para Escreva Lola Escreva
Thelma & Louise está completando vinte anos de vida (trailer aqui), e por isso a Vanity Fair escreveu uma longa reportagem sobre o filme. Infelizmente só dá pra ler um pedacinho (se alguém encontrar tudo, me avise). Mas o que se pode ler é bem mais saboroso que o comentário do diretor Ridley Scott feito pro dvd em 97 (é, eu ouvi inteirinho!). Por exemplo, algumas atrizes que foram pensadas para o papel de Thelma ou Louise antes de Geena Davis (Thelma) e Susan Sarandon (Louise) fecharem: Holly Hunter, Frances McDormand, Jodie Foster (que, diante da demora, foi fazer Silêncio dos Inocentes), Michelle Pfeiffer, Meryl Streep, Goldie Hawn. O papel do Brad Pitt foi originalmente conseguido pelo William Baldwin, só que ele desistiu pra fazer Cortina de Fogo. Levante a mão quem acha que Brad está muito mais bonito hoje que vinte anos atrás.
No início, Ridley (Alien, Blade Runner, Gladiador) iria apenas produzir a obra da roteirista Callie Khouri, que é do Texas (e depois, ao ganhar o Oscar por este roteiro muito bem amarrado, disse ao público: “Vocês queriam um final feliz? Tá aqui o seu final feliz”. De fato, é tão raro roteiristas mulheres ganharem o Oscar — isso só ocorreu em 9% das vezes, e esse número inclui times de roteiristas, ou seja, homens e mulheres — que uma façanha dessas precisa ser comemorada). Mas, depois de ver diretores como Bob Rafelson (O Destino Bate a sua Porta), Kevin Reynolds (Robin Hood, Conde de Monte Cristo) e Richard Donner (A Profecia, Superman, Máquina Mortífera) serem sondados e diminuírem a história como “duas vadias num carro”, Ridley decidiu ele mesmo dirigi-lo. Bem que podia ter sido uma diretora, não?
Outro dia li a versão machista dos acontecimentos. Não vou dar o link (americano) porque inclusive ele está proibido por incitação à violência, mas, apesar de parecer exagerado, o carinha realmente tá falando sério. Olha como ele descreve o começo do filme: Thelma é casada com um carinha super legal, que não se sabe por que cargas d'água permite que sua esposa bastante normal seja amiga de uma neurótica como Louise. As duas pegam o carro e viajam, e param num bar à beira da estrada, onde um outro carinha super legal começa a flertar com Thelma, que está bêbada. Quando ela passa mal, ele só quer ajudá-la, mas fica excitado ao encostar nela sem querer. Ela recusa sexo apenas porque quer proteger sua reputação, então lhe dá um tapa, e ele a estapeia de volta. É só um joguinho sexual, entende? E aí Louise aparece para arruinar tudo. Isso porque ela odeia homens e quer Thelma só pra ela. O carinha super legal faz uma oferenda de paz pra Louise, convidando-a a chupar seu pênis, e o que aquela histérica faz? Atira nele! É um filme anti-homem! (Clique aqui para download a cena e fazer o jogo dos 70 erros).
Aham. A própria Callie Khouri teve que responder a inúmeras críticas de ser uma feminista exaltada e de seu roteiro ser anti-homem. E ela respondeu assim: “Que se danem esses críticos. Eles que vejam o tratamento dado às mulheres no cinema antes de me ofenderem pelo tratamento dado aos homens. Existe todo um gênero chamado exploitation film baseado na degradação das mulheres, e todo um grupo de críticos caipiras que aplaudem as virtudes desse gênero. Até que exista todo um subgênero que faça a mesma coisa com homens, calem a boca”.
Eu acho sim que T&L é um dos filmes mais feministas já feitos. Mas muitas feministas discordam. Elas vêem que um final tão infeliz (as duas continuam dirigindo, o que faz com que caiam no Grand Canyon e morram) não pode ser feminista. Pô, precisa acabar tudo bem pra ser visto como pró-igualdade de gêneros? Não pode só denunciar os obstáculos? (e não é possível o filme acabar de modo diferente, a menos que vire uma minissérie. Ou seja, elas são capturadas, e aí lutam por justiça. Do jeito que está, não tem como ter um happy ending). Outras pessoas creem que Thelma não sofre o suficiente após quase ser estuprada. Ah, sei não. Tem uma receita pra como vítimas devem se comportar? É igual pra todas? E digamos assim, existe o tempo real, que não é o mesmo do tempo do filme. A gente não acompanha tudo que ocorre.
Mais outra crítica costumeira: o personagem do Harvey Keitel é bonzinho demais e surge como salvador. Verdade que ele é o homem que mais empatiza com as mulheres em todo o filme, e que ele quer ajudá-las. Mas entendo por que seu policial/detetive tenha que estar presente. Se mesmo com sua presença (um tanto abusiva às vezes) há babacões que considerem T&L anti-homem, imagina sem ele? Que mais? Tem quem pense que Hollywood poda aqui um relacionamento lésbico, como obviamente faz com Tomates Verdes Fritos. Ahn, eu não vejo nada sexual entre Thelma e Louise. Ambas pra mim são bem hétero, o que não as impede de se tornarem grandes amigas (o machismo jura que mulheres não podem ser amigas porque estão sempre competindo. Logo, exemplos de female bonding são sempre bem-vindos).
E todos os temas feministas, não valem pra nada? Louise já pergunta sobre o marido escrotossauro de Thelma: “Ele é seu marido ou seu pai?”. Ambas concordam que vivem num sistema patriarcal em que não conseguirão mandar um estuprador pra cadeia, ou alegar legítima defesa por atirar em um. A culpa cai sempre na vítima. Thelma muda 100% no decorrer do filme, e afirma que não pode voltar atrás, e que agora vê tudo por um ângulo diferente, que antes era como se estivesse sedada. E muito da sua mudança deve-se a um orgasmo. Quando ela toma as rédeas da sua sexualidade, e dispensa o único parceiro que teve na vida até então (desde que tinha 14 anos), ela torna-se confiante e dona de si. Embora Geena e Brad tenham uma química fantástica, ela não se apaixona por ele. Ela só o quer pra sexo mesmo. E ela não se interessa por ele porque ele é o Brad Pitt ou porque ele tem um bumbum sexy, mas porque ele é gentil e educado.
Jimmy, o personagem do Michael Madsen (que no ano seguinte entraria pra galeria clássica dos psicopatas por sua atuação como torturador de policiais em Cães de Aluguel), faz par romântico com Louise e é o segundo homem que mais empatiza com as mulheres. Mas o Mr. Cool (e às vezes o Michael é tão cool que me cansa) tem várias nuances. Ele é violento — quando arrebenta o quarto de hotel, há uma sugestão que ele já bateu em Louise ou a ameaçou. Ele só vai atrás de Louise e a pede em casamento depois de perceber que ela vai deixá-lo (e que pode estar apaixonada por outro homem). Ela não o vê como uma opção.
O filme é ótimo inclusive pelo seu senso de humor. Com um tema pesado desses de tentativa de estupro, sistema judiciário contra a mulher, e implicações de violência doméstica, seria fácil fazer uma trama pesada. Mas não é o que acontece, e nisso Christopher McDonald, o ator que faz o marido de Geena, ajuda enormemente. O cara é quase uma caricatura do marido mandão e sem noção. Quase, porque a gente sabe que esse tipo existe. Uma das melhores piadas é com ele. Thelma liga pra casa pra saber até que ponto seu esposo sabe o que está acontecendo. Lá está todo o FBI, pronto pra identificar o local da ligação. Um agente pede ao marido que ele seja gentil com a esposa, pra que ela fale o máximo possível. Thelma liga, ele atende, e suas únicas palavras são “Thelma! Olá!”. Só isso já basta pra ela identificar a saudade forçada de sua voz e desligar. A segunda melhor piada é a linha “The police radio, Louise!”. Thelma, já no comando da situação (elas trocam de posição durante o filme), pede para que Louise atire no rádio do carro policial. E Louise atira no rádio normal, a fofa, como qualquer pessoa sem antecedentes criminais faria.
O filme cai muito no seu terço final, e não se levanta mais. Primeiro quando o diretor passa a incluir montes de cenas bonitas de vales pontuadas com música. Elas não acrescentam muito e param a história. E aí a gente vê que Ridley se perde mesmo ao incluir um esquetezinho que não tem nada a ver com nada. Vimos que Thelma e Louise prenderam um policial no portamalas do carro, não sem antes atirarem para fazer furos na porta e permitir que ele respire. Até aí, ótimo (e a cena com o policial funciona muito bem). Mas pra que colocar um ciclista rastafari parando no carro de polícia e soprando maconha lá dentro? Essa é a visão de quem, do ciclista? E daí, quem é ele? O que isso tem a ver com a trama? É mais do que óbvio que isso não consta no roteiro. Foi improvisação, diz Ridley nos comentários do dvd. Eles estavam filmando cenas de vale que também não deveriam estar no filme e viram o rastafari. E então Ridley pediu pra que ele fizesse a cena. O editor não queria incluir nem isso nem todas aquelas imagens lindas do vale, mas Ridley insistiu. Da próxima vez, escute o editor!
Eu também não gosto de quando as duas amigas atiram e explodem o caminhão do tarado. Acho que elas podiam atirar apenas nos pneus, sem apelar pra explosão que nem combina com o filme. Entendo por que deixaram isso — tem um efeito catártico pro público feminino, cansado de ver e ouvir grosserias de homens que só estão exercendo seu poder de “olha quem manda aqui”. Portanto, é bacana que as duas se vinguem do caminhoneiro em nome de tantas mulheres. Mas seria mais honesto se o homem em questão não fosse tão exageradamente imbecil. Se a gente só ouvisse idiotices de caras com QI negativo, até que nossa vida não seria tão difícil. Por isso, acho que boa parte das cenas com o caminhoneiro falham.
Embora o filme esteja longe de ser perfeito, ele ainda é dos poucos hollywoodianos que segue uma agenda feminista. Só por esse motivo já mereceria destaque. Mas ele também é muito, muito bom.
THELMA & LOUISE
(1997, minutos)
Direção
Ridley Scott
Roteiro
Callie Khouri
Elenco
Susan Sarandon
Geena Davis
Brad Pitt
THELMA & LOUISE
(1997, minutos)
Direção
Ridley Scott
Roteiro
Callie Khouri
Elenco
Susan Sarandon
Geena Davis
Brad Pitt
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