Quando um país possui uma Indústria Editorial muito atuante e sempre movida pelo que está no prelo aguardando a hora de chegar ao público -- caso dos Estados Unidos, da Inglaterra e da França --, é perfeitamente natural que grandes livros sejam lançados no mercado, recebam críticas entusiasmadas, vendam relativamente bem, mas acabem esquecidos depois de algum tempo, para dar lugar a novos autores e novos lançamentos.
Só aqueles autores que viram bestsellers, ou aqueles que ganham o respeito da Academia -- tem ainda aqueles que optam por virar fuguras públicas num esforço promocional para seus trabalhos literários -- conseguem manter uma existência editoral mais perene.
Por sorte, esse mesmo mercado editorial que não hesita em escantear autores de gabarito com vários livros publicados, também se permite promover resgates de autores esquecidos de tempos em tempos.
Aconteceu, por exemplo, com Nathanael West e John Fante, que ninguém lia nem comentava mais em meados dos Anos 70, quando foram repentinamente resgatados, reavaliados e conduzidos ao panteão dos grandes autores americanos.
Agora acontece algo semelhante com John Edward Williams e seu romance "Stoner", esquecido por 50 anos e lançado ano passado no Brasil pela Editora Rádio Londres.
Numa literatura como a dos Estados Unidos, que passou boa parte do Século 20 glorificando o homem comum de classe média tentando lidar com o Sonho Americano enquanto busca pelo amor e pela felicidade, um personagem como William Stoner teria, em princípio, todos os pré-requisitos necessários para fazer coro com personagens clássicos de John Cheever e John Updike.
Mas talvez o anacronismo inevitável decorrente da influência forte da prosa clássica de Henry James e o brilho mínimo de William Stoner tenham acabado ofuscados pela excesso de sol e de cores que permeou a maioria da produção literária americana da segunda metade dos Anos 60, e alguma coisa tenha saído errado em termos mercadológicos.
"Stoner" foi o terceiro romance do professor, poeta e ensaísta John Edward Williams (1922-1994). Vendeu duas mil cópias na época em sua edição hardcover, mas, mesmo assim, não entusiasmou seus editores a apostar numa edição softcover, e menos ainda numa edição paperback.
Paradoxalmente, Williams ficaria conhecido nacionalmente por seu romance seguinte, "Augustus" (1972), um romance heróico clássico, radicalmente diferente de tudo o que ele havia escrito até então, e que lhe rendeu o National Book Award e vários outros prêmios naquele ano -- que infelizmente não o estimularam a escrever um quinto romance.
O grande pecado de "Stoner" na época, e que salta à sensibilidade dos leitores de hoje como sua maior virtude, é justamente sua narrativa intimista e sua capacidade de nos confrontar com a nossa pequenez de forma tão crua e serena através da figura de um apagado professor de Inglês que passa a vida inteira como professor assistente numa universidade do Missouri na primeira metade do século XX, sem conseguir ascender na carreira, e sempre devidamente preservado das desventuras da vida.
Por mais que as emoções vividas pelo personagem sejam intensas, elas são imediatamente contidas por ele próprio, retornando rapidamente à normalidade e proporcionando ao leitor uma empatia ao mesmo tempo carinhosa e angustiante.
Filho único, William Stoner vem de uma família extremamente pobre do Missouri, e é enviado pelos pais para a Universidade com muita dificuldade, certos de que esta seria a única herança que poderiam deixar para ele.
Seu conformismo existencial, no entanto, não permite que ele vá muito longe, e seu desconforto com sua magra e pálida figura não ajudam a reverter isso, como revela o trecho a seguir:
“Às vezes, observava-se ao espelho, o rosto comprido emoldurado pelo cabelo castanho seco, e tocava nas maçãs do rosto anguloso; via os pulsos finos, que saíam uns centímetros das mangas do paletó, e se perguntava se teria um ar tão ridículo aos olhos dos outros quanto aos seus.”
Stoner passa a se refugiar da vida na literatura. Não se alista para lutar na Primeira Guerra Mundial para prosseguir lecionando. A cada amor não correspondido, mergulha de cabeça na literatura para evitar o sofrimento. Todas as suas fragilidades são expostas ao leitor de forma tão intensa, e vem seguidas de atitudes tão tímidas da parte dele, que suas atitudes chegam a dar desespero no leitor. É um homem coberto por um manto de nostalgia e de ingenuidade, que se habitua a uma situação existencial nada confortável e não hesita em passar sua vida inteira refugiado da vida que deixou de viver por opção.
O que mais agonia o leitor desse romance sensacional é a perceber na figura triste de William Stoner a sensação de que cada minuto que passa é irrecuperável e que só talvez a grande literatura é capaz de captar e passar adiante essa sensação de brevidade.
Quem deu início ao resgate de "Stoner" e à ressurreição literária de John Edward Williams 15 anos atrás foi o escritor e ensaísta inglês Julian Barnes, que afirma que "o curioso de "Stoner" é que não se trata de uma obra à frente da sua época, pois o romance já era anacrônico quando foi publicado, mas o tempo permitiu ao livro escapar do rótulo de antiquado e alcançar o status de clássico sobrevivente ao teste do tempo, tornando-se um best-seller do tipo mais puro, motivado quase inteiramente pelo boca a boca entre os leitores.”
Nada mal para um romance que parecia ter sido escrito para um público extinto, e que acabou vitimado pelo desinteresse do mercado editoral por mais de quatro décadas, depois de cometer a ousadia de ser escrito nos Anos 60 ignorando por completo a "energia social" da época.
Da minha parte, lamento muito ter deixado 'Stoner" esperando na estante por mais de um ano, para lê-lo e recomendá-lo só agora -- mas, convenhamos: para um romance que ficou à deriva por 50 anos, 12 meses é mixaria.
STONER
John Williams
Editora Rádio Londres
Título original
STONER
314 Páginas
Capa Dura
Preço:
R$57,50
R$57,50
à venda na Realejo Livros
Av. Marechal Deodoro 2
Gonzaga - Santos SP
PS: Aproveito a deixa de "Stoner" e recomendo a todos o romance do amigo Alexandre Soares Silva, "A Alma da Festa", publicado pela Realejo Edições (Santos SP), possivelmente o único romance brasileiro passado em 1968 que não faz a menor menção ao AI-5.
Chico Marques devora livros
desde que se conhece por gente.
Estudou Literatura Inglesa
na Universidade de Brasília
e leu com muito prazer
uma quantidade considerável
de volumes da espetacular
Biblioteca da UnB.
Vive em Santos SP, onde,
entre outros afazeres,
edita a revista cultural
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