por Bruno Carmelo para ADORO CINEMA
Fernando (Fernando Alves Pinto) acaba de perder a esposa. Para retratar a dor do personagem, o roteiro coloca à disposição todos os símbolos clássicos do luto: ele dorme cheirando as roupas da amada, fica observando fotografias dos dois juntos, assiste a vídeos dos bons momentos do casal, organiza as joias e outros objetos pessoais dela. Um dia, descobre em uma das fitas que a esposa o traía. Transtornado, Fernando decide fazer o que qualquer macho dominador faria: encontrar o amante, matá-lo, seduzir a esposa dele e, se possível, seduzir a filha mais velha também.
O filme abre caminho para o protagonista realizar sua vingança sem muitos obstáculos. O filho de Fernando é convenientemente retirado da história (ele vai passar alguns dias na casa da tia, sabe-se lá por quanto tempo), o trabalho de fotógrafo é esquecido, o adversário é encontrado em poucas horas e seguido com facilidade: Fernando caminha a poucos metros de distância do inimigo, em uma rua vazia, mas não é percebido por ele. Ao invés de construir a tensão esperada da vingança (será que o plano vai dar certo?), o diretor Aly Muritiba trabalha com uma transparência espantosa: o inimigo, veja só, está alugando um quartinho nos fundos de casa, perfeito para Fernando alugar e se aproximar da família dele.
As conveniências da narrativa fazem de Para Minha Amada Morta algo muito diferente de outros suspenses com intrusos destinados a implodir famílias ou casais alheios. Ótimas produções como O Lobo Atrás da Porta, A Faca na Água, Teorema e Dentro da Casa funcionavam na base da progressão lenta e asfixiante: a presença do estrangeiro era cada vez maior, e o perigo cada vez mais palpável, até um inevitável confronto. Já o filme paranaense elimina a violência eminente: Fernando atravessa os dias com uma apatia insuspeita. Nada indica que este homem vai de fato colocar seus planos em prática: nem o roteiro (a pá na mão nunca parece destinada ao inimigo, a cena sobre o telhado não se transforma em ameaça), nem a atuação vaga de Fernando Alves Pinto. Esta é uma obsessão morna.
Outro problema é a dificuldade em desenvolver a narrativa. Na falta de conflitos construídos pela imagem, Aly Muritiba aposta em diálogos explicativos para fazer a história de Fernando progredir. Quando os dois homens estão conversando, em uma longa cena noturna, eles admitem rapidamente seus problemas, seus segredos, e fornecem todas as informações necessárias ao espectador. O roteiro não está aberto a sugestões, insinuações, metáforas: tudo é revelado de modo direto e frontal. É curioso que o cineasta trabalhe com a estrutura clássica do suspense, mas negue ao filme a tensão e opacidade típicas do gênero.
No mesmo festival de Brasília em que foi apresentado Para Minha Amada Morta, outro filme de Aly Muritiba foi mostrado ao público: o curta-metragem Tarântula. A ótima história continha todos os elementos ausentes no longa: planos inteligentes e sugestivos, fotografia claustrofóbica, personagens dúbios, ameaça crescente. Prova de que o diretor sabe bem como obter esses efeitos, mas talvez tenha preferido manter seu primeiro longa nas rédeas do drama tradicional. Pelo menos a conclusão é eficiente, e a produção serve para revelar o talento da atriz Giuly Biancato, ótima no papel da filha mais velha. Mesmo que o filme nunca apresente o momento de explosão anunciado desde o início, ele ainda desperta curiosidade quanto à próxima produção do diretor, que certamente possui o talento necessário para manipular as regras do gênero e as ferramentas da linguagem cinematográfica.
UM FILME DE SUSPENSE SURPREENDENTE
por Robledo Milani para PAPO DE CINEMA
Esteta preocupado tanto com a forma quanto com o conteúdo, Aly Muritiba dá seu passo mais ousado até o momento com Para Minha Amada Morta, seu longa de estreia no formato ficcional. Realizador consagrado com diversos dos seus curtas anteriores – A Fábrica (2011) foi premiado em Brasília, Pátio (2013) concorreu em Cannes e Tarântula (2015) foi exibido em Veneza – teve sua primeira experiência em uma narrativa mais longa na co-direção de Circular (2011), realizado em parceria com Fábio Allon, Bruno de Oliveira, Adriano Esturilho e Diego Florentino. Agora, no entanto, assume sozinho o desafio, e consegue não apenas dar conta de um roteiro muito bem amarrado, como também se revela um hábil diretor de atores, aqui envoltos em uma trama de bastante entrega e imersos em um clima imprescindível à história a ser contada.
UM FILME DE SUSPENSE SURPREENDENTE
por Robledo Milani para PAPO DE CINEMA
Esteta preocupado tanto com a forma quanto com o conteúdo, Aly Muritiba dá seu passo mais ousado até o momento com Para Minha Amada Morta, seu longa de estreia no formato ficcional. Realizador consagrado com diversos dos seus curtas anteriores – A Fábrica (2011) foi premiado em Brasília, Pátio (2013) concorreu em Cannes e Tarântula (2015) foi exibido em Veneza – teve sua primeira experiência em uma narrativa mais longa na co-direção de Circular (2011), realizado em parceria com Fábio Allon, Bruno de Oliveira, Adriano Esturilho e Diego Florentino. Agora, no entanto, assume sozinho o desafio, e consegue não apenas dar conta de um roteiro muito bem amarrado, como também se revela um hábil diretor de atores, aqui envoltos em uma trama de bastante entrega e imersos em um clima imprescindível à história a ser contada.
Aos poucos somos convidados a conhecer o mundo de Nando. Pai de um menino, estão sozinhos numa casa não muito grande, mas talvez imensa para eles. Leva seus dias arrumando vestidos, sapatos, revirando caixas e organizando armários. A esposa e mãe está morta, logo percebemos. Não há necessidade de saber quando, nem como, ela se foi. O que importa, agora, é como essa dupla seguirá em frente. E entre os pertences daquela que não mais está ali, encontram-se antigas fitas VHS. Recordações da infância, uma peça teatral na escola, uma apresentação de balé. Até se deparar com uma mais recente, ainda na filmadora. Com ela, uma revelação: a mulher, num quarto simples – provavelmente um hotel de ocasião? – acompanhada por outro homem. Ambos desnudos, na cama, registrando suas estripulias sexuais. Entre os dizeres, declarações de amor, “você foi a melhor coisa que me aconteceu”, gemidos de gozo. E assim, com um clique de um botão, o mundo de Nando desaba.
A ideia que passa pela cabeça de todos na audiência é a de vingança. Fotógrafo policial, nosso protagonista está acostumado a um cotidiano de barbáries, assassinatos, brutalidades. Com o registro em vídeo, descobre que o desconhecido com sua mulher é um ex-presidiário. Levanta a ficha do cara, e parte no seu encalço. Antes fecha a casa, entrega o filho para a cunhada e coloca sua vida de lado. Tem apenas um objetivo agora. Missão que é executava com paciência e método. O amante mora no subúrbio com a família, é crente e tem um quartinho nos fundos do quintal para alugar – onde Nando acaba indo parar, sob a desculpa de partilhar da mesma fé e precisar de pouso enquanto a esposa doente se recupera no hospital. Mas aos poucos suas cores vão sendo reveladas. Primeiro se aproxima da filha adolescente, que lhe rouba um cigarro, pede fotos “artísticas”, e até um flerte inconsequente se estabelece. Nada como a intimidade que aos poucos vai conquistando com a companheira do outro, mulher bonita, sofrida e calada, que com sua gentileza e simpatia aos poucos conquista, mas sem arrebatamentos. E por fim o próprio dono da casa, que sente que há algo de estranho, sem, no entanto, conseguir precisar o que, exatamente, está lhe incomodando.
Muritiba é eficiente em criar momentos de alta tensão sem, no entanto, resvalar no óbvio. É o menino que brinca com uma arma de fogo enquanto o pai está caído no sofá adormecido, o acuado que corta uma laranja com uma faca afiada e com o caçula do oponente no colo, os dois homens em cima do telhado, um de costas para o outro, mas esse com a mão no ombro daquele, prestes a um empurrão que nunca chega a acontecer. O que Nando quer ali, ao se infiltrar naquela família? Descobrir o por quê de tudo que lhe aconteceu? Desvendar, talvez, quem era a mulher que acreditava conhecer? O que aquele bronco tão diferente dele poderia ter de melhor? É uma competição machista ou apenas uma curiosidade mórbida? Procurar e destruir, como numa novela banal, ou deixar uma marca mais profunda, indelével e resistente? Ao se conectar com cada um daqueles estranhos uma forma distinta, não estará ele também encerrando, enfim, um ciclo de sua vida e se preparando para o seguinte?
Ainda que o suspense seja o tom assumido na condução de Para Minha Amada Morta, o filme não se contenta em apenas transitar pelos elementos mais comuns ao gênero. Aly Muritiba, em uma demonstração de grande maturidade, consegue dotar sua narrativa de um viés mais adulto, identificando os clichês e deles se aproximando, apenas para negá-los, como se não mais os precisasse. Fernando Alves Pinto, em atuação arrebatadora, é fundamental na construção deste protagonista, um tipo soturno, mas que diz tanto com seu silencio a ponto de se tornar perturbador para aqueles que de suas intenções compartilham – nós do lado de cá da tela, portanto. E depois de passar por todas as etapas de sua própria dor, quando descobre que também outros precisam de um encerramento tanto quanto ele mesmo, consegue levantar a cabeça e seguir em frente, não sem antes ser justo com quem merece. Assim, de mente livre e corpo lavado, pode dar o próximo passo. Consigo e com os seus.
PARA MINHA AMADA MORTA
(2016, 114 minutos)
PARA MINHA AMADA MORTA
(2016, 114 minutos)
Direção e Roteiro
Aly Muritiba
Elenco
Fernando Alves Pinto
Mayana Neiva
Lourinelson Vladimir
Em cartaz no Cinespaço Miramar Shopping
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