oportunidade de repetir a dose. Foi uma das experiências melhores e mais úteis, um dos períodos mais felizes da minha vida", disse Maciel.
A edição zero da Rolling Stone foi lançada em novembro de 1971. Entre os destaques, Gal Costa na capa e no miolo e uma matéria sobre uma onda de new religion que acontecia em San Francisco. Trinta e seis edições foram publicadas em menos de um ano, de 1º de fevereiro de 1972 a 5 de janeiro de 1973. Desde "Caetano está entre nós" até "Brasil 73: Nova Consciência". 13 meses, dois verões de contracultura, rock, toque e notas ligadas. Nesse período, ficamos sabendo de tudo o que acontecia no mundo underground: comportamento, lançamentos de discos, concertos, bandas novas, teatro, literatura, cinema, o que iria ou não dar certo. Aprendemos uma forma mais descontraída de pensar, escrever e falar. Transávamos tudo, sendo que nesse tempo transar significava fazer tudo, se relacionar com tudo, não tinha só o sentido sexual. Ler a Rolling Stone era estar antenado com o mundo, não importava onde você estivesse. Aliás, quanto mais longe do centro cosmopolita, melhor. Você podia olhar para o céu e ver as estrelas, sentir o cheiro do sereno, e se tivesse uma ajuda alucinógena, viajar. E essa viagem poderia se dar sem sair do lugar.
Hoje, o racionalismo não permite entender aquela proposta, mas naquele verão, não havia dúvidas. A cena musical que começou com o fantástico disco de Gal Costa (A todo vapor) terminou com o lançamento de um encontro antológico registrado ao vivo: Chico Buarque e Caetano Veloso juntos. Nada poderia ser melhor. "1972 acabou sendo um ano de total redenção da música brasileira", dizia um dos editoriais da Rolling Stone. Mas, desde o número 34, algo de estranho estava acontecendo. "A Rolling Stone americana cobrava royalties que nunca foram pagos. Depois de não sei quantos meses, eles pararam de nos mandar material — fotos e textos que vinham todas as quinzenas. A partir daí, tínhamos que simplesmente roubar — o que não nos incomodava, pois éramos alternativos e acreditávamos na propriedade coletiva de tudo. Por idéia do Lapi (ilustrador e editor de arte) ou do Joel Macedo ou de ambos, a confissão "Pirata" passou a aparecer abaixo do logotipo. A pirataria era um valor positivo na contracultura", diz Maciel.
Os editores pediam aos leitores que tivessem paciência, como dizia a nota "Rolling rolando", publicada na edição 36: "Mais uma vez fomos obrigados a mudar o dia da saída do Rolling Stone nas bancas. Vamos ver se dá pra segurar. Se não der, vocês — please, please, — segurem por nós mais uma vez". No mesmo número, um comunicado da Phonogram, assinado por André Midani, dizia: "A quem interessar possa. Declaramos que temos o maior interesse em que o trabalho desenvolvido pela revista Rolling Stone, no ano de 1972, prossiga com a mesma ênfase durante o ano de 1973. Sendo a única revista especializada na rock music e na pop music, consideramos indispensável que as companhias gravadoras e as indústrias eletrônicas dêem o devido apoio a esse empreendimento".
Parecia um réquiem. Seria o fim? Renovei minha assinatura e escrevi uma carta, não me lembro bem o conteúdo, tentando dar uma força: "Oi, amizades, a revista não pode deixar de existir, estou aqui, não vivo sem ela, sou leitor, gosto, divulgo". Esta carta acompanhada de uma foto minha [acima], na beira de uma estrada, com mochila nas costas, nunca foi publicada. Aquele foi mesmo o último número da Rolling Stone no Brasil. Felizmente, a pedra continuou rolando até hoje.
No comments:
Post a Comment