Thursday, February 4, 2016

ENTRE A ESCRAVIDÃO E O CAOS (Por Marcelo Rayel Correggiari)



Pensarei seriamente se devo migrar, nas próximas semanas, para a Literatura. Sou egresso do curso de Letras e, às vezes, fico meio reticente em falar sobre livros: numa Mercearia que prima pelo descompromisso com a coisa chata, conversar sobre livros e o risco de pintar um papo xarope da moléstia é gigantesco...

Por outro lado, investir na cinematografia de documentários traz um efeito colateral (como todo efeito colateral) pouco agradável: o mundo onde vivemos já deu (e faz tempo!). Acabo, assim, arrastando o freguês (Mercearia que se preze tem ‘freguês’ e não ‘cliente’) para um niilismo pouco eficiente (apesar de provocativo) que dá bem para viver sem nos dias de hoje.

Há duas semanas, foi a vez de ‘Manda Bala’, de Jason Kohn, documentário cinematograficamente perfeito, com uma direção de arte de se tirar o chapéu, mas que trata do ‘mundinho cão’ onde vivemos. O problema dos documentários mais recentes é que eles retratam esse ‘dog-eat-dog world’ e fica quase impossível sair desses filmes com alguma firmeza de esperança.

Resultado: mais um documentário daqui a duas semanas e a turma ou me pega de pau na rua, ou me enfia numa camisa-de-força, pronto para a internação. Algo semelhante a ‘garoto-enxaqueca’, o ‘profeta do fim do mundo’, ou adjacências. E não seria, necessariamente, o caso.

Se os documentários apenas registram o mundo onde estamos, seria interessante avisar o(a) querido(a) leitor de que ainda há o mate do Marquito no Joinville, passeios pela praia no pôr-do-sol, céu azul, agradabilíssimos banhos-de-mar (difícil me adaptar às novas normas ortográficas!), mas sempre levando um casaquinho porque o sereno é traiçoeiro. O mundo ainda é bacana, caro(a) freguês(a), um monte de coisas boas para fazer.

Entretanto, há também o lado escuro da lua, lauta refeição para diretores de documentários (tendência, sim, mas apenas como inclinação, não como regra geral). O valor da ignorância pode ser crucial para uma vida mais feliz. Isso é fato! Contudo, ao menor sinal de tudo começar a dar errado, desconhecer o que realmente vai no seu singelo hamburguer do restaurante ‘fast-food’ de sua preferência, ou no frango assado de domingo, pode ser fatal.


‘Comida S.A.’, encontrável nos ‘Você Tubo’ sob o título original ‘Food, Inc.’, é minha segunda passagem por esse filme (creio ter comentado sobre esse documentário há algum tempo atrás, não sei onde). A lembrança não é bastante exata: recordo-me apenas do nome Escherichia coli 0157:H7, uma estirpe evoluída da renomada bactéria bacilar já citada em algum texto anterior. Uma das vítimas dessa bactéria, inclusive, é reportada nesse documentário. Bem simples: é de grande orgulho atingirmos a casa dos 7 bilhões de seres humanos no planeta. Cabe a indagação: tem merenda para todo mundo?

Até tem... mas o custo da bagaceira transgênica (nesse campo, há um outro excelente documentário de nome “O Mundo Segundo a Monsanto”) vai do assustador ao aterrorizante. A começar pelas fazendas de confinamento e galinheiros que não ficam muito atrás, onde a condição de vida dos animais pode fazer o(a) querido(a) leitor(a) comer alface para o resto da vida. ‘Comida S.A.’, nesse aspecto, não é pioneiro, nem está sozinho: há vários documentários que denunciam o sofrimento dos bichos no atendimento à indústria do alimento.

A investigação prossegue: sabe como tanta comida a preços acessíveis? Se você pensou naquela praça de alimentação daquele shopping center querido, com todos aqueles restaurantes de comida rápida... bingo! A introdução dos métodos fabris nos restaurantes ‘fast-food’ foi o começo do ‘samba-dança’ que você assiste pormenorizado em ‘Comida S.A.’. Segundo a tese do diretor e roteirista do filme, Robert Kenner, o início da queda teve como protagonistas os Irmãos Escoceses, donos de uma churrascaria em San Bernardino, Califórnia, a partir de 1940. Oito anos depois, resolveram ‘meter o louco’: reduziram o cardápio, o tamanho do restaurante e os pedidos passaram a ser feitos de dentro dos próprios veículos, no estacionamento, estilo ‘drive-in’.

Ora, vejam quanta semelhança: em 1948, em San Bernardino, as pessoas iam ao ‘drive-in’ para comer. Em Santos, anos 2010, as pessoas vão ao ‘drive-in’ também para comer (ou para serem comidas... ou para se comerem... enfim...)!


Bom, a sacada dos Irmãos Escoceses (chupa, Marx!): o sistema fabril de apertamento de parafusos conferia aos cozinheiros trabalhos específicos e repetitivos: um só frita o hamburger, outro só corta o pepino, o outro só lava o alface, o outro só fatia o tomate, mais um que abre o pão no meio e aquele outro que só aplica o catchup e enfia o pepino (ui!). Em meio à essa suruba orgiástica-dionisíaca-alimentar, o que ninguém percebeu: tarefas específicas e repetidas à exaustão ajudam a esvaziar qualquer importância do esforço do cozinheiro, mitigando sua relevância e garantindo, assim, o pagamento de salários bem baixos (esse tipo de operação é conhecida popularmente como ‘trabalho de macaco’). Ah... também pega em cheio o ranger de dentes dos sindicatos que no caso de detestarem tal efeméride trabalhista teriam a alternativa de reclamarem com o bispo.

Esse sistema alimentou muita gente. As pessoas foram engordando e se reproduzindo (é incrível como o ser humano leva a sério essa ordenação divina: “crescei e multiplicai-vos”!). Logo, o sistema fabril que era somente dos restaurantes passou a nortear todos os elos da cadeia de fornecimento. Não tardou para surgir a ‘indústria do alimento’: o fabril foi e voltou. ‘Comida S.A.’, portanto, é um documentário que trata dos desdobramentos dessa (in)evolução na produção de alimentos que hoje opera para estufar a galera de 7 bilhões de esfomeados(as), zoar com as gôndolas de supermercado e fechar a tampa do caixão das mercearias na forma como eram conhecidas nos anos 1970.

É óbvio que o filme traz detalhes bem mais complexos. Em média, as tomadas levam em torno de 8 segundos, o que permite um passo interessante para o documentário. Nada muito fora-do-comum: depoimentos de estudiosos, fazendeiros, médicos, cientistas, empresários e todos que participam do itinerário da comida entre o local de criação-produção à mesa do consumidor. A questão de um documentário ‘clipado’, como no caso de ‘Comida S.A.’, é que um ‘bate-e-enxuga’ de 1:35h exige a disposição de inúmeras fontes de imagem. Na média de 8 segundos em cada tomada, a quantidade de recursos audiovisuais passa a ser gigantesca. Garante-se, dessa maneira, um ritmo ‘bacana’ para quem assiste, mas perde-se razoavelmente numa eventual direção de arte: muitos arquivos obtidos de programas de TV, vídeos caseiros gravados ‘daquele jeito’ e demais materiais cinematográficos que impedem certa harmonia imagética.


Os desatentos não percebem as alternâncias desse aspecto do filme, porque estão ‘hipnotizados’ pelos 8 segundos em média de cada tomada. Perde-se de um lado, ganha-se de outro: nessa toada, o filme é bom, mas não seria lembrado como peça artística como é o caso de ‘Manda Bala’. Sua verve documental, analítica e jornalística passa a ser mais pronunciada do que a artística. Em suma: as sinuosidades sensuais da cabrocha passam a ser descritas como ‘ancas’, ‘aqueles calombos’ pendurados nos quadris. ‘Seio’ vira ‘teta’ e ‘ventre’ vira aquele nome de rima perigosa próxima foneticamente ao objeto direto da oração anterior. Por que assistir a ‘Comida S.A.’?! Porque, apesar das questões mencionadas nos parágrafos anteriores, é um grande filme! Duro, posto que lida talvez com esses lados mais obscuros da existência humana, mas ainda de qualidade cinematográfica e, acima de tudo, indutora ao debate, à reflexão.

Uma vez questionado sobre a vida (ou o que é importante para se viver), o sociólgo polonês, radicado em Londres, Zygmunt Bauman não pestanejou: “segurança e liberdade”. Porém, segundo o pensador, uma exlui a outra. Somente segurança e temos a escravidão. Somente liberdade e o caos se instala. Alcançar o equilíbrio é que são elas: porque quanto mais se busca a segurança, menor a liberdade. Quanto maior a sede de liberdade, menor a segurança dos cenários, daquilo que nos cerca: o terreno se torna pantanoso.

Por segurança, perdemos a liberdade. Por liberdade, perdemos a segurança. A segurança na alimentação nos tornaria livres? Ou escravos da indústria do alimento? A liberdade alimentar total, sem quaisquer controles ou freios impostos pela indústria, nos colocaria em cenários de ingestão segura? Só segurança é escravidão. Só liberdade é caos. 

Bem vindos ao ‘Comida S.A.’! 


COMIDA S.A.
(Food Inc., EUA, 2009, 94 minutos)

Roteiro
Kim Roberts
Elise Pearlstein
Robert Kenner

Diretor
Robert Kenner

Diretor de Fotografia
Richard Pearce

Edição
Kim Roberts

Efeitos Visuais
Eric Epstein
Nadia Husain

Produtores
Elise Pearlstein
Robert Kenner

Co-produtores
Richard Pearce
Melissa Robledo
Eric Schlosser

Produtores Executivos
William Pohlad
Robin Schorr
Jeff Skoll
Diane Weyermann

Produtores Associados
Sascha Golhor
Jay Redmond

Produtoras
Magnolia Pictures
Participant Pictures
River Road Entertainment

VEJA O FILME COMPLETO
AQUI



Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 47 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve às quintas em
LEVA UM CASAQUINHO

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