Friday, February 5, 2016

BUMBUM DE CARNAVAL (por Joaquim Ferreira dos Santos)


publicado originalmente em O GLOBO
em 29 de Fevereiro de 2012


Há questões misteriosas a se resolver no carnaval, como a de vender mais cerveja e ao mesmo tempo se fazer menos xixi, mas nada me impressiona mais do que o jeito como caminham, sem olhar para a frente, arrogantes e poderosas, as bundas femininas em sua gloriosa marcha rumo à apoteose dos sentidos e ao controle do mundo.

Para onde vão? De onde vieram? Por que não me levam às suas líderes e me fazem escravo de seus caprichos?

A cada ano elas desfilam maiores, ao mesmo tempo firmemente compactas, plenas de harmonias e com um desenho mais bem arrumado da fantasia intrínseca que a natureza, as academias de ginástica e a evolução da ciência lhes proporcionaram.

Tempos atrás, Drummond falou da bunda engraçada, sempre sorrindo, nunca trágica. Depois, Jabor viu a da Juliana Paes na “Playboy” e, melancolicamente cético, disse que ela teria o mesmo destino do PT, um dia cairia. Isso foi há dez anos.

O PT pode até continuar o mesmo, mas as bundas definitivamente são outra pessoa. Cresceram na empáfia, entenderam os bastidores da política brasileira e tornaram-se as entidades com mais jogo de cintura na cena nacional. Só pensam nelas próprias. Deixaram de ser engraçadas para, musculosas, sem rebolados fofinhos, tornarem-se, na ausência de uma oposição firme do PSDB, o mais visível projeto de poder do país.



Eu vi todos os desfiles, lamentei que os jurados, sempre simpáticos mas incompetentes, não tivessem percebido a genialidade da Mangueira em devolver o canto à multidão, abrindo uma roda de pagode no meio da Sapucaí.

Vibrei com a percepção quase generalizada de que o humor é a pedra de toque do carnaval, e daqui cumprimento Paulo Barros, o mestre da matéria, e Renato Lage, veterano que se rende à tendência, pelos belos espetáculos na Unidos da Tijuca e na Acadêmicos do Salgueiro.

Eu vi tudo isso e achava natural que assim fosse o melhor desfile dos últimos anos, pois a tradição das escolas de samba não é ficar regando raízes, mas criar árvores novas. Tem sido assim desde Fernando Pamplona. Os grandes carnavalescos reinventaram a festa, na certeza de que esse é o espírito de sua existência, o êxtase renovado que as gambiarras da Praça XI privilegiavam iluminar — e deve ser por isso, no embalo dessa necessidade de estupefaciar sempre, que as mulheres fazem a sua parte com bumbuns diferentes a cada ano.

Aonde elas querem chegar, me pergunto na dispersão da vida, com suas hipérboles monumentais sobre a superioridade feminina.



Os bumbuns já foram românticos, despertavam em quem os admirasse um frêmito súbito sobre a necessidade urgente de levá-los, tão desprotegidos, ao altar mais próximo e, em sua aconchegante companhia, ser feliz para o resto da vida. Eram até certo ponto domésticos, sonhos de valsa, travesseiros de renda, e cabíveis no núcleo familiar. Os cronistas chamavam, aos mais belos, de calipígios.

Superdimensionadas, obras da mais espetacular ficção científica visionária, a próxima edição da revista “Planeta” certamente virá com um artigo de seu mais arguto redator gritando na capa que elas chegaram para ficar. Aquelas circunferências monumentais seriam a prova mais evidente da existência dos discos voadores, que entenderam como plataforma de pouso a arquitetura espacial de Niemeyer e aterrissam sempre quando as luzes da pista se acendem na Sapucaí do carnaval.

Diabolicamente sublimes, nelas os místicos reconhecerão o novo desenho que recuperará, por associação de ideias, os católicos para o cada vez menos praticado culto da hóstia consagrada.



O bumbum musculoso é a tradução carnavalesca da euforia nacional com os rumos de uma economia que, se no mundo inteiro balança, aqui ela é dura como a Pedra da Gávea. Nesse tamanho, nessas proporções orgulhosas, ela só existe em território brasileiro, da mesma maneira que o paradão da bateria, a palavra saudade, a caipirinha de lima, a jabuticaba, a dança da garrafa e outras delícias.

Acho que a seguir, enquanto não assumem o Planalto Central do país, as bundas de carnaval serão transformadas em quesito, um novo tipo de alegoria que ajudaria a escola a contar o seu enredo — ou, já que existe a comissão de frente, seriam consideradas comissões de trás. Ainda é pouco para a soberba de cada uma, seres que olham com desprezo a vida real e miram para um futuro que a um simples cronista de segunda não é dado saber o que será desse amanhã.



A se crer em Darwin, como já se vê em algumas mulheres, as novas bundas evoluirão para o controle do corpo, deixando cérebro, coração, fígados e afins como meros coadjuvantes dessa máquina biológica em contínua mutação. Foi o que eu vi no carnaval, quando constatei, por comparação, quão pré-históricos ficaram os bumbuns das coelhinhas da “Playboy”, símbolos de antigas eras. Pareciam glúteos jurássicos.

Vem aí uma civilização à margem, comandada por bundas sofisticadas num estágio superior de compreensão das necessidades do mundo em transformação. A da Viviane Araújo, por exemplo, já lhe é visivelmente superior e comandante.




Joaquim Ferreira dos Santos
é carioca da gema 
e um dos cronistas mais notáveis
que o Brasil já produziu

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