Tuesday, February 2, 2016

AH, QUE SAUDADE DE KURT VONNEGUT, JR...


Tenho 55 anos de idade e 42 anos como leitor de ficção (literatura juvenil não entra nessa conta), e posso afirmar que, a essa altura da vida, tenho cerca de duas dúzias de escritores favoritos.

São quase todos contemporâneos meus, cujas carreiras tive o prazer e o privilégio de acompanhar.

Poderia citá-los aqui, mas não vou.

Vou mencionar apenas um deles, cujos romances devorei um a um até que ele saísse de cena em definitivo em 2007.

Não apenas com o respeito de um admirador.

Mas com a avidez de um fã.


Meu primeiro contato com Kurt Vonnegut foi através do cinema.

Assisti "Matadouro 5" numa sessão da meia noite do saudoso Cinema 1 por volta de 1974, aqui em Santos, e fiquei fascinado.

Quando o reprisaram, lá estava eu novamente para revê-lo.

E então, descobri que o filme era baseado num romance de mesmo nome publicado no Brasil pela também saudosa Editora Artenova.

Comprei o romance na antiga Livraria Atlântica (depois Siciliano, hoje Saraiva) da Avenida Ana Costa, e gostei ainda mais que do filme.

Comecei então a comprar e devorar todos os títulos de Kurt Vonnegut então disponíveis nas livrarias:

O Almoço dos Campeões
Revolução no Futuro
Pastelão ou Solitário Nunca Mais
Bem-Vindo à Jaula dos Macacos
A Felicidade Rosewater
O Espião Americano
Cama de Gato

Álvaro Pacheco, dono da Artenova e editor de todos esses títulos, pelo visto admirava Vonnegut ainda mais do que eu, pois não deixava passar um lançamento dele por aqui.

E as edições eram bem traduzidas, o que não era praxe na Artenova.


Foi Kurt Vonnegut, Jr quem me levou a outros autores de literatura fantástica:

René Barjavel
Alfred Bester
Jerzy Kosinski
Romain Gary
Gore Vidal
Stanley Elkin
Michael Crichton

Curiosamente, quase todos esses autores eram publicados na época pela Artenova.

Para mim, foi um imenso prazer conhecê-los.


Foi Vonnegut quem me mostrou que, ao contrário do que havia aprendido na escola, literatura não era o resultado de belas palavras encadeadas por um esteta engenhoso e letrado.

Escrevia com um despojamento assustador, que aos olhos mais atentos revelava um estilista extremamente habilidoso, craque absoluto em escrever na primeira pessoa e dar voz aos personagens mais incertos e improváveis.

Todo novo romance de Kurt Vonnegut era antecedido de um longo prefácio, onde ele, Vonnegut, conversava candidamente com o leitor sobre sua vida conjugal, preferências políticas, expectativas quanto ao futuro, motivações filosóficas, mas, principalmente, sobre o convívio cotidiano com seus cachorros, com quem tinha mais afinidade existencial do que com seus filhos.

Havia um personagem recorrente na maioria de seus livros: o escritor de ficção científica Kilgore Trout, seu alter-ego assumido, um tipo excêntrico, idiossincrático e absolutamente inesquecível.

O comediante Rodney Dangerfield, que era amigo pessoal de Vonnegut, costumava dizer que apesar dele gostar que as pessoas o reconhecessem em Kilgore Trout, não havia a menor semelhança entre os dois.

Para Dangerfield, Vonnegut era um doce e talentosíssimo lunático -- no melhor e mais saudável sentido do termo.


Pois bem: quando eu fui estudar Teoria da Literatura na Universidade de Brasília, tive que ler um monte de escritores chatíssimos e totalmente esquecíveis que serviam aos propósitos malévolos de certos professores viciados em estruturalices, desconstrutivices e semiologices.

Foi um horror.

Mas, por outro lado, foi ótimo ter passado por toda aquela tortura pseudo-intelectualizante.

Foi alí que eu concluí que o verdadeiro sentido da literatura passava completamente ao largo daquele circo de horrores pseudo-formalista e irremediavelmente obscurantista, onde obras eram autopsiadas para fins absolutamente excusos.

Foi alí que concluí também que literatura jamais poderia ser tratada como uma ciência exata, e só poderia ser avaliada a partir da experiência intelectual de cada leitor, através do prazer estético resultante dela.

Só mesmo uma formação artística sólida, plural e humanística seria capaz de conceder a um estudioso em literatura o estofo  necessário para analisar obras, até porque as fórmulas estruturalistas e desconstrutivistas praticadas nas Universidades só funcionavam com escritores mais formulaicos, e o máximo que conseguiam era promover um redux absolutamente inútil no que, lá no comdeço de tudo, era uma obra de arte com alguma integridade.


O motivo pelo qual estou embarcando nessas reminiscências vonnegutianas é que acaba de chegar pelo correio uma encomenda que fiz no final do ano: os 4 volumes luxuosos da Library Of America com a obra de Vonnegut de 1952 até 1997.

Cada volume reúne 4 ou 5 de seus romances.

Não estão incluídos no pacote os escritos de seus 10 últimos anos de vida, que deverão compor um quinto volume ainda a ser publicado.


Ainda não comecei a reler esses romances.

Por enquanto estou apenas namorando esses quatro calhamaços em edição capa dura, antes de posicioná-los na minha estante ao lado de outras edições da Library Of America com as obras completas de Philip Roth, Saul Bellow, John Cheever, Raymond Carver, Dashiel Hammett e William Faulkner, que adquiri tempos atrás.

Kurt estará em ótima companhia


Antes de encerrar, faço questão de compartilhar com vocês esta entrevista deliciosa de Vonnegut concedida ao Paris Review nos Anos 1970 para a série The Art Of Fiction. Leiam. Vale a pena.

E depois de redigir esse texto num tom pretensamente semelhante ao utilizado por Vonnegut nos prefácios de seus livros, deixo para vocês um conselho dele que li certa vez numa entrevista que ele concedeu à revista Rolling Stone nos Anos 90:

"Divirtam-se, pois literatura serve para isso mesmo"


Para conhecer o catálogo completo
da Library Of America
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