Sunday, March 27, 2016

NA HIDROGINÁSTICA, BOIANDO NO AZUL (um conto de Márcio Calafiori)





O endrocrinologista disse:

“O senhor anda descuidado com a saúde. Precisa mudar de vida, dormir e acordar cedo, se exercitar e lutar contra si mesmo. Como diabético, precisa comer pouco e bem. No seu caso, além do tratamento e da dieta, recomendo hidroginástica.”

“Será que em vez de hidroginástica eu não poderia fazer musculação?”

“Não. O senhor precisa é de hidroginástica.”

“E a dieta?”

Ele pegou um cardápio rodado em xerox. Antes de me entregar, examinou um item:

“O senhor gosta de abobrinha?”

“Gosto.”

“Pois corte a abobrinha do cardápio.”

O médico chamava aquilo de cardápio? Eram sugestões de pratos como cenoura e nabo ralados, acompanhados de uma colher de arroz branco e de meia sobrecoxa de frango, cozida e sem sal. Pode não parecer, mas me adapto bem às condições adversas. Portanto, a minha maior dificuldade não seria a dieta, mas a hidroginástica. Pesquisei na internet: Exercícios aquáticos existem há muito tempo. Mesmo que você não goste de nadar ou não saiba, ainda assim dá para praticar a hidroginástica, pois a maior profundidade que terá de encarar será até os ombros. Você não vai se afogar porque não terá de mergulhar a cabeça na água.

Mais: Pessoas com excesso de peso ou com problemas específicos que dificultam o movimento em terra descobrem que a flutuação permite se exercitar com facilidade, pois um corpo imerso num fluído é sustentado por uma força igual ao peso do fluído deslocado pelo corpo. É por isso que se flutua na água. A flutuação também evita o impacto nas articulações.

Ah, bom! O site em que pesquisei apresentava mulheres jovens e bonitas, de maiô. Claro, não levo a publicidade a sério. Se o site mostra mulheres assim, seria exatamente o contrário. E então me imaginei cercado de velhotas que mijam discretamente dentro da piscina. Geralmente essas senhoras têm os pés deformados por joanetes. Elas costumam ser espirituosas. Com a idade, os homens vão ficando mal-humorados, enquanto as mulheres riem de si mesmas.



No primeiro dia, entrei na piscina do Clube Atlético Dores pensando assim: “A hidroginástica melhora a minha capacidade aeróbica, a minha resistência cardiorrespiratória, a minha força muscular, a minha flexibilidade e o meu bem-estar geral, além de queimar muitas calorias.”

A professora, uma baixinha, me mandou fazer par com uma senhora de maiô marrom e pés com joanetes, dona Lourdes, que era excessivamente simpática. Ela usava uma boia ao redor da cintura. Vistos sob a perspectiva da água, os pés dela tocavam o fundo da piscina como as garras de uma ave estranha.

“O senhor é casado?”

“Não.”

“Não quis casar?”

“Sou um infeliz amoroso.”

“Ah!... Quantos anos o senhor tem?”

“Cinquenta.”

“Está conservado para a idade. O senhor pinta o cabelo?”

“Não, não uso nada no cabelo.”

“A sua pele do rosto...”

“Essa pele é minha mesmo, desde que nasci.”

Foi então que a vi. Ela usava um maiô em tons de azul e azul-marinho. Entrou na água, se concentrou um pouco e, em seguida, relaxou o corpo e começou a boiar, com os braços estendidos. Azul, azul e azul. Ela boiava no azul.

É claro que agora morando aqui não espero encontrar o médico com o qual me consultei em São Paulo. Ao término da primeira aula de hidroginástica, depois de me exercitar com facilidade, pois um corpo imerso num fluído é sustentado por uma força igual ao peso do fluído deslocado pelo corpo, me senti no direito de beber uma cerveja. Em vez de cenoura e nabos ralados, pedi uma porção de calabresa frita com cebola e pão fatiado. Dona Lourdes me avistou no bar da piscina:

“Na aula de quarta-feira é melhor o senhor ficar bem no rasinho.”

“Pode deixar, dona Lourdes, se eu afundar seguro na sua boia.”



Aula de quarta-feira. Quando cheguei os pares já estavam formados. Era o que eu queria, pois o meu atraso fora estratégico. Logo depois, ela entrou na piscina. A professora sugeriu que formássemos um par. Quando demos as mãos para fazermos um exercício, Laís disse:

“Olha, este exercício é assim que se faz, percebe? Pode ser que o senhor tenha um pouco de dificuldade no começo. Mas eu não, tenho muita flexibilidade.”

“Só de olhar sei que você é flexível.”

“Gozado, tenho a impressão de que já nos vimos.”

“Será?”

“O senhor é daqui?”

“Não, mas agora estou morando aqui.”

“Posso te fazer uma pergunta íntima?”

“Claro.”

“A sua pele é natural?”

“Como assim?”

“A sua pele do rosto. Olhando para o senhor tenho a impressão de que é... uma maquiagem.”

Desde que a conheci pelo Facebook e descobri que Laís, assim como eu, faria hidroginástica a conselho médico, tomei a decisão. Aposentado, sem família e nada pra fazer, decidi mudar de vida e de cidade. Ali mesmo na piscina, tirei o disfarce.

“É tu mesmo, meu amor? Não acredito! Quando te vi tirando essa máscara, juro que achei que fosse efeito dos medicamentos. Pensei que eu estivesse entrando em outra dimensão.”

De mãos dadas, agora boiávamos no azul.




(pinturas: David Hockney)



Márcio Calafiori é jornalista. 
Nasceu em 1957 e se formou 
pela Facos em 1986. 
Exerceu quase todos os cargos 
em redações de jornais em Santos, 
Santo André, Campinas e São Paulo. 
Foi redator, repórter, revisor, editor, 
secretário de redação, 
chefe de reportagem e ombudsman. 
Aposentou-se em 2012 
como professor da Unisanta, 
depois de 29 anos 
de dedicação exclusiva 
ao Jornalismo Impresso.
Márcio faz participações
especiais eventuais
em LEVA UM CASAQUINHO.




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