Eram três e meia da tarde. Astrogildo ainda tinha duas pilhas de memorandos em cima da mesa pra carimbar e também completar umas planilhas no computador. Os colegas da repartição faziam planos para sair à noite. Não estava interessado na conversa dos outros, sabia que não o convidariam. Nem de sair ele gostava. Fazia muito tempo que não gostava de nada. Na verdade, já tinha se integrado quase que organicamente àquela instituição. Enfadonho, amorfo. Uma das colegas passou pela mesa de Astrogildo e derrubou uma das pilhas de memorandos. Nem pediu desculpa.
— Astrogildo, é a patroa na linha dois! — gritou um colega que sentava na mesa de trás. Astrogildo levantou a mão fazendo um sinal para que o colega passasse a ligação.
— Alô — atendeu desanimado.
— Astrogildo, tá me ouvindo?
— Sim, fala.
— Quando sair, vá ao supermercado e me traz ovos, leite, mas escuta, tá me ouvindo?
— Tô.
Enquanto a mulher falava, ele pegou o primeiro lápis à mão para anotar o que ela pedia. Mas a ponta do lápis quebrou justo quando começou a escrever. Não conseguindo encontrar outro lápis ou outra coisa, fez um esforço para guardar mentalmente a lista.
— Astrogildo, você me traz ovos, leite, mas leite desnatado, DES-NA-TA-DO, entendeu? Ah, e traz também café, bolachas, daquelas com recheio, pão de forma e manteiga com sal. Entendeu? Manteiga com sal!
— Precisa de mais alguma coisa?
— Não, só isso — respondeu a mulher desligando o telefone. Ele nem teve tempo de terminar a conversa.
Astrogildo começou então a recolher os papéis espalhados pelo chão. Alguns colegas passavam e pisavam nas folhas. Ninguém se importava. Depois de recolher tudo, voltou a carimbar. Assim passou a tarde, até as seis. Não teve tempo de preencher as planilhas. Bom, isso ficaria para segunda ou terça-feira. Recolheu os pertences, levantou, bateu o ponto e foi embora. A repartição ficava no oitavo andar daquele edifício no centro da cidade. Todo mundo se apressava em sair, lotando os elevadores, assim ele decidiu ir pelas escadas. Atravessou a rua e por sorte já vinha o ônibus, meio vazio. Ele pôde se sentar e ler o boletim de notícias da associação dos funcionários públicos. Quando estava quase chegando em casa, lembrou que tinha que ir ao supermercado. Resignado, deu meia-volta e desceu a avenida principal até quase perto de onde desceu do ônibus.
Ele e a mulher viviam no décimo andar. Era um apartamento de classe média-alta, de três quartos, espaçoso, com varanda na sala. Ela estava deitada na cama, vendo televisão e nem se importou em dizer nada ao marido. Ele foi à cozinha e começou a guardar as compras. De repente, a mulher apareceu e começou a inspecionar as sacolas.
— Porra, Astrogildo, o que foi que eu disse? Eu falei leite desnatado, Astrolgildo, e você compra essa merda! Porra, cara inútil, não sabe fazer nada direito! — ela esbravejou, batendo a porta da cozinha.
Astrogildo não disse nada, continuou com os afazeres. Preparou a refeição do dia seguinte. As suas refeições diárias costumavam ser bastante frugais, e essa não ia ser diferente. Cozinhou umas verduras ao vapor. Não pensou em fazer nada para a mulher. Ela já chamaria algum chinês ou uma pizza. A porta da geladeira estava forrada de imãs de disque-comida, opções não faltavam. Astrogildo então foi limpar o banheiro. O trabalho doméstico lhe entretinha. Quando terminou foi à sala assistir televisão. Nesse momento veio a mulher:
— Astrogildo, abaixa o volume que assim eu não posso dormir. Você sabe o quanto o barulho da televisão me irrita!
Ele respirou fundo e abaixou o volume, deixando no mínimo. Foi até o móvel-bar e preparou um amaretto com gelo. Não costumava beber, mas até curtia aquela solidão, desde a varanda da sala, vendo a cidade iluminada. Quem sabe em alguma daquelas luzes acesas, alguém realmente tinha uma vida.
Quando terminou o trago, voltou pra dentro, e ficou assistindo Concertos Noturnos até tarde. Era já bem entrada a madrugada quando decidiu se recolher. Ao entrar no quarto, a mulher dormia esparramada, roncando com a boca aberta. Uma figura patética. Astrogildo se aproximou do seu próprio lado da cama e pegou o travesseiro. Uma ideia sinistra lhe passou pela cabeça. Chegou mais perto da mulher e teve aquele ímpeto de sufocá-la com o travesseiro. Ele chegou bem perto, mas algo o fez parar. Aquela não era a sua índole. Respirou fundo, soluçou, e foi dormir em um dos outros quartos.
Segunda-feira, antes de fazer a barba, se olhou no espelho. Sentiu as costelas marcadas, parecia que ia definhando cada dia mais. Ele se barbeou e tomou um banho quente. Astrogildo era um homem de poucos luxos. Só fazia questão de ir bem asseado e perfumado. Borrifou um pouco do Armani pour homme no pescoço e nos braços. Às vezes, usava o Paco Rabanne, o clássico do frasco verde. Terminou de se vestir, pegou a pasta e a sacola com o almoço e foi embora, preparado para mais um dia.
Acabara de sentar quando o ramal interno tocou. Era a secretária do chefe do departamento. Ela disse que o chefe queria lhe falar. Astrogildo subiu até o décimo segundo andar. Esperou uns dez minutos até que o homem aparecesse. Este estava ocupado demais tomando um cafezinho com os chefes de outros departamentos.
— Bom-dia, Astrogildo, sente-se, por favor — cumprimentou o chefe.
— Bom-dia.
— Astrogildo, estamos fazendo um remanejamento de pessoal na repartição e decidimos que você vai baixar ao térreo, no setor de Atendimento ao Público, por uma temporada, até que venha o pessoal novo que passou no último concurso.
— Eu, no atendimento?
— Você é um dos que estão aqui há mais tempo, conhece tudo e esse trabalho melhor que a tua própria casa. As palavras do chefe não deixavam de ser verdade.
— Quando começo?
— Hoje.
— Hoje?
— Sinto muito. Levantaram-se. Na porta, o chefe deu-lhe um tapinha nas costas:
— Vai fundo, Astrogildo.
Tinha que descer ao Atendimento ao Público. Mas antes passou pelo oitavo andar, pegou as coisas, tomou um café da máquina e nem se despediu de ninguém. Ele tinha exercido essa função quando começou a carreira como funcionário público. Isso fazia já quase vinte e cinco anos. Não deveria ter mudado muito. Mal teve tempo para se acostumar ao novo expediente. Já havia gente fora esperando que a repartição abrisse e às nove e meia foram entrando os primeiros. De repente, a fila que estava fora, estava dentro do saguão térreo. Carimbos, papéis, formulários, requerimentos, petições. A coisa só acalmou quase às duas, quando o atendimento estava por terminar. Astrogildo estava concentrado lendo uns papéis, quando sentiu a presença de alguém no balcão. Levantou a cabeça e viu uma jovem. Por dois breves segundos eles se olharam mutuamente. Ele se levantou para atendê-la.
Alta, cabelo castanho-claro com um cacheado suave. De olhos brilhantes, linda, ainda que estivesse vestida tão casual, com um legging preto, um moleton cinza do Mickey Mouse, uma jaqueta jeans e as nike air force brancas de cano alto. Não deveria ter mais de vinte anos. Mesmo longe, Astrogildo pôde sentir o perfume floral-atalcado que ela exalava.
— Eu queria dar entrada nesses papéis. É uma abertura de firma — ela se adiantou, entregando uma pasta recheada e tirando os headphones da cabeça.
Astrogildo pegou a pasta e começou a analisar os papéis. Olhou um por um.
— Lamento, senhorita, mas aqui falta muita coisa.
— Não, não pode ser.
Pacientemente, ele começou a explicar:
— Falta o formulário A21, o requerimento C36, o formulário D38; o formulário A14 tem que passar primeiro por aquela seção ali no fundo pra carimbar; e depois é preciso ir ao segundo andar para que carimbem o requerimento C36; e faltam também as fotocópias autenticadas dos RGs dos sócios da empresa e claro, todos estes formulários têm que estar com a firma reconhecida em cartório. Ah, e com tudo isso, você tem que levar o formulário A52...
— Você tá de zoeira, né?
— Lamento, mas não. Eu ia lhe recomendar que fosse ainda hoje carimbar o que falta, mas são já quase duas e o atendimento já vai fechar.
Ela franziu a testa.
— Bom, volto outro dia então — respondeu dando um suspiro.
Cuidadosamente, Astrogildo voltou a colocar os papéis na pasta e a devolveu à moça. Ela sorriu e foi embora. Ele ficou vendo como ela desaparecia pelo saguão e depois porta afora. O perfume atalcado continuava no ar.
Uns dois dias depois, ela voltou a aparecer. Sempre na mesma hora, quase no final do atendimento.
— Acho que dessa vez eu trouxe tudo.
Astrogildo ficou feliz em revê-la. Pegou a pasta e mais uma vez revisou os documentos.
— Eu sinto muito, mas ainda faltam coisas.
— Não acredito! Me disseram que tava tudo aqui.
— Quase tudo. Falta só o carimbo do formulário A14. Mas é uma e cinquenta e nove, você vem amanhã de novo um pouco mais cedo e dá tempo de terminar tudo — disse Astrogildo num tom quase paternal, guardando os documentos na pasta.
— Que remédio — suspirou a moça.
Ela avançou para pegar a pasta justo no momento em que Astrolgildo fazia menção para entregá-la. Por um capricho daquelas coisas que não estão ao nosso alcance, a mão de Astrogildo tocou por um brevíssimo instante a mão da jovem. Outra vez, como no primeiro dia, eles se entreolharam e dessa vez por mais de dois segundos. A moça apenas sorriu, se desvencilhou e foi embora. Astrogildo pensou se voltaria a vê-la. Talvez viesse outra pessoa entregar os papéis. Ela seria mais uma das centenas que iam e vinham à repartição. Ele então foi a um dos escritórios onde ficou organizando a papelada até o fim do expediente. Mas não pôde se concentrar. Era como se ainda sentisse aquele delicado toque de mãos.
Naquela tarde, ao chegar em casa, a mulher estava na cozinha. Ele mal pôde fechar a porta, quando a mulher começou:
— Cadê o meu frango? Porra, Astrogildo, cadê o meu frango? — gritou ela, batendo a porta da geladeira.
Astrogildo pôde sentir aquele som abafado da porta da geladeira batendo contra a borracha de vedação. Ele não tinha a menor ideia de onde estava a merda do frango, nem sabia que tinha um frango na geladeira. Ele preferiu se recolher ao quarto de hospedes, ler alguma coisa.
A sexta-feira começou nublada e fria. Outro dia na repartição. À uma e cinquenta e cinco, ela apareceu.
— Olá! Acho que hoje vai! — disse entregando a pasta.
Alguma coisa mexeu dentro dele. Ele pegou a pasta. Mais uma vez, analisou documento por documento.
— Sim, está tudo aqui!
— Que maravilha!
Astrogildo então preparou um protocolo de entrada, e a fez assinar uma das vias. Ela pegou a pasta vazia, a cópia do protocolo e foi embora. Já eram duas e dez, o atendimento ao público já estava fechado. Como era sexta-feira, Astrogildo podia ir pra casa. Quando saiu do edifício, chovia torrencialmente. Ele não tinha guarda-chuva e mesmo se tivesse pouco ia adiantar. Correu para se abrigar embaixo de uma das marquises. Não percebeu que ali já havia alguém. Quando levantou a cabeça, viu que era ela. No exato instante que Astrogildo se aproximou, a moça girou o corpo:
— Tomamos uma ali em frente? E assim nos protegemos da chuva.
Astrogildo não teve tempo de responder nada. Ela o puxou pela mão e com passos largos conseguiram entrar no bar. O local estava quase vazio. Se fosse outra sexta-feira, sem chuva, e mais àquelas horas, já estaria lotado. Ela chacoalhou os cabelos e a jaqueta e se sentou em uma das mesas. Astrogildo foi mais cerimonioso.
— Acho que você foi o primeiro funcionário público que foi bacana comigo, geralmente são todos mal-humorados — ela começou a conversa.
— Aquele primeiro dia em que você foi à repartição, foi o meu primeiro dia no atendimento — ele mesmo se surpreendeu de como estava puxando assunto.
— Você acaba de começar?
Astrogildo riu. Era a primeira vez que ria em anos.
— Não, são já vinte e cinco anos.
— Então quantos anos você tem?
— Quarenta e cinco, quase quarenta e seis.
— Quando eu nasci, você já tinha uns vinte e três.
— É, por aí, mais ou menos — Astrogildo estava feliz.
O garçom veio, ela pediu uma cerveja e ele um refrigerante de limão. Ela estranhou. Um careta, pensou ela, mas parece ser gente fina. E até que bonito.
— Meu nome é Lara e o seu?
— Astrogildo.
— Que nome antigo!
— É, eu sempre detestei... Em compensação o seu nome é lindo — disse timidamente.
A tarde foi passando. Lara acabara de se formar na faculdade e estava ajudando nos negócios do pai.
— Então você é uma burguesa.
— Eu? Eu não, eu não tenho nada em meu nome. Astrogildo a olhou pensativo.
— E você é um burocrata! — ela disse, rindo.
Ele deu uma gargalhada e deixou que ela conduzisse o papo. Preferia ver como ela era bonita e de conversa agradável. Não sentiu o tempo passar, ela o fazia sentir-se bem, aquela garota de família abastada, sem preocupações, com suas pulseiras e brincos de acrílico, que gostava de rock e pop. Ele sentiu vontade de beijá-la. E ao mesmo tempo se sentiu ridículo. Ela tinha uma das mãos pousada sobre a mesa. Ainda acanhado, ele lhe acariciou a mão. Lara percebeu as intenções e se aproximou com a cadeira e tomou a iniciativa. Astrogildo se deixou levar por aquele beijo, enquanto acariciava aquele cabelo suave. Eles então se levantaram e decidiram ir embora. A chuva já tinha passado, as poças d'água no asfalto refletiam a luz noturna. Foram até o ponto de ônibus, onde continuaram a se beijar. Passaram vários ônibus, mas nem Lara nem Astrogildo conseguiam se despedir. Outra vez ela o puxou pela mão e o levou a um pequeno hotel a umas três quadras de onde estavam.
Foi naquele hotel que Lara e Astrogildo fizeram amor pela primeira vez. Quase nus, na cama, em posição de lótus: De frente um para o outro, com as pernas entrelaçando os corpos. Lara olhou dentro dos olhos dele. Por muito tempo ela acreditou que a felicidade não poderia depender de outra pessoa. Mas não era momento para ser radical. Por um breve momento ela era a pessoa mais feliz que poderia haver. Ele gentilmente puxou uma das alças do sutiã de Lara. Ela sentiu os dedos dele escalando o seio esquerdo. Aquela sensação era algo que ela estava desejando desde o dia em que se descobriu apaixonada. Não pôde fechar os olhos, não queria fechar os olhos. Ele se aproximou e os seus lábios tocaram os lábios dela. Ela deixou que a beijasse. Os dedos de Lara passeavam pelo contorno do corpo dele. Não tinham limites, com ela, ele estava livre e era livre para fazer o que quisesse. Não foi a única vez nem a última. Quase todos os dias, na hora do almoço dele, tinham um encontro. Sempre quando ele entrava, ela já o estava esperando. Alguma vez ela o surpreendia. Tão logo ele abria a porta, o recebia com um beijo efusivo, abraçando-o com as pernas. Sem compromisso, sem cobranças, sem qualquer coisa que pudesse afetar a relação. Naquele quarto pequeno, só eles existiam.
Às vezes, surgia outro plano fora como aquela vez em que Lara o levou para jantar no restaurante japonês mais in da cidade. Ou quando ela o levou a uma festa dos colegas da faculdade. Aquela noite da festa foi curiosa. Era a primeira vez que Lara apresentava Astrogildo aos amigos. Em certo sentido, foi a primeira vez dele em muitas coisas. A primeira vez, depois de mais de vinte anos que ele vestia uma camiseta de um grupo de rock, a mesma que levava anos guardada no fundo da gaveta. Também a primeira vez que ele fumou um baseado. Naquela festa, Astrogildo desfilou o seu conhecimento musical, oculto por tanto tempo. Astrogildo ficou chapado e Lara o ajudou a entrar em um táxi.
Certa vez, quando estava se vestindo, ela disparou:
— Topas ir pro litoral comigo? Sexta que vem é feriado e podemos ir quinta à noite. Passamos o fim de semana juntos. Faz tempo que eu não vou e queria ir com você — ela terminou a frase abraçando ele por trás.
— Você sabe que eu não posso.
Uma lágrima escorreu pelo canto do olho de Lara. Ele se virou e viu a feição triste dela.
— Vou ver o que eu posso fazer. Mas não prometo nada.
Naquela noite em casa, Astrogildo disse à mulher que ia passar o feriado na casa do irmão no interior. Passou parte da noite preparando umas coisas para a viagem. Na manhã seguinte, desde o trabalho ele avisou a Lara que sim, iria ao litoral. Ela ficou feliz, mas não tanto como achava que deveria. Combinaram de se encontrar no centro, ali perto da repartição. Lara não costumava dirigir na cidade, mas pegou o carro para esse fim de semana.
A casa do litoral era um lugar realmente bonito. O imóvel em si misturava elementos modernos e coloniais, paredes envidraçadas. Tinha saída direta a uma praia semiprivativa e um jardim interior. Fazia muito tempo que a família de Lara não ia ali. Estava tudo com um aspecto lúgubre, acentuado pelo pó e areia que se acumulavam. Lara abriu as janelas e Astrogildo se prontificou a limpar. Já no fim da tarde a casa já parecia aquela casa que apareceu em diversas revistas de arquitetura e decoração nos anos 1970. Os dias ali no litoral passavam mais devagar. Sem pressa, sem trabalho, sem horários, sem nada que pudesse incomodá-los.
Certa vez, quando estavam sentados na areia depois do banho de mar, Astrogildo viu uma família com uma criança de uns cinco anos. O menino brincava na areia. Astrogildo sentiu algo por dentro e começou a chorar.
— O que houve, Gildo? — se preocupou Lara.
— Tem uma coisa que eu nunca te falei.
— O quê?
— Eu tive um filho, mas ele morreu.
Lara ficou desconcertada com a revelação. Astrogildo continuou:
— Era um menino tão bonito, inteligente, carinhoso. Ele tinha seis anos. Até que um dia ele cismou que queria uma motinho, dessas elétricas. A Bernadete, a minha mulher, disse que não, mas ele insistiu tanto que quando fez seis anos eu comprei a moto. Íamos ao parque e eu o ensinava como andar, depois de um tempo eu já o deixava andar sozinho. Um dia que ele foi um pouco mais rápido, capotou e bateu a cabeça no meio-fio. O levamos para o hospital, mas já não se podia fazer mais nada.
Lara o abraçou por atrás, como ela gostava de fazer, mas dessa vez bem apertado.
— Ela sempre me culpou pela morte do menino. Ela entrou em depressão e deixou de trabalhar. Eu, ao contrário, me concentrei no trabalho. Ela engordou e eu emagreci. Hoje somos como dois estranhos vivendo sob o mesmo teto.
Lara veio para a frente de Astrogildo, entrelaçando-o com as pernas. Se beijaram e se abraçaram forte. Ele lhe afagou o cabelo molhado. Ela também tinha algo que contar a Astrogildo, mas não sabia como. Realmente curtiam a companhia um do outro, e quando faziam amor era algo mágico. Jogada na cama, Lara fechou os olhos e respirou fundo. Não queria que aquilo terminasse nunca.
Ao voltar para casa, Astrogildo já tinha tomado uma decisão. Depois de tanto tempo, se dispôs a entrar no quarto do filho. Mais de dez anos o quarto continuava igual. Aquela era a parte proibida da casa. Astrogildo entrou com uma caixa de papelão e começou a recolher tudo o que havia naquele quarto. Fotos, brinquedos, roupas, objetos de decoração. Pouco a pouco ele foi desmontando o quarto do menino. Quando viu, a mulher ficou furiosa. No corredor, a mala de Astrogildo já estava preparada. Ele não respondeu aos ataques. Pegou a mala, pôs uma mochila nas costas e foi embora. Na rua, chamou um táxi até o hotel do centro.
Lara não apareceu aos encontros seguintes. Passou uma semana, duas semanas, e ela continuava sem aparecer. Naquele quarto vazio, Astrogildo tinha que aprender a viver sem o amor. Talvez ela mudasse de ideia. Sentiu-se miserável. Estar ali naquele quarto também não ajudava. Olhasse para onde olhassse, tudo lhe recordava Lara.
Quase um mês depois, Astrogildo já tinha retornado ao antigo posto de trabalho no oitavo andar. De volta à rotina, aos carimbos, aos papéis e às planilhas de Excel. Sair do hotel o ajudou animicamente. Pouco a pouco ele ia organizando o novo apartamento alugado, em outro bairro mais longe do centro. De vez em quando, ainda pensava em Lara e em como ele queria abraçá-la e sentir aquele perfume atalcado. O mensageiro da repartição apareceu com o malote de correspondência na mão e uma carta para Astrogildo. Ele pegou a carta, que era um cartão-postal da skyline de Manhattan vista desde o Brooklyn, à noite. Atrás, com uma caligrafia linda e estilizada, estava escrito: “I wish you were here.”
Juliana Rosano nasceu em Santos em 1978
e vive em Madrid há alguns anos.
Esse conto que vocês acabam de ler
é sua segunda colaboração para
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