Wednesday, March 30, 2016

NEGO ORLANDO (por Carlão Bittencourt)




“Quem diz, não mente,
na mão de um fraco
sempre morre um valente...”
(Nelson Cavaquinho)


Cidade de praia, maior porto da América do Sul, Santos foi pródiga malandros. Uma ilha cercada de um lado por uma espécie de malandragem antiga, romântica, até mesmo folclórica, que tinha por habitat natural a área próxima do cais.

Era uma gente brava, rude, sem medo da vida ou da morte. Gente que abriu seu caminho a navalha rumo à celebridade, com passagens marcadas pela crônica policial. Gente com ficha corrida, em lugar de biografia.

Gente do porte de Toninho Navalhada, China Show, Balu, Cabo Verde, Onça, Peixinho, Maneco Lalau, Simião, Nego Orlando e outros bambas.

Essa gente fez a fama e deitou na cama. Literalmente. Aliás, deitou e rolou. Principalmente nas docas, região mais conhecida como Boca. Essa gente merece homenagem. Porque também é gente nossa.

Nenhum daqueles bravos nasceu malandro. A vida se encarregou disso. Uma vida sem amor de mãe nem cafuné, sem escola nem recreio, sem estia. Vida dura. Vida madrasta. Vida sem outra saída que não fosse o caminho do porto, da rampa do mercado, dos cafofos das meretrizes, dos bares e boates das ruas General Câmara, João Octávio, João Pessoa e arredores.

Entre ser mais um joão-ninguém ou zé-mané, dos tantos que perambulavam pela cidade, cada um daqueles valentes preferiu merecer a alcunha de joão-valentão. E muitos mereceram. Mesmo.

Nego Orlando foi um deles. E dos maiores, sem trocadilho. Alto, forte, bom de perna (era um bailarino) e de braço, Orlando impôs um novo estilo de malandragem ao pedaço. Parecia igual aos outros, mas não era. Ele também vendia proteção aos inferninhos, prostíbulos, bares e restaurantes. Mas o fazia de um modo diferente. Sem alarde nem estardalhaço, na manha.

Ao menor sinal de barulho, desfilando com um sorriso simpático na cara, Nego Orlando simplesmente retirava o pretenso brigão da área sem esforço aparente. Onde ele estivesse não tinha briga. Nem confusão. Ponto final.

Assim, conquistou uma clientela fiel. Uma carteira de clientes, no entorno da Boca, de fazer inveja a muito malandro das antigas. O preço a pagar não demorou. Orlando sofreu atentados, encarou combates ferozes, desiguais, mas levou a melhor. Sempre.

Sua rixa com Toninho Navalhada, por exemplo, ficou famosa até na imprensa local. E dividiu a malandragem. Tinha quem torcesse por um, e por outro. Fanaticamente.

E havia até quem apostasse. Mas naquela guerra não correu sangue. Nem uma gota. Porque se o Toninho era Navalhada, o Nego era Orlando. E era mais ele. Aliás, muito mais, graças ao inseparável Smith & Wesson 38. Diante de um adversário de tal calibre, Toninho enfiou a navalha no saco. E pediu paz. Orlando seguiu em frente. Com seu gingado característico.

Todo dia, ou melhor, toda noite, ele dava plantão no Samba-Danças, o maior táxi-dancing de Santos. Alta responsabilidade. Ali, onde cada música dançada valia um picote no cartão da moça escolhida, Orlando reinava. Absoluto.

Bastava entrar no imenso salão (cujo piso de madeira brilhava mais do que a luzidia careca que ostentava), para que os pares se retirassem às respectivas mesas. Mas aquilo não era medo. Pelo contrário. Era sinal de respeito e admiração. Porque o negro era um dançarino incomparável, sem rival naquela pista ou em qualquer outra da cidade. Orlando era único. E sabia disso.

Certa vez, foi preso. E condenado. Mas não se abalou. Foi tirar seu tempo na Ilha Grande. Tranqüilo. Ele devia, tinha de pagar. Tudo corria bem até que houve uma revolta. Os presos se rebelaram, tomaram as armas dos guardas e resolveram atacar as casas e a escolinha onde estudavam os filhos daqueles pobres homens da lei. Orlando acompanhou a turba. E sentiu cheiro de sangue o ar. E de maconha, e de cachaça, e de estupro. Os bandidos iriam barbarizar.

Chegando à escola, Nego Orlando, faca na mão, pulou na frente dos agitadores. Mandou que parassem. Falou em alto e bom som. Aquele que desse um passo à frente seria morto. Por ele. A galera estacou. O homem não estava blefando. Seu rosto expressava uma terrível determinação. Ninguém teve peito de encarar a fera.

A coragem de Orlando salvou a vida da professora e das crianças. E, de quebra, também de alguns guardas. Como prêmio, teve sua pena suspensa. Foi anistiado. Voltou às ruas. E à liberdade da vida boêmia que tanto amava. Só não voltou a entrar em cana. Nunca mais. Malandro que é malandro sabe onde pisa. Para não tropeçar.

Muitos anos mais tarde, ainda enxuto e bem conservado, Nego Orlando estava num restaurante do bairro do Gonzaga, jantando calmamente com sua velha companheira de dança. E de vida. Iam pedir o cafezinho, quando um princípio de sururu estourou numa das mesas.

Um rapaz, que também estava acompanhado, discutiu com uma turma de homens mais velhos. Orlando prestou atenção. Viu que o jovem não se intimidou. Gostou daquilo. Depois, entendeu tudo. Um dos trintões havia dito um gracejo para a bonita garota. Daí o bate boca. Que logo se transformou em briga.

Seria um massacre. Seis homens feitos contra um jovem de vinte anos. Seria. Mas não foi. De cadeira nas mãos, o rapaz se preparou enfrentar aquela verdadeira horda de bárbaros. De repente, um negro ágil saltou no meio do grupo. Pernadas daqui, cabeçadas dali e, em questão de segundos, os seis valentes estavam estatelados na calçada. Em pé, Orlando avisou:


“Chega de brincadeira, vão desguiando.
Se alguém encarar, eu vou dar pra valer!”

O rapaz não acreditou no que viu. Os homens se levantaram e foram embora. Mudos. Depois é que reparou que o negro estava armado, quando ele sutilmente repôs o revólver na cintura.

O jovem se apresentou. Agradeceu a ajuda. Orlando levou o casal para sua mesa. Conversaram. Só então o rapaz ficou sabendo que estava diante do famoso Nego Orlando, uma lenda viva da noite de Santos. Falou que seu pai contava que era amigo dele.

Orlando sorriu, com certa vaidade. Depois, perguntou quem era o “velho” dele. O jovem disse. Orlando ficou sério, emocionado. E confessou:


“Quando eu estive preso, lá na Ilha Grande, seu moço,
só duas pessoas foram me visitar.
Uma foi essa senhora aqui, que é a minha patroa.
A outra, foi o seu pai.
Dê um abraço forte no Carlos Alberto.
Diga que o Nego Orlando mandou”.



O tempo passou, nas voltas e reviravoltas que o mundo dá. O rapaz mudou para São Paulo, estudou, foi trabalhar em propaganda. Depois, casou, vieram duas filhas, um cachorro. Virou um homem de meia-idade. Mas continuou ligado às suas raízes santistas. O cheiro da maresia nunca saiu de sua memória olfativa. E afetiva.

Até que, num sábado, em visita a Santos, abriu o jornal da cidade para espiar as notícias locais. Na primeira página, uma chamada discreta: “Morre Nego Orlando”.

A pressa foi tanta que chegou a amassar o jornal em busca da matéria. O texto, respeitoso, reverente, dava conta de que o famoso Nego Orlando, há anos lutava sua última batalha. Contra um câncer devastador. Mas, dizia também, que ele nunca se entregou à doença. Ao contrário. Lutou enquanto pôde, ou teve forças, para vencer aquele inimigo covarde, que havia se escondido em suas entranhas. Lutou como um bravo. Como o valente que sempre foi. Até o último fôlego. Até o fim.

O homem fechou o jornal. E os olhos. Subitamente, lembrou das histórias legendárias de Orlando, que ouvira em sua infância, narradas por seu pai.

Imaginou o salão do Samba-Danças, imenso, imponente. A orquestra atacando um mambo de agradar ao próprio Xavier Cougat. Os casais balançando seus corpos, envolvidos pelo ritmo sensual, latino, irresistível.

Então, viu Orlando entrar na pista. O negro vestia branco da cabeça aos pés. Num terno bem cortado de linho S120, com paletó jaquetão, ele contrastava com sua parceira, toda de vermelho.

O mambo não aceita desaforo. Quem sabe, dança. Quem não sabe assiste. Para evitar dar vexame. Orlando e sua dama de vermelho eram do ramo. Dançavam o fino. Tanto que apresentavam, em pé, todo um repertório de requebros e trejeitos, que os simples mortais só seriam capazes de realizar deitados. Numa cama, bem entendido.

Que espetáculo. Da cintura para cima, o negro dava a impressão de que estava imóvel. Mas, dali para baixo, o bicho pegava. Era quase impossível enxergar suas pernas, tamanha a rapidez de movimentos. Era um capoeirista. Nato.

O homem abriu os olhos. Pôs o jornal de lado. Sorriu. Não, não havia nada a lamentar. Nego Orlando agora estava em casa.


Carlão Bittencourt – 22.03.16



Carlão Bittencourt é redator publicitário e cronista,
autor de "Pela Sete - Breves Histórias do Pano Verde"
(2003, Editora Codex),
um mergulho no universo dos salões de bilhar de São Paulo,
e escreve toda semana em LEVA UM CASAQUINHO.


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